Otto Maria Carpeaux - Madame Bovary


Continuamos com a análise crítica de Otto Maria Carpeaux. Aqui ele escreve sobre a noção de estilo. Desvela um Flaubert anti-romântico, avesso à burguesia provinciana, lutando pela palavra "certa" na composição da sua obra de arte: Madame Bovary. Com esta leitura, compreendemos o quão importante foi e é Otto Maria Carpeaux para as nossas Letras.
Boa leitura!



(...)


Declarando-se anti-romântico, Flaubert tomou fatalmente, e talvez contra sua vontade, o partido de tudo que é anti-romântico. Mas no campo anti-romântico também se encontram os pequenos burgueses estreitos e estúpidos, os "filisteus", os Charles Bovary, os Homais etc. Flaubert os odeia igualmente. Mas sua existência de um esteta, inteiramente dedicado ao trabalho de elaboração artística, só é possível à base de um sólido fundamento econômico, de rendas, tipicamente provinciano. Flaubert, embora mais rico, pertence à mesma classe dos Charles Bovary, Homais e Bournisien, à "elite" que vive do trabalho da gente do campo. Sua existência é de "filisteu".
Flaubert não podia deixar de revoltar-se contra essa sua condição humana. Fez viagens a países exóticos. Trouxe de lá enredos de obras tão fantasticamente românticas como Salammbô. Se não observássemos o pendor para o romantismo vito-hugoano em seu sucessor Zola, poderíamos dizer: o anti-romântico Flaubert é o último romântico. E agora se compreende melhor sua confissão: "Emma Bovary, c'est moi."

Com efeito, embora o romancista desprezasse sua personagem, sofreu com ela. Contou-lhe a história, sofrendo com ela. O enredo, de tanta simplicidade, desbordou. Flaubert, grande artista, teve um trabalho imenso para refreá-lo. Por isso, Madame Bovary é mais que a história de Madame Bovary. A diferença reside no estilo.

Ainda existem muitos equívocos em torno do conceito de estilo. Ainda há quem considere o estilo como espécie de embelezamento.

Escreva-se primeiro, em frase simples e compreensível o que se pretende dizer; depois, substituam-se as palavras normais por expressões mais raras, para exibir "riqueza lexicológica", enfim, estende-se a frase até ela fornecer um período, ao qual se confere, por conveniente modificações e inversões, a sonoridade musical.

É evidente que esse conceito de estilo, herança funesta do parnasianismo, não tem nada que ver com literatura séria e que não vale discuti-lo a respeito de Flaubert.

Mas é preciso confessar que Flaubert tem realmente algo de um parnasianismo em prosa. Lutando contra as dificuldades da língua e esforçando-se deseperadamente para dar às suas frases o caráter de algo definitivo. Flaubert é bem o contemporâneo dos poetas parnasianos Leconte de Lisle, Glatigny, Bouillet, este último seu amigo de infância. Mas quando um Lecont de Lisle reescreve pacientemente seus versos para conferir-lhes a famosa "beleza marmórea" e quando Flaubert sofre em noites de insônia ataques epiléticos porque não encontra determinada expressão, não se trata da mesma luta. Flaubert não pretende escrever "belo" ou "bonito", mas "certo". Proíbe, menos em raros casos de indispensabilidade, os adjetivos. Um substantivo que não representa o sentido desejado se não acompanhado de um adjetivo, não é o substantivo certo. Para dar determinado sentido, só pode haver uma determinada palavra, que é preciso descobrir. Flaubert não acredita na existência de sinônimos. Sempre só existe um único "mote juste". Quando todas as palavras de uma frase são os "mots justes" necessários e unicamente admissíveis, então só é preciso colocá-las na ordem certa - o que també é muito difícil - para conseguir a musicalidade da cadência. Assim nasce um estilo que é, ao mesmo tempo, exato e colorido, sóbrio e musical e - se quiserem - poético, mas, no entanto, nada de poesia e só prosa pura. Compreende-se as dificuldades imensAlinhar ao centroas com que Flaubert lutou para escrever uma frase, um parágrafo, uma página, um capítulo, um livro.

