INSONE




               


Francisco Perna Filho




As ruas nunca dormem.

Não há tempo para isso,

guardam os prédios que se esvaem em sono vertical.

Os porteiros não dormem nunca.

Não há tempo para isso,

guardam os donos nidificados

em sonhos de existência.

As mães nunca dormem,

velam os filhos errantes em bares e becos obscuros.

Os famintos,

os guardas,

as prostitutas,

assim como os cães,

exercem a insônia da sobrevivência.

Pelos olhos insones de todos estes

meus olhos vêem o inominado,

o imaterializável.

E, por muito ver,

meus olhos nunca dormem.

 

 Fonte da  imagem:http://www.baixaki.com.br/imagens/wpapers/BXK1757__4161-edificios-em-s.paulo-sp-brazil800.jpg


 

MANOEL DE BARROS - Abrindo fendas com o corpo


Francisco Perna Filho

 

 







“Há muitas maneiras sérias de não
dizer nada,mas só a poesia é verda-
deira.
(Manoel de Barros)


 

 

Por mais que se queira esquivar, não se pode falar em literatura sem buscar a sua inserção (mesmo que inconsciente) em um determinado contexto: histórico, político-social etc. João Alexandre Barbosa no seu livro As Ilusões da Modernidade assim nos fala:
 

“(...)a história do poema moderno nada tem a ver com a descrição de seu apogeus e declínio: é antes uma história que só se desvela no movimento interno de passagem de um para outro poema.”
 

O que João Alexandre quer nos dizer é que no fazer poético existe uma imbricação de muitas vozes ao longo do tempo e que só são percebidas a partir de um desvelamento do poema no seu processo de diálogo com o autor-leitor. E é nesse diálogo que irá se estruturar a poesia de Manoel de Barros, enriquecida pela alma criadora dos seus predecessores, os quais rompem com os cânones ultrapassados para estabelecer traços definidores da poesia moderna, como a subversão da linguagem, o desregramento do sentido, a desumanização e dispersão do Eu empírico. Traços fundamentais na construção da novidade poética desse cantor efetivo das coisas do Pantanal.

No presente trabalho, buscarei evidenciar os elementos supracitados, caracterizadores da poesia barreana, bem como as relações que este poeta estabelece com o substrato pantaneiro, elevando o seu bestiário a uma representatividade poética, plurissignificativa do ponto de vista imagético, enfatizando as manifestações da linguagem nas suas possibilidades eróticas e, ainda, apontando a presença criadora de Eros na sua constante luta com Tanatos:vida e morte. Para esse estudo adotarei, sempre que o autor estudado for citado, as iniciais do seu nome (M.B.), bem como as das suas obras que forem mencionadas, ficando, portanto, assim relacionadas: G.E.C. (Gramática Expositiva do Chão); P.C.S.P. (Poemas Concebidos Sem Pecado); F.I.(Face Imóvel); P. (Poesias); C.P.U.P.(Compêndio Para Uso dos Pássaros);M.P.(Matéria de Poesia);; A.A.(Arranjos para Assobio); L.P.C.(Livro de Pré-coisas); G.A.(O Guardador de Águas); L.S.N.(Livro Sobre o Nada); L.I.(Livro das ignorãças).

Na construção da sua poesia, M.B. dialoga com Arthur Rimbaud, Oswald de Andrade, Raul Bopp entre outros, ao passo que vai trilhando por caminhos, aparentemente banais, mas que se revelam sinuosos, profundos, num aspecto fragmentário e que vão se estruturando na desestruturação das construções já cristalizadas e gastas. Como poderemos comprovar no Livro das Ignorãças:

 

Em casa de caramujo até o sol encarde

(L.I.)p.25

 

Lembro um menino repetindo as tardes naquele quintal.

(L.I.)p.25
 

O autor retoma construções simples, gastas no aspecto semântico e recria a partir das mesmas um manancial imagético, campos plurissignificativos.

O primeiro verso pode nos remeter a construções do tipo:

 

Em casa de ferreiro espeto de pau (adágio popular)

 

Já o segundo não foge à regra:

 

Lembro de um papagaio repetindo as palavras naquele quintal.

