Monteiro Lobato - Conto




O Colocador de Pronomes






Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática.

Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática.

E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática.

Martir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização,

Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense” , com bastante sucesso.

Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.

Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutú da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.

Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostorura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dia de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o

Acorda, donzela…

Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.

Aqui se estrepou…

Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:

Anjo adorado!

Amo-lhe!

Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas, explicou.

Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha.

Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:

- A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor deslize.

Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o

- É sua esta peça de flagrante delito?

O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.

- Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar… Pois agora…

O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.

- … é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.

O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:

- Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!…

Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.

- Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!

E voltando-se para dentro, gritou:

- Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!

O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.

- Laurinha, quer o coronel dizer…

O velho fechou de novo a carranca.

- Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama-”lhe”. Se amasse a ela deveria dezer amo-”te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher…

- Oh, coronel…

- … ou a preta Luzia, cozinheira. Escolha!

O escrevente, vencido, derrubou a cabeça com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição da gramática matrimonial.

- Os pronomes, como sabe, são três: da primeira pessoa – quem fala, e neste caso vassuncê; da Segunda pessoa – a quem fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa – de quem se fala, e neste caso do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!

Não havia fuga possível.

O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo acanhada a ponta do avental. Viu também sobre a secretária uma garrucha com espoleta nova ao alcance do maquiavélico pai, submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente:

- Deus vos abençoe, meus filhos!

No mês seguinte, e onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professor Aldrovando, o conspícuo sabedor de língua que durante cinqüenta anos a fio coçaria na gramática a sua incurável sarna filológica.

Até aos dez anos não revelou Aldrovando pinta nenhuma. Menino vulgar, tossiu a coqueluche em tempo próprio, teve o sarampo da praxe, mas a cachumba e a catapora. Mais tarde, no colégio, enquanto os outros enchiam as horas de estudo com invenções de matar o tempo – empalamento de moscas e moidelas das respectivas cabecinhas entre duas folhas de papel, coisa de ver o desenho que saía – Aldrovando apalpava com erótica emoção a gramática de Augusto Freire da Silva. Era o latejar do furúnculo filológico que o determinaria na vida, para matá-lo, afinal…

Deixêmo-lo, porém, evoluir e tomêmo-lo quando nos serve, aos 40 anos, já a descer o morro, arcado ao peso da ciência e combalido de rins. Lá está ele em seu gabinete de trabalho, fossando à luza dum lampião os pronomes de Filinto Elísio. Corcovado, magro, seco, óculos de latão no nariz, careca, celibatário impenitente, dez horas de aulas por dia, duzentos mil réis por mês e o rim volta e meia a fazer-se lembrado.

Já leu tudo. Sua vida foi sempre o mesmo poento idílio com as veneráveis costaneiras onde cabeceiam os clássicos lusitanos. Versou-os um por um com mão diurna e noturna. Sabe-os de cór, conhece-os pela morrinha, distingue pelo faro uma séca de Lucena duma esfalfa de Rodrigues Lobo. Digeriu todas as patranhas de Fernão Mendes Pinto. Obstruiu-se da broa encruada de Fr. Pantaleão do Aveiro. Na idade em que os rapazes correm atrás das raparigas, Aldrovando escabichava belchiores na pista dos mais esquecidos mestres da boa arte de maçar. Nunca dormiu entre braços de mulher. A mulher e o amor – mundo, diabo e carne eram para ele os alfarrábios freiráticos do quinhentismo, em cuja soporosa verborréia espapaçava os instintos lerdos, como porco em lameiro.

Em certa época viveu três anos acampado em Vieria. Depois vagabundeou, como um Robinson, pelas florestas de Bernardes.

Aldrovando nada sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava o presente. Passarinho conhecia um só: o rouxinol de Bernadim Ribeiro. E se acaso o sabiá de Gonçalves Dias vinha citar “pomos de Hesperides” na laranjeira do seu quintal, Aldrovando esfogueteava-o com apostrofes:

- Salta fora, regionalismo de má sonância!

A língua lusa era-lhe um tabu sagrado que atingira a perfeição com Fr. Luiz de Sousa, e daí para cá, salvo lucilações esporádicas, vinha chafurdando no ingranzéu barbaresco.