(...)


Até amanhã!


In.Madame Bovary. Gustave Flaubert. Trad.: Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p.14-15.
Imagem:http://3.bp.blogspot.com/_RJ1gFmh-xQw/SpKIYe5dReI/AAAAAAAABS4/GQd3mzzFo0s/s1600-h/Romântico1.jpg

Otto Maria Carpeaux - Madame Bovary


Carpeaux, nesta parte do texto, fala do verdadeiro personagem do romance Madame Bovary. Mostra um Flauber anti-romântico e um estudioso da estupidez humana. Vamos à leitura!


(...)

O romance se chama Madame Bovary. O título indica que Emma Bovary é sua "heroína". Mas será realmente assim? A narração começa e termina com o estúpido Charles Bovary; e nela desempenham grande papel o estúpido don-juanismo de Rodolphe e a estúpida paixão de Léon, a estupidez do farisaico padre Bournisien e todo esse pequeno ambiente de província, sem saída para Emma e sem saída para ninguém e pode-se afirmar: o verdadeiro personagem do romance é a Estupidez humana.

Flaubert foi grande estudioso da estupidez humana. Colecionou assiduamente burrices que leu em livros e jornais. Seu último romance, Bouvard et Pécuchet, estava destinado a ser uma espécie de epopéia da estupidez. E o paraíso da estupidez é, para Flaubert, aquele ambiente que ele conhecia tão bem e em que ele passara a vida toda: a província.

A frança é o país mais centralizado do mundo. Tudo que tem valor ou interesse está concentrado em Paris. Para a província só ficam os não-valores e os sonhos decepcionados, os ressentimentos e as paixões recalcadas. Por isso mesmo é a província o ambiente preferido do romance francês, como um laboratório em que se podem realizar experiências psicológicas. Na província, se passa a maior parte dos romances de Balzac; ainda será provinciano o ambiente de La Nausée, de Sartre - Flaubert reduziu a província à estupidez dela, incapacidade intelectual, emocional e insensibilidade moral. Essa estupidez conforme Flaubert, pode ter muitas formas, e uma dessas formas é o pseudo-romantismo de Emma, "o poder da pessoa para emprestar a si mesma uma penalidade fictícia e a desempenhar um papel que não se coaduna com sua verdadeira natureza". Seria esta a definição do falso romantismo? Não. Para Flaubert, que fora romântico na mocidade e que chegou a odiar o romantismo, aquilo era todo o romantismo. E daí podemos tirar duas conclusões de maior importância para a compreensão da obra:

1) Flaubert pertence àquela grande corrente do pensamento europeu que, por volta de 1850, abandonou decepcionada o romantismo para encarar a realidade com os olhos desiludidos de uma nova sobriedade que poderia ser chamada inexatamente e sem pensar em Auguste Comte: "positivista". É a mentalidade de Flaubert e a de Thackeray, Gontcharov, Fontane e outros grandes escritores da época.

2)O anti-romantismo dessa mentalidade mandou excluir dos romances até os últimos restos da mentalidade romântica. Flaubert, sucessor imediato de Balzac, desprezou os enredos muitas vezes violentamente melodramáticos do seu mestre. Reduziu o romance aos contornos mais simples e menos dramáticos da realidade observada. Nesse sentido, o anti-romantico Flaubert é o precursor direto do naturalista Zola (mas iremos ouvir, dentro em pouco, que é necessário apor uma correção restritiva a essas afirmações).

(...)


Até amanhã!

In.Madame Bovary.Gustave Flaubert.Trad.:Sérgio Duarte.Rio de Janeiro:Ediouro, s/d,p.14.