 

Construções, que do ponto de vista poético nada representam, ou seja, não trazem nenhuma novidade significativa.
M.B. Elege uma linguagem onírica, fragmentada; rica em nuances surrealistas, que escandaliza pela vivacidade das suas imagens, como no livro Matéria de Poesia:

 

(...) saudade me urinava na perna

Um moço de fora criava um peixe na mão

Na parte seca do olho, a paisagem tinha formigas mortas(...)

(M.P.)p.196.

 

Ou ainda, em Arranjos Para Assobio, de composição cubista em que os blocos semânticos são justapostos, permitindo leituras em vários planos, onde a única lógica existente é a poética:

 

(...)Nos monturos do poema os urubus me farreiam.

Estrela é que é meu penacho!

Sou fuga para flauta e pedra doce.

A poesia me desbrava.

Com águas me alinhavo.

(A.A.)p.203.

 

Enlevado pelo seu poder criador, pela sensibilidade de sua percepção, M.B. libera a sua expressão cheia de plasticidade e com isso a sua poesia vai ganhando formas, passeando pelos recônditos do homem pantaneiro, ultimado pelo enlace com uma natureza prenhe, que anseia revelar-se como organismo vivo, pulsante e que traz em si o grito de insetos e larvas...um mundo nunca antes revelado, visto de baixo:

 

(...)No oco do acurizeiro o grosso canto do sapo é contínuo.

Aranhas caranguejeiras desde ontem aparecem de todo lado.

Dão ares de que saem do fundo da terra.

Formigas de roseiras dormem nuas.

Lua e árvore se estudam de noite.

Por dentro da alma das árvores, orelha-de-pau está se

preparando para nascer.

Todo vivente se assanha.

Até o inseto de estrume está virando.

Se ouve bem de perto o assobio dos bugios na orla do cerrado.

Cupins estão levantando andaimes.

(L.P.C.)p.235.

 

O poeta matogrossense, como ser criador, vai revelando a multiplicidade de vidas que habitam o pantanal e que traduzem a força criadora de Eros em sua constante luta com Tanatos: morte, traçando a conduta do ser no equilíbrio natural, já que para a sobrevivência de uns se faz necessário o desaparecimento de outros. Como nos fala Georges Bataille:

 

(...)Os que se reproduzem sobrevivem ao nascimento do que eles geram, mas essa sobrevivência não é senão um sursis. Um prazo é dado aos recém chegados, mas o aparecimento destes é a prova de um desaparecimento dos predecessores.”

 

Esse sursis de fala Bataille é ricamente mostrado no poema Agroval, onde a relação de trocas que se estabelece – no processo de multiplicação – entre os seres é bem caracterizada:

 

Agroval

 

Por vezes,nas proximidades dos brejos ressecos,

Quando as águas

Encurtam nos brejos, a arraia escolhe

Uma terra propícia,

Pousa sobre ela como um disco, abre

Abre com suas asas uma cama,

Faz chão úbere por baixo, e se

Enterra.

 

Por baixo de suas abas lateja um

Agroval de vermes, cascudos, girinos

E tantas espécies de insetos e

Parasitas, que procuram o sítio como

Ventre.

E a cabo de três meses de trocas e

Infusões,

A chuva começa a descer...e a arraia

Vai levantar-se.

Seu corpo deu sangue e bebeu.

Na carne ainda está embutido o fedor

De um carrapato.

 

É a pura inauguração de um outro

Universo.

(L.P.C.)p.232-4

 

M.B. funde o adjetivo agro, que quer dizer: acre, escabroso, com o substantivo val, forma apocopada de vale e forma o título do seu poema: Agroval, portanto um vale acre, escabroso; difícil de se imaginar que ali haja vida, que possa acontecer algo tão misterioso como essas trocas entre animais. O Poeta, ser astuto, refletindo a energia criadora de Eros, traz à tona as coisas ínfimas, ordinárias e com elas reinventa a natureza, criando espaços que fogem ao pitoresco, ao superficial fotográfico, como ele mesmo afirma a José Geraldo Couto – enviado da Folha de S. Paulo – que o entrevistara:

 

(...)É evidente que não cabe a nós inventar o mundo mais do que está inventado.

para ter algum sentido, você tem que fazer, através da palavra, um outro mundo.”