- A ingresia d’hoje, declamava ele, está para a Língua, como o cadáver em putrefação está para o corpo vivo.

E suspirava, condoído dos nossos destinos:

- Povo sem língua!… Não me sorri o futuro de Vera-Cruz…

E não lhe objetassem que a língua é organismo vivo e que a temos a evoluir na boca do povo.

- Língua? Chama você língua à garabulha bordalenga que estampam periódicos? Cá está um desses galicígrafos. Deletreemo-lo ao acaso.

E, baixando as cangalhas, lia:

- Teve lugar ontem… É língua esta espurcícia negral? Ó meu seráfico Frei Luiz, como te conspurcam o divino idioma estes sarrafaçais da moxinifada!

- … no Trianon… Por que, Trianon? Por que este perene barbarizar com alienígenos arrevesos? Tão bem ficava – a Benfica, ou, se querem neologismo de bom cunho o Logratório…Tarelos é que são, tarelos!

E suspirava deveras compungido.

- Inútil prosseguir. A folha inteira cacografa-se por este teor. Aí! Onde param os boas letras d’antanho? Fez-se peru o níveo cisne. Ninguém atende à lei suma – Horácio! Impera o desprimor, e o mau gosto vige como suprema regra. A gálica intrujice é maré sem vazante. Quando penetro num livreiro o coração se me confrange ante o pélago de óperas barbarescas que nos vertem cá mercadores de má morte. E é de notar, outrossim, que a elas se vão as preferências do vulgacho. Muito não faz que vi com estes olhos um gentil mancebo preferir uma sordície de Oitavo Mirbelo, Canhenho duma dama de servir, (1) creio, à… advinhe ao que, amigo? A Carta de Guia do meu divino Francisco Manoel!…

- Mas a evolução…

- Basta. Conheço às sobejas a escolástica da época, a “evolução” darwinica, os vocábulos macacos – pitecofonemas que “evolveram”, perderam o pelo e se vestem hoje à moda de França, com vidro no olho. Por amor a Frei Luiz, que ali daquela costaneira escandalizado nos ouve, não remanche o amigo na esquipática sesquipedalice.

Um biógrafo ao molde clássico separaria a vida de Aldrovando em duas fases distingas: a estática, em que apenas acumulou ciência, e a dinâmica, em que, transfeito em apóstolo, veio a campo com todas as armas para contrabater o monstro da corrupção.

Abriu campanha com memorável ofício ao congresso, pedindo leis repressivas contra os ácaros do idioma.

- “Leis, senhores, leis de Dracão, que diques sejam, e fossados, e alcaçares de granito prepostos à defensão do idioma. Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem ao semelhante a vida tira. Vêde, senhores, os pronomes, em que lazeira jazem…

Os pronomes, aí! Eram a tortura permanente do professor Aldrovando. Doía-lhe como punhalada vê-los por aí pré ou pospostos contra-regras elementares do dizer castiço. E sua representação alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais da pátria à criação dum Santo Ofício gramatical.

Os ignaros congressistas, porém, riram-se da memória, e grandemente piaram sobre Aldrovando as mais cruéis chalaças.

- Quer que instituamos patíbulo para os maus colocadores de pronomes! Isto seria auto-condenar-nos à morte! Tinha graça!

Também lhe foi à pele a imprensa, com pilhérias soezes. E depois, o público. Ninguém alcançara a nobreza do seu gesto, e Aldrovando, com a mortificação n’alma, teve que mudar de rumo. Planeou recorrer ao púlpito dos jornais. Para isso mister foi, antes de nada, vencer o seu velho engulho pelos “galicígrafos de papel e graxa”. Transigiu e, breve, desses “pulmões da pública opinião” apostrofou o país com o verbo tonante de Ezequiel. Encheu colunas e colunas de objurgatórias ultra violentas, escritas no mais estreme vernáculo.

Mas não foi entendido. Raro leitor metia os dentes naqueles intermináveis períodos engrenados à moda de Lucena; e ao cabo da aspérrima campanha viu que pregara em pleno deserto. Leram-no apenas a meia dúzia de Aldrovandos que vegetam sempre em toda parte, como notas rezinguentas da sinfonia universal.