Otto Maria Carpeaux - Madame Bovary


Continuamos com o ensaio de Carpeaux, cada vez mais envolvidos nesta tessitura tão bem feita, onde se fundem arte e realidade. Boa leitura!




(...)


Encontrou –se, muito mais tarde, entre os papéis de Flaubert, um caderno de notas intitulado Madame Ludovica, que faz pensar em outras fontes. Modelo de Emma Bovary teria sido Louise d’Arcet, que se casou com James Pradier, escultor famoso nos anos 1840, autor das estátuas das deusas da vitória em torno do túmulo de Napoleão. Louise traiu o marido. Teve inúmeros amantes. Acabou separada do marido e na miséria. – é difícil aceitar essa história como fonte do romance. Os adeptos dessa teoria têm de afirmar que Flaubert condensou as muitas aventuras de Louise em apenas duas. Pradier foi homem fraco, mas não tinha, contudo, a menor semelhança com Charles Bovary. E Louise Pradier não acabou suicidando-se. Preferimos a hipótese de o caderno intitulado Madame Ludovica ter sido o esboço de um outro romance, que nunca foi escrito, e, em vez do qual Flaubert escreveu, baseando-se em elementos parcialmente diferentes, Madame Bovary. Não é impossível descobrir no caráter de Emma traços de duas amigas de Flaubert: Louise Colet e Edme de Genettes. Mas a verdade é que esse pseudo-romantismo, alimentado por falsos princípios de educação feminina, é mesmo fenômeno permanente em certo tipo de mulheres. Nem todos os homens são Dom Quixotes, Hamlets ou Faustos, mas sempre existem representantes desses protótipos. Nem todas as mulheres se parecem com Emma Bovary mas as Emmas existem sempre; e, mesmo que nunca houvesse existido na Normandia de 1840 uma mulher que experimentasse o destino de Emma Bovary – então ela, personagem de ficção – é no entanto mais verdadeira que seus hipotéticos modelos que viviam realmente. Emma Bovary “c’est La réalité”.

Mas por que insiste tanto a posteridade em procurar o modelo? Por que se supõe com tanta teimosia que a história de Emma Bovary se teria passado na realidade? O motivo é a extraordinária clareza e “directness” com que Flaubert contou sua história: uma história tão simples que parece mesmo tirada da realidade mais comum e mais vulgar e que parece mesmo realidade.

Charles Bovary – a história começa com sua entrada na escola e com a hilaridade que provocou nos outros alunos seu chapéu ridículo – é rapaz estúpido, insensível de grande inabilidade; também incompetente e realizará operações desatrosas como no pé aleijado do pobre Hippolyte. Emma, por sua vez, é uma mocinha sonhadora, romântica, acreditando no que suas leituras medíocres lhe contam sobre felicidade pelo amor. Toda enganada, Emma casa com Chales Bovary, para fugir da estreiteza da casa paterna. A decepção é inevitável. Um baile no castelo do vizinho aristocrático reaviva os sonhos românticos, a que tão pouco corresponde o marido. Frontalmente, cai Emma na aventura adulterosa com Rodolphe, espécie de Don Juan rural, que a abandonará em breve. Agora, as paixões de Emma estão despertas. O jovem Léon, empregado de um advogado, é sua próxima vítima. Ela perde totalmente o equilíbrio. Toma emprestado dinheiro, mais do que poderá jamais devolver. Desespero. Suicídio. Depois da morte, Charles Bovary descobre a verdade. Fica pertubado sem saber o que pensar. E é só. Eis tudo. Uma história triste e, em parte, sórdida. Mas, atenção! Essa história não é simples como parece.

(...)

Até Amanhã!



In. Madame Bovary.Gustave Flaubert.Trad.:Sérgio Duarte. Ediouro, s/d, p.13-14.