 

E acrescenta:

 

“Então, para que se invente um mundo novo, é preciso que a gente transfigure, em vez de copiar.”

 

E é na feitura de um outro mundo que M.B. nos apresenta um homem nas suas múltiplas faces: entranhado nas coisas do chão, participativo da realidade pantaneira, identificado com o desejo natural dos bichos do Pantanal e revelado nas pulsões eróticas destes, como veremos a seguir:

 

(...)Em passar a sua vagínula sobre as
pobres coisas do chão,

a lesma deixa risquinhos líquidos...

a lesma influi muito em meu desejo de
gosmar sobre as palavras

nesse coito com letras!

Na áspera secura de uma pedra a lesma
Esfrega-se

Na avidez de deserto que é a vida de uma
Pedra a lesma escorre...

Ela fode a pedra.

Ela precisa desse deserto para viver.

(G.A.)p.293.

 

M.B. concentra as suas imagens no que ele nomina, substantiva, antropomorfiza, como é o caso da lesma: animal quase sempre asqueroso, gosmento, marginal, que vem acompanhado de um caracol; por isso um duplo, como o é o poeta, que vai cavando espaços nas pedras, abrindo fendas com o corpo...empreendendo-se erótico na linguagem que adota. Para M.B. a lesma assim é definida:

 

Lesma, s.f.

Semente molhada de caracol que se
Arrasta

Sobre as pedras, deixando um caminho de
Gosma

Escrito com o corpo

Indivíduo que experimenta a lascívia do
Ínfimo

Aquele que viça de líquem no jardim.

(A.A.)p.215.

 

Assim como a lesma, os cascudos, o vasto bestiário pantaneiro, numa relação especular com o poeta, tornam-se matéria poética, liberam pulsões eróticas, empreendem-se figurativas, na acepção bartheana, plurissignificativas no momento em que se fundem com a natureza:

 

“(...)Por baixo das cascas podres, dizem, 

esses cascudos metem. Tais informações foram 

sempre dados por devaneios, por indícios, por 

força de eflúvios – A partir da fusão com a 

natureza esses bichos se tornam eróticos. Se 

encostavam no corpo da natureza para exercê-la. 

E se tornavam apêndice dela.”
(G.A.)p.284.

 

Sobre esse assunto, no livro Erotismo e Literatura, Jesus Antônio Durigan assim concebe o estabelecimento do erótico:

 

“(...)O erotismo, se assim podemos dizer, 

resultaria de um conjunto de relações ligadas ao 

princípio do ou decorrentes do princípio da 

realidade, de cujo inter-relacionamento se 

configurariam os lugares dos sujeitos. Esses 

lugares marcados pela falta, pela necessidade, 

corresponderiam aos espaços dos sujeitos 

mediatizados e orientados para a consecução do 

prazer, a supressão da necessidade, suas atuações, 

seus papéis, no espetáculo erótico.

 

É interessante observar como o poeta, através da linguagem, vai tecendo esse conjunto de relações, de que fala Jesus Durigan, significativas que irão configurar o texto erótico:

 

Uma palavra abriu o roupão pra
mim

Ela deseja que eu a seja.

(L.S.N.)p.70

 

Já para Roland Barthes, em O Prazer do Texto, referindo-se sobre o lugar do erótico no corpo, na cultura e na palavra, assim o define:

 

“(...) Nem a cultura nem a sua destruição 

são eróticas; a fenda entre ambas é que se torna 

erótica”. E acrescenta: O lugar mais erótico de um 

corpo não é o ponto em que o vestuário se entreabre?

 

O que se pode interpretar dessa fenda é que ela é a novidade significativa, que, no caráter do inesperado, faz vir à tona a novidade poética como força da atuação do sujeito no desejo de revelar-se...do vir a ser. É a linguagem como força reveladora, como veremos:

“A terapia literária consiste em

desarrumar a linguagem

a ponto que ela expresse nossos mais
fundos desejos.”

(L.S.N.)p.70.


M.B., no conjunto de sua obra, busca a expressão mais pura, fecundada no seio de uma natureza muitas vezes desconhecida, anônima, mítica...mas louca por revelar-se. Uma natureza que fala para quem sabe ouvi-la...uma natureza que também é linguagem, como afirma Mikel Dufrenne no seu livro O Poético:

“A linguagem é de per si natureza, mas é 

uma natureza que fala e que inspira, testemunha e 

expressão, diremos, de uma natureza naturante que 

por si mesma nos fala.” E acrescenta: “Se o poeta 

trata a linguagem como coisa natural, é talvez 

pressupondo uma natureza falante. É em todo caso 

respeitando a função semântica da linguagem, 

elevando ao máximo seu potencial expressivo; esse 

potencial será tanto mais elevado quanto mais a 

palavra for restituída à sua natureza e reconduzida 

à sua origem.”

E foi assim, que, seduzido pela Linguagem-natureza” e pela “natureza-naturante”, busquei fazer uma reflexão crítica sobre o Poeta do Pantanal e nele descobri um menino levado, que brinca com as palavras, terapeutizado pelos seus delírios verbais; congraçado pelas antíteses de Baudelaire...quando, na pretensão de obter sabedoria vegetal, chega ao criançamento das palavras e abre um descortínio para o arcano.

Fonte da imagem:http://3.bp.blogspot.com/_RJ1gFmh-xQw/SggZu3bN9pI/AAAAAAAAAe0/GqL98P2EYcU/s1600-h/lesma.jpg

FELIZ DIA DAS MÃES












Meu filho...

 

              É manhã e eu me vejo com outros olhos, João Pedro, meu filho. Olhos de quem abrasa o mundo: muitas vezes terno, muitas vezes vil, muitas vezes desumano e cheio de dores. Dores que em nós vêm se fundindo nesses tempos todos para que, de uma forma plena, pudéssemos estabelecer o canto do qual farás parte.

           No princípio era o verbo: “era”, “eras” e agora, a menos de dez meses, a pessoa se transforma e somos “NÓS” – Nós, que modificou o meu coração e o corpo da tua mãe, que de forma iluminada te tem acalentado os sonos e sonhos e que se transforma para receber-te.

           Meu filho, assim posso chamar-te, beijar-te, iluminar-me com a tua luz e chorar com o teu choro, rir com teus gestos e passear com os teus olhos tomados de inocência e inspiração. Confesso-te iluminado, João Pedro, meu filho, parte minha, que em ti está o meu simples legado: a alegria das manhãs de sol, a tristeza das partidas e a exaltação poética e idílica dos que lêem a alma do mundo.

BEM-VINDO!!!

Francisco Perna Filho

18 de abril, de 1996.

  

Fonte da imagem: http://matrice.files.wordpress.com/2009/01/virgem-amamentando.jpg

                


OS DEMÔNIOS SÃO MAIS NOBRES


“Pelo sinal  da Santa Cruz, livrai-nos Deus, Nosso Senhor, dos nossos inimigos”

 

 

                                                                                    Francisco Perna Filho

 

         




Persignar-se, é esse o termo, ante o desconhecido. A evocação do sagrado para o socorro das nossas aflições terrenas, dos nossos temores,da precisão nossa de cada dia. Um olhar que se volta para os céus, um andar que caminha para adiante, um sentir-se que projeta a proteção. A vida transformada pela prece, tão necessária nesses conturbados dias em que vivemos.

          A miséria humana, o clamor dos pobres da América, o silenciar dos poderosos. Tempos difíceis em céu de brigadeiro. O progresso material que se propala, fragiliza o espírito do homem bom, escarnece  a nobreza dos atos, matando no ser a esperança e a fé no sagrado.

          Se a fé, a evocação do sagrado, a busca da proteção divina, são alentos para o ser que enxerga o enredo do mal. O que será do ser  que sofre os “infortúnios da sorte”, as tramas desse mal e insiste em desconhecê-las? Pior ainda, o indivíduo que tudo sabe, que tudo conhece, e vale-se do sagrado, do nome de Deus para amealhar bens e poder, para tramar e beneficiar os seus, para perseguir e castigar, maquiado na sua bondade, passando-se por bom na “profissão” que exerce, na religião que prega, na reunião que conduz.