Imagem:http://www.info-antike.de/ovid-amores.jpg

Otto Maria Carpeaux - Madame Bovary


Nesta passagem do texto, Carpeaux faz alguns questionamentos a respeito da filiação de Madame Bovary: realista ou naturalista? Empreende um passeio pelos lugares frequentados por Flaubert e desvela que ele (Flaubert) se valeu dos princípios da "ficção experimental", estabelecidos pelos irmãos Goncourt, para compor sua ficção.



"Emma Bovary c’est moi"


(...)



Em qualquer história da literatura francesa se pode ler que Madame Bovary “é o primeiro romance realista”, pela observação meticulosa e representação impossível da realidade. Essa observação talvez seja injusta em relação a Balzac; não teria sido realista? O fato de que Flaubert eliminou os elementos românticos da arte balzaquiana não é decisivo, pois não eliminou a todos. Por outro lado, os contemporâneos sempre consideravam Flaubert como naturalista, como precursor imediato de Zola. Conforme os critérios de Lukács, Madame Bovary não poderia ser classificado como romance naturalista (e muito menos as outras obras de Flaubert). Mas é inegável que o autor adotara os princípios da “ficção experimental”, estabelecidos pelos irmãos Goncourt, isto é: realizando por meios de ficção uma experiência com fatos encontrados na realidade. Também é inegável que Flaubert usou primeiro o método que mais tarde seria o de Zola: baseando sua ficção em documentação autêntica e usando notas de fatos observados. Flaubert não teria propriamente inventado o enredo nem os personagens. É, portanto, lícito perguntar pelas fontes de Madame Bovary.

O próprio Flaubert respondeu: Emma Bovary c’est moi.” Essa resposta é bastante estranha. Está em contradição flagrante com o propósito proclamado realista de excluir da sua obra todos os elementos pessoais; está em contradição com o antiromantismo de Flaubert, que exclui a intenção autobiográfica. Mas Flaubert certamente não quis dizer que seu próprio destino poderia ter sido o de sua triste heroína (a diferença de sexos já proíbe tomar ao pé da letra a identificação). Só quis dizer que ele encontrara sua própria mentalidade de romântico fracassado em personagem e ambiente que ele conhecia, que lhe eram familiares: suas fontes. Mas quais são essas fonte?

Em vida de Flaubert já correram boatos em Ruão: Emma Bovary teria sido esta ou aquela senhora, nesta ou naquela das pequenas aldeias ou cidadezinhas em torno de Ruão. Mas, só depois da morte do escritor, publicou o jornalista Georges Duboch, no “Journal de Rouen”, em novembro de 1890, a história toda.

Yonville, a aldeia na qual se passa o enredo do romance, podia ser identificada como Ry, aldeia normanda que Flaubert conhecia bem; entre seus papéis encontrou-se mesmo um mapa de Ry, desenhado por ele próprio. Em Ry viveu, por volta de 1840, a bela e sonhadora Delphine Conturier, que casou com o estúpido e vulgar médico Delamare, assim como no romance a bela e sonhadora Emma casa com o estúpido e vulgar médico Charles Bovary. Delphine Delamare manteve relações eróticas com o fazendeiro Campion, muito parecido com Rodolphe, o primeiro amante de Emma. Em Ry, viveu nas mesma época o farmacêutico Jouenne, quase irmão gêmeo do farmacêutico Homais no romance. Enfim, Delphine encontrou em 1848 o mesmo fim de Emma: o suicídio. Tudo exato. As explicações de Duboch foram geralmente aceitas. Em Ry, desenvolveu-se verdadeira indústria de turismo: os lugares em que se teria passado a vida de Emma Bovary foram mostrados mediante ingresso pago. Venderam-se fotografias apócrifas de Delphine Delamare. Mas tudo isso foi. Pois Youville não é somente parecida com Ry, mas com dezenas de outras aldeias normandas; e as cenas mais importantes e mais características da vida de Emma, antes do suicídio, não foram vividas por Delphine. Teria Flaubert traído o método por ele próprio escolhido, ao ponto de inventá-los livremente?


In. Madame Bovary.Gustave Flaubert.Trad.:Sérgio Duarte. Ediouro, s/d, p.12-13.

Imagem: http://www.imgartists.com/resources/artists/madame_bovary.jpg

Otto Maria Carpeaux


Nesta semana, vamos conhecer um belo ensaio do escritor austríaco Otto Maria Carpeaux sobre a genial obra de Gustave Flaubert: Madame Bovary. Mas antes de passarmos propriamente para leitura do ensaio, que publicaremos em algumas edições, devido à sua extensão, vamos conhecer um pouco do homem Carpeaux.


Otto Maria Carpeaux (Otto Karpfen, de nascimento), filho de pai judeu e mãe católica, nasceu em Viena (Áustria), em 9 de Março de 1900, onde cursou o ginasial. Ingressou na faculdade de direito, por sugestão familiar, abandonando-a um ano depois. Estudou filosofia (doutorou-se em 1925), matemática (em Leipzig), sociologia (em Paris), literatura comparada(em Nápoles) e política (em Berlim); além de dedicar-se à música. Em 1930 casou-se com Helena Carpeaux. Dedica-se intensamente à literatura e ao jornalismo político. Converte-se à religião católica e torna-se homem de confiança de dois primeiros-ministros em Berlim, Engelbert Dollfuss e Kurt Schuschnigg, os últimos primeiro-ministros antes do Reich Alemão respectivamente. Com a queda deste último, foi obrigado a seguir para o exílio. Em princípios de 1938 foge com a mulher para Antuérpia (Bélgica), onde ainda trabalha como jornalista na Gaset Van Antwerpen, maior jornal belga de língua holandesa. Diante da escalada nazista, Carpeaux ainda sente-se inseguro e foge com a mulher, em fins de 1939, para o Brasil. Aqui trabalha com jornalista, crítico literário e crítico musical, além de desenvolver inúmeras atividades intelectuais. Em 3 de fevereiro de 1978, sexta-feira de Carnaval, morre no Rio de Janeiro, de ataque cardíaco.



Madame Bovary

Por Otto Maria Carpeaux


Dicionários modernos da língua portuguesa definem como “bovarismo” o pendor de certos espíritos românticos para emprestarem a si mesmos uma personalidade fictícia e a desempenharem um papel que não se coaduna com a sua verdadeira natureza. O termo significa, portanto, a intervenção desastrosa de idéias pseudo-românticas na vida real: destino próprio de pessoas educadas sob os auspícios de falsos ideais e, depois da decepção inevitável, roídos pelos ressentimentos. O pensador francês Jules Gautier acreditava descobrir o mesmo “bovarismo” em grupos inteiros da sociedade, como a classe média empobrecida, que se esforça para viver conforme critérios aristocráticos; e até em nações (pensava ele nos latino-americanos de então, que perderam a autenticidade por julgarem-se afrancesados). Diz-se “bovarismo” assim como se diz “quixotismo”, “hamletismo”, “donjuanismo”. Trata-se de um dos grandes tipos da natureza humana e seu protótipo é Emma Bovary, a triste heroína do romance de Gustave Flaubert.

Madame Bovary ocupa, por vários motivos, posição central na história do gênero romance. Durante séculos esse gênero passara por ser leitura indecente e corruptora, proibida às mocinhas. O processo de reabilitação foi vagaroso, interrompido por recidivas e uma delas foi, em 1857, o processo movido contra o autor de Madame Bovary perante a Sexta Corte Correcional do Tribunal do Sena. Flaubert foi absolvido pelos juízes, mas não pelos críticos puritanos, que não lhe perdoaram o tratamento cru do tema: adultério. Mesmo mais tarde houve quem opusesse à “indecência” de Madame Bovary a visão “mais sublime” de outro e quase contemporâneo romance de adultério: Anna Karenina. É que os russos (e os ingleses, e os alemães, etc.) são moralistas, mas, em francês, a palavra “moralista” tem outro sentido: significa um homem que observa insubornavelmente as fraquezas humanas. Flaubert foi um “moralista” assim: um observador insubornável da realidade. Por isso a história literária o define como realista, ocupando a posição intermediária entre Balzac e Zola.