           O Ser que assim age, esquece-se do verdadeiro significado de ser cristão, impelido pela ganância, apropria-se da “verdade”, do poder, para escravizar, humilhar, perseguir, sempre na pele de cordeiro, sempre bom aos olhos dos que olham de fora e nada vêem. Um sorriso sempre aberto, um brilho no olhar que cega, já que tudo isso faz parte do jogo, da trama, da maledicência. Ao se julgar inteligente demais, desconhece a própria incompetência, o ridículo que representa, porquanto os seus séquitos sempre estão a bajulá-lo, a fazê-lo acreditar que é importante e potente, que age sensatamente. Que, ao humilhar, perseguir, alijar do processo, nada mais faz do que castigar o indivíduo que contra ele se rebelou, ou por tão somente não ter com ele simpatizado.

           Os demônios são mais nobres, se nos apresentam como tal: ruins, perversos, demoníacos. Não querem camuflar nada, vivem das artimanhas que inventam. O objetivo que buscam é tão somente o mal. Contra eles, temos a prece, a cruz, o “pelo sinal”, água benta (lustral), os bons pensamentos. Contra os outros, os da pele de cordeiro, o que temos é a sorte de não cair nas suas teias, de não fazermos parte do seu ódio, de termos, acima deles, a quem possamos recorrer. Alguém que nos possa  proteger.

Fonte da imagem: http://www.cristianoveronez.com/images/Image/terco.gif

          

CRIAÇÃO E VANGUARDA: BOPP E BARROS



Lançamento do Livro:Criação e Vanguarda”,

V Salão do Livro do Tocantins - Dia 12 de maio (terça feira)- 16h30min, às 18h - Café Literário.

 

 




SOBRE O LIVRO

O livro define-se pela leitura da obra poética do poeta Sul-Matogrossense Manoel de Barros, enfatizando a interloocução que ele mantém com o poeta modernista, Sul-Rio-Grandense, Raul Bopp, particularmente na obra Cobra Norato, de 1931. Nesta perspectiva, são caracterizados os elementos constitutivos da poesia dos dois: a subversão da linguagem, a consciência criadora, as metáforas do animismo , e a opção que eles mantêm pelo comum, pelos párias e pelas insignificâncias, bem como uma predileção pela natureza. Manoel de Barros, o Pantanal Matogrossense; Raul Bopp, a Floresta Amazônica. Consonante a isto, reflete-se a "historicidade" do fazer poético dos dois, ao traçar-se a precursoriedade da poesia de Manoel de Barros e o caráter metalinguístico na sua poesia, bem como os avanços que ele consegue na sua composição lírica. Este livro é fruto da minha Dissertação de Mestrado – UFG – sob orientação da Professora Doutora Goiandira Ortiz de Camargo. 

GAUCHE



Francisco Perna Filho








O bruto ser que brota

nos olhos finos do gato,

em plena luz refletida.

A loucura da palavra,

que me impede a boca,

no beijo travo da louca

que me assalta o sonho.

 

Um caminho

que nunca volta,

a porta em desalinho

na sombra que me reflete torto.

O passarinho rouco

em desacelerado canto

um beijo tenso guardado

Quando me levanto.

 

Tarde tarda tantas vezes o sono,

sou assim assado sempre que me escondo,

me escudo,

me recuso,

nunca me acho.

A fina flor que carrego

morreu de orvalho

 

Fonte da imagem: http://ipt.olhares.com/data/big/135/1355524.jpg

AMADA PÁTRIA





 






                                                      Francisco Perna Filho



Os gordos porcos enfeitam as praças com as suas barrigas,
Infestam as flores da lama que são,
em arrotos túneis despejam palavras
e se prolongam em gazes furiosos,
em espasmos homéricos,
em fraudulentas fuçadas.
Os gordos porcos invadem as câmaras municipais,
assembléias legislativas,
Palácios,
Igrejas
e se proclamam justos,
removem tudo que ali está,
detritam a boa fé do homem bom
e arrastam a esperança de quem pede socorro.
São paroquiais,
municipais,
estaduais
e federais.
Estão em toda parte.
Os gordos porcos passeiam livres e tranqüilos pelos shoppings,
gastam rios de dinheiro público,
Jogam lama nas ruas limpas
E cavam buracos nas colunas sociais.
Os gordos porcos enfeitam as suas casas com o resto da fé dos humildes
e se confessam também humildes,
quando reclamam da penúria que vivem.
Os gordos porcos não têm dono,
Não têm escrúpulo,
Nem piedade.
Os gordos porcos adoram lavagem,
Viagem e poder.
Os gordos porcos:

Ronc-ronc-ronc!