Ao grande crítico marxista George Lukács devemos uma distinção engenhosa entre o realismo de Balzac e o naturalismo de Zola. Mas nenhuma das duas definições é aplicável a Flaubert. Não é naturalista nem é propriamente realista. É, unicamente artista. Madame Bovary é, simplesmente, uma obra de arte. É a primeira obra de arte, conscientemente criada, na história desse gênero sem regras e sem arte que é o gênero Romance.

Gustave Flaubert nasceu em 1821 em Ruão, filho de um médico, de família abastada e enraizada na vida de província. Cresceu, dedicado a leituras românticas e sonhos românticos, em companhia dos amigos de infância, Louis Bouillet, mais tarde poeta parnasiano, e Alfred Le Poittevin, cuja irmã Laure, foi seu primeiro amor (ela casará com Gustave de Maupassant e será mãe do grande contista). Como estudante em Paris. Flaubert é romântico; mas seu primeiro romance, Novembre (que ele nunca publicou), já trata de amores carnais e desilusões amorosas. Viagens à Córsega, Itália, Egito. Em 1856, Madame Bovary. Processo por “publicações de escritores obscenos”. Flaubert fixa residência em Croisset, perto de Ruão, vivendo de rendas. Correspondência com as amigas Louise Colet e Georges Sand, a célebre romancista. Publica, sucessivamente, as obras-primas: Salammbô, L’Éducation Sentimentale, La Tentation de St. Antoine. Amizade com os irmãos Goncourt, Zola, Turguniev. Papel importante na formação literária do jovem Maupassant. Pela falência do marido de sua sobrinha, sérias dificuldades financeiras. Flaubert morreu a 8 de maio de 1880.

Além dos romances já mencionados – dos quais hoje em dia, sobretudo L’Éducation Sentimentale é considerado como obra-prima, escreveu Flaubert Trois Contes, três contos magistrais, entre o quais se prefere Um Coeur Simple. O romance Bouvard et Pécuchet ficou incompleto. Mas, em primeira linha, é Flaubert o autor de Madame Bovary.


(...)


Até amanhã!




In.Madame Bovary. Gustave Flaubert. Trad.: Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Ediouro. s/dp.11-12

Fonte da biografia de Otto Maria Carpeau: http://pt.wikipedia.org/wiki/Otto_Maria_Carpeaux

Imagem:http://3.bp.blogspot.com/_RJ1gFmh-xQw/So1eyxqcLCI/AAAAAAAABRg/iIP_zKU5l3w/s1600-h/CARPEAUX+1.jpg

Julio Florencio Cortázar - Última Parte


Chegamos ao final deste belo prefácio de Omar Prego (foto). Sinceramente, a mim me foi muito gratificante poder partilhar com todos os leitores do Banzeiro essas belas páginas. Amanhã, para deleite de todos, publicarei a primeira parte de um belo ensaio sobre Madame Bovary, de Gustave Flaubert, escrito por Otto Maria Carpeaux, escritor austríaco naturalizado brasileiro.




"Não se deve sacrificar a literatura à política nem banalizar a política em benefício de um esteticismo literário."




Sua passagem pelo magistério tampouco parecia importar-lhe muito. Ele foi professor em Chivilcoy e em Bolívar, na província de Buenos Aires, durante sete anos, entre 1937 e 1944. Numa entrevista que concedeu a Luis Harss no final da década de 1960, ele disse o seguinte:



No interior, vivi completamente isolado e solitário. Resolvi este problema, se é que se pode resolvê-lo, graças a uma questão de temperamento. Sempre fui muito voltado para dentro. Morava em pequenas cidades onde havia muito pouca gente interessante, praticamente ninguém. Passava o dia no meu quarto do hotel ou da pensão onde morava, lendo ou estudando. Isso foi ao mesmo tempo útil e perigoso para mim. Foi útil no sentido de que devorei milhares de livros. Toda a informação livresca que tenho está baseada naqueles anos. E foi muito perigoso no sentido em que me tirou provavelmente uma boa dose de experiência vital.



De sua estada na Universidade de Cujo, em Mendoza, não é muito o que disse:



Naqueles anos participei de uma luta política contra o peronismo e, quando Perón ganhou as eleições presidenciais, preferi renunciar às minhas aulas, antes de me ver obrigado a “virar a casaca”, como aconteceu com tantos colegas que optaram por continuar em seus postos.



Um de seus alunos de então, Cláudio Soria (jornal Los Andes, 25 de março de 1984), contribui com alguns dados sobre aquela etapa da vida de Cortázar. O programa do ano, conta, estava:



[...] consagrado ao comentário das obras de escritores ingleses e alemães. Fundamentalmente o interesse ficou centrado no romantismo inglês, nos poetas W. Blake, J. Keats, P.B. Shelley, S.T. Coleridge, W. Wordsworth, e nos alemães ou de língua alemã como Holderlin e R. M. Rilke.



Soria o recorda assim:



Na classe, sentado na frente dele, no começo o que chamava a nossa atenção era sua aparência extremamente adolescente, sua grande estatura, que dava a impressão, no momento em que ele ia se sentar, de que se dobrava em grandes segmentos, seus grandes olhos sombreados por sobrancelhas groassas. Mas muito mais singular era a qualidade da sua personalidade imediata, simples, modesta, não obstante a profundidade e a amplitude dos conhecimentos que demonstrava.

Fora do curso[continua Soria], em função dele, colaborou na revista de estudos clássicos do Instituto de Línguas e Literatura Clássicas da faculdade. No número 2 de 1956, publicou um ensaio sobre “A urna grega na poesia de John Keats. Cortázar tornou a visitar Mendoza em 1973 e dedicou-lhe alguns versos: “E és a de sempre, eu sinto outa vez o rumor das águas da noite, o perfume das tuas praças profundas.”



Julio Cortázar morreu. O que nos ficou é uma inesprimível sensação de súbito empobrecimento. Não porque nos falte a sua obra, que é o bastante para colocá-lo entre os maiores escritores do nosso tempo, e que nos acompanhará para sempre.


O que nos falatará é o seu aperto de mão, quente e franco, seu sorriso de boa-vindas, mas sobretudo a mão no ombro do amigo ou do desconhecido que sofre, essa mão que se estendia sem a menor vacilação para defender as melhores causas, a dos povos em luta, a dos perseguidos e dos humilhados da terra.


Durante sua última visita à Espanha, em fim de novembro de 1983, disse num programa de televisão sobre a Nicarágua uma coisa que termina por defini-lo:


Não se deve sacrificar a literatura à política nem banalizar a política em benefício de um esteticismo literário. Eu não acreditaria no socialismo como destino histórico para a América Latina se não estivesse movido por razões de amor.


FIM


In.O Fascínio das palavras.Trad.: Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p.16-18

Imagem: http://www.alfaguara.santillana.es/upload/autores/2005/105.jpg

Julio Florencio Cortázar




Seguimos com o depoimento de Cortázar, quando ele reflete sobre a sua condição de intelectual latino-amaericano e toca num ponto interessantíssimo: a de quem escreve para "seu regozijo ou sofrimento pessoal", sem fazer concessão a quem quer que seja.









(...)


Em última instância, você e eu sabemos de sobra que o problema do intelectual latino-americano é um só, o da paz baseada na justiça social, e que as diferenças nacionais de cada um de nós só subdividem a questão, sem tirar dela seu caráter básico(...). Sob o risco de decepcionar os catequistas e os defensores da arte a serviço das massas, continuo sendo este cronópio que, como dizia no começo, escreve para seu regozijo ou sofrimento pessoal, sem a menor concessão, sem obrigações “latino-americana” ou “socialistas”, entendidas a priori como pragmáticas.