 

Fonte da imagem: http://blogdaamasjase.zip.net/images/Porcos.ong.jpg    

VÔO

Francisco Perna Filho

 


 



Aéreo vivo,
Aéreo passo,
Aéreo parto,
Aéreo porto-me,
Aterrisso.
Aeroporto.

 

 Fonte da imagem: http://2.bp.blogspot.com/_RJ1gFmh-xQw/SgDhoGp3JSI/AAAAAAAAAaM/P70aUjye1G4/s1600-h/14+BIS.jpg

VISGO


Francisco Perna Filho



As pernas daquela moça eram longe,
distantes de tudo,
longínquas
e humildes.
As pernas dela
souberam dos meus olhos,
ignoraram distâncias.
Fechamos a porta.



A SALA



 

 






A saia,
a sílaba,
a língua
sibila
na blusa,
no bico
do seio,
no meio
“um riso”
tirado no
instante.
O umbigo,
a língua,
tão ávida,
nas coxas
tão doces
da moça:
a Sereia
ofegante
quer o dedo,
que percorre
segredos e,
por sorte,
acha o Norte,
o caminho:
uva pura,
puro vinho.
É a língua,
É o dedo
na Sereia
já desnuda
que se inunda
de estrelas.
Tão bela fêmea,
Profundos
olhos
revelam a alma
Alma molhada.

 
Molhada
a língua
se precipita
na selva densa
dessa menina,
formosa mina
solta um
gemido
o dedo alcança
uma nova fonte
e por um instante:
mais um gemido
a sílaba,
a sala,
a saia
e os seios
prestes a explodir.
Um novo toque,
Um bom perfume
E a maravilha
Entreaberta:
Bendita flor,
Formosa fenda,
Deliciosa prenda;
Tão pura brecha,
é bela a festa...
Celebração!
A língua entra
e toma posse,
ela percorre
bem devagar
e a Sereia
geme mansinho
não se contendo
pede muito mais:
o falo fala
penetra fundo
abrindo as coxas
de sua amada
um gozo pleno
é começado;
um grito fundo
pronunciado.
O falo,
A língua,
O dedo,
A sílaba,
A saia,
A blusa,
A sala!


Fonte da imagem: http://3.bp.blogspot.com/_kHgJnZp8kIg/SXCcKtUGT4I/AAAAAAAABKM/Daz9i-eeg0Q/s400/Seios.jpg

PLENILÚNIO



Francisco Perna Filho

 

 

                                               

Uma bola de fogo cruzou o céu da fazenda e, rodopiante, acompanhou os mesmos movimentos de Natinho em volta da fogueira de São João, por um momento, pareceu coalhada no firmamento, todos a observavam, ao passo que se voltavam para o menino, que também inerte se perdia no pesadelo do esquecimento. A bola saiu do seu descanso aparente, zigzagueou por sete vezes, descendo em disparada de encontro ao peito de Natinho, que se desfez em cinzas. Naquela noite.

Um menino, um rádio e a ilusão do futebol. Foi assim que muitos disseram, anos depois, quando Natinho já não estava mais entre nós. Era Copa do Mundo de Futebol, México, 1970, estávamos reunidos em volta de uma mesinha de centro, no alpendre da minha casa, ouvindo um rádio à válvula, quando ele chegou. Tinha os olhos tristes e distantes e uma palidez de ausências. Viera com a sua mãe e dela não se desgrudara por nenhum instante até o apito final, quando o Brasil venceu a Itália por 4 a 1 no estádio Azteca.

Durante a narração do jogo, num dado momento, começou a girar em torno de si mesmo, até cair desfalecido. Foi um alvoroço. Trouxeram álcool, esfregaram nos seus pulsos. Jogaram água na sua cabeça, e nada. Quando já pensavam em chamar o médico, ele começou a se mexer e, como se nada tivesse acontecido, abriu os olhos e levantou-se tranqüilamente. A mãe, sem se pronunciar, o pegou pelo braço e o levou para fora da casa. O jogo já estava no fim. Ouviu-se uma gritaria, foguetes e muito riso. O Brasil sagrara-se tricampeão do Mundo.

Alguns dias se passaram, e eu, ao voltar do trabalho, deparei-me com o menino, com os olhos arregalados, um cabo de vassoura na mão, e o rádio à válvula todo destruído. Sem saber o que fazer, pedi que chamassem a mãe dele, na casa ao lado. Quando ela veio, o menino começou a berrar e a pular repetidas vezes. Ela o pegou pela orelha, pediu-me desculpas, prometendo arcar com o prejuízo, e o levou embora. Mais tarde vim a saber o porquê daquela destruição. Por insistência de um garoto, filho da dona da casa na qual ele estava hospedado, resolvera procurar, por entre as válvulas, os homens que narravam o jogo com a promessa de ganhar - deles - uma bola.

 

Desde cedo, Natinho demonstrou uma predileção pela forma circular, arredondada. Ainda no meu colo teve a sua primeira experiência com essa forma, quando, na Lua Cheia de Áries, gritou descontroladamente e pinoteou, como querendo se soltar dos meus braços, para depois adormecer profundamente. E foi assim durante muito tempo, por doze ou treze vezes ao ano, repetia o ritual do plenilúnio, postava-se no batente da porta, que dava para o pátio, e ali, após um longo momento de contemplação, começava falar em uma língua estranha e rodopiar em volta de si mesmo, até cair inconsciente. 

 

Cresceu contando as luas, e, naqueles dias que antecediam ao espetáculo celeste, ele se transformava, ficava quieto, silencioso e isolado. Gostava de refugiar-se na Grota, um riacho de água gelada, que passava atrás do sítio da fazenda. Sentava-se na sua ribanceira, e de lá atirava pedras na água. Encantava-se com os círculos que iam se formando, crescendo e indo embora. Entre uma pedra e outra, aproveitava para fazer rolar, ladeira abaixo, as laranjas que trazia consigo, num misto de gozo e felicidade.

 

Natinho cresceu e, aos dez anos, ficou extasiado ao se deparar com um repolho, sobre a mesa da cozinha, aquela lua verde esbranquiçada, todo fundido em camadas, como ele viria a chamá-lo. Depois do susto, ficou andando por uma hora em volta da mesa, numa contemplação circunferencial, sem saber o porquê daquele sentimento. Durante toda aquela semana pensou no repolho, chegou até sonhar que ele tinha vida e eles eram amigos. Jamais aceitou comê-lo e repreendia, enfurecido, quem o fizesse na sua frente.

 

Desde a primeira vez que vira uma bola, nunca mais tivera sossego. Foi num exemplar da revista Cruzeiro, esquecida por um visitante na varanda da nossa casa. Naquele dia, algo mágico aconteceu. Ficou transtornado, deu cambalhotas, chorou. Até então só conhecia as bolinhas de meia que eu confeccionava para ele brincar. Depois disso, não quis mais comer, não saia do quarto, sempre trazia consigo a fotografia da bola, comprimida no peito nu e esguio. Uma paixão avassaladora.

 

O tempo passava e Natinho parecia mais esquisito, mais só, redondo nas suas elucubrações, nos seus pensamentos e visões, como a que ele tivera no momento que estava no curral ajudando o pai na ordenha do gado, como ele mesmo me dissera, e uma Lobeira, dessas bem grandes e verdes, desprendeu-se não se sabe de onde e começou a levitar, movendo-se em círculos, depois caiu e quicou inúmeras vezes, até desaparecer por detrás do curral. Seu pai nada percebera, mas jamais acreditou que o nosso filho estivesse predestinado ao encantamento, como os fatos viriam a se confirmar, anos depois. Na noite em que comemorámos o Pentacampeonato, uma bola de fogo cruzou o céu da fazenda. À primeira vista, pensávamos que fosse fogos de artifício, algo a mais na comemoração da vitória do Brasil sobre a Alemanha, apenas pensamos, porque ela parecia repetir os movimentos do nosso filho. Ao sair do seu descanso aparente, zigzagueou por sete vezes, descendo em disparada de encontro ao peito dele, que se desfez em cinzas.


Fonte da imagem: http: //2.bp.blogspot.com/_RJ1gFmh-xQw/Sf91QlRap6I/AAAAAAAAAY8/Gs7_mq1828w/s1600-h/bola.jpg 

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