E, finalmente, isto:



Mas não creio, como com toda comunidade pude “crer” em outra época, que a literatura de mera criação imaginativa baste para sentir que me realizei como escritor, já que minha noção dessa literatura mudou e contém em si o conflito entre a realização individual, conforme o humanismo entendia, e a realização coletiva, como entende o socialismo, conflito que alcança sua expressão mais dilacerante no Marat-Sade de Peter Weiss. Jamais escreverei expressamente para ninguém, maioria ou minorias, e a repercussão que meus livros tenham será sempre um fenômeno alheio à minha tarefa; sem dúvida, hoje sei que escrevo “para”, que existe uma intelectualidade que aponta a esperança de um leitor no qual exista a semente do homem do futuro.




Um militante, então.



Mais de uma vez, nestes últimos anos, nos encontramos em reuniões de solidariedade e em muitas delas Julio não estava na tribuna, mas no público, entre a massa de militantes anônimos que acabam descobrindo-o e que inevitavelmente se aproximavam para apertar sua mão generosa.

Em uma “Carta aberta a Julio Cortázar, amigo e militante”, publicada no México em Cuadernos de Marcha (segunda época), Pierre Bercis, presidente do Club des Droits Socialistes de l’Homme, destacou precisamente essa sua disposição para a militância obscura, anônima, despojada:




[...]quantas personalidades da sua estatura intelectual podem ser vistas permanecendo simples e militantes, até em pequenas reuniões cheias de fumaça de cigarro, quando nos juntávamos, três ou quatro pessoas, para trabalhar em tarefas modestas? Fosse em uma homenagem às Madres da Plaza de Mayo, em colóquios ou manifestações, sempre víamos chegar esse estudante altíssimo de setenta anos, que nos dava um abraço fraternal, sinal marcante de nossos amigo latino-americanos. E de imediato tínhamos a impressão de que nada de nefasto poderia nos recorrer, tanta era a calma e a serenidade que nos transmitia. Era um sábio que não dava lições: ele mesmo era uma lição para seus amigos mais jovens, que não conseguiam acreditar que Cortázar compartilhasse até mesmo suas menores preocupações.




.............................................................



Ao contrário do que ocorre com outros escritores (penso sobretudo em Gabriel Garcia Márquez), Cortázar não gostava muito de falar sobre sua infância e, quando falava, referia-se a fatos muito concretos. Há enormes vazios que nunca abordamos, apesar de Julio ter me avisado, ao começarmos estas entrevistas, que não haveria “teritórios proibidos”. Jamis mencionou o pai, por exemplo. A infância – conforme já contei – aparecia de repente numa evocação da época de Bánfield, que em suas lembranças se transforma em paraíso:



Cresci em Bánfield, numa casa com um grande jardim cheio de gatos, cachorros, tartarugas e periquitos: o paraíso. Mas nesse paraíso eu já era Adão, no sentido em que não guardo uma memória feliz da minha infância; obediência demasiada, sensibilidade excessiva, tristeza freqüente, asma, braços quebrados, primeiros amores desesperados (“Los venenos” é muito autobiográfico).



Escreveu Julio a seu amigo Alberto Sola em certa ocasião.



In.O Fascínio das palavras.Trad.: Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p.13-16.

Imagem: Cortázar com o escritor e amigo cubano José Lezzama Lima.

http://4.bp.blogspot.com/_RJ1gFmh-xQw/SoqpyhqFGwI/AAAAAAAABRI/pJ9mimQ87-8/s1600-h/cortazar-lezama11.jpg

Leia também

Valdivino Braz - Poema

Soldado ucraniano Pavel Kuzin foi morto em Bakhmut  - Fonte BBC Ucrânia em Chamas - Século 21                               Urubus sobrevoam...