A massa dos leitores, entretanto, essa permaneceu alheia aos flamívomos pelouros da sua colubrina sem raia. E por fim os “periódicos” fecharam-lhe a porta no nariz, alegando falta de espaço e coisas.

- Espaço não há para as sãs idéias, objurgou o enxotado, mas sobeja, e pressuroso, para quanto recende à podriqueira!… Gomorra! Sodoma! Fogos do céu virão um dia alimpar-vos a gafa!… exclamou, profético, sacudindo à soleira da redação o pó das cambaias botinas de elástico.

Tentou em seguida ação mais direta, abrindo consultório gramatical.

- Têm-nos os físicos (queria dizer médicos), os doutores em leis, os charlatãs de toda espécie. Abra-se um para a medicação da grande enferma, a língua. Gratuito, já se vê, que me não move amor de bens terrenos.

Falhou a nova tentativa. Apenas moscas vagabundas vinham esvoejar na salinha modesta do apóstolo. Criatura humana nem uma só lá apareceu afim de remendar-se filologicamente.

Ele, todavia, não esmoreceu.

- Experimentemos processo outro, mais suasório.

E anunciou a montagem da “Agência de Colocação de Pronômes e Reparos Estilísticos”.

Quem tivesse um autógrafo a rever, um memorial a expungir de cincas, um calhamaço a compor-se com os “afeites” do lídimo vernáculo, fosse lá que, sem remuneração nenhuma, nele se faria obra limpa e escorreita.

Era boa a idéia, e logo vieram os primeiros originais necessitados de ortopedia, sonetos a consertar pés de verso, ofícios ao governo pedindo concessões, cartas de amor.

Tais, porém, eram as reformas que nos doentes operava Aldrovando, que os autores não mais reconheciam suas próprias obras. Um dos clientes chegou a reclamar.

- Professor, v. s. enganou-se. Pedi limpa de enxada nos pronomes, mas não que me traduzisse a memória em latim…

Aldrovando empertigou-se.

- Pois, amigo, errou de porta. Seu caso é alí com o alveitar da esquina.

Pouco durou a Agência, morta à míngua de clientes. Teimava o povo em permanecer empapado no chafurdeiro da corrupção…

O rosário de insucessos, entretanto, em vez de desalentar exasperava o apóstolo.

- Hei-de influir na minha época. Aos tarelos hei de vencer. Fogem-me à férula os maráus de pau e corda? Ir-lhes-ei empós, fila-los-eis pela gorja… Salta rumor!

E foi-lhes “empós”, Andou pelas ruas examinando dísticos e tabuletas com vícios de língua. Descoberta a “asnidade”, ia ter com o proprietário, contra ele desfechando os melhores argumentos catequistas.

Foi assim com o ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda uma tabuleta – “Ferra-se cavalos” – escoicinhava a santa gramática.

- Amigo, disse-lhe pachorrentamente Aldrovando, natural a mim me parece que erre, alarve que és. Se erram paredros, nesta época de ouro da corrupção…

O ferreiro pôs de lado o malho e entreabriu a boca.

- Mas da boa sombra do teu focinho espero, continuou o apóstolo, que ouvidos me darás. Naquela tábua um dislate existe que seriamente à língua lusa ofende. Venho pedir-te, em nome do asseio gramatical, que o expunjas.

- ? ? ?

- Que reformes a tabuleta, digo.

- Reformar a tabuleta? Uma tabuleta nova, com a licença paga? Estará acaso rachada?

- Fisicamente, não. A racha é na sintaxe. Fogem ali os dizeres à sã gramaticalidade.

O honesto ferreiro não entendia nada de nada.

- Macacos me lambam se estou entendendo o que v. s. diz…

- Digo que está a forma verbal com eiva grave. O “ferra-se” tem que cair no plural, pois que a forma é passiva e o sujeito é “cavalos”.

O ferreiro abriu o resto da boca.

- O sujeito sendo “cavalos”, continuou o mestre, a forma verbal é “ferram-se” – “ferram-se cavalos!”

- Ahn! Respondeu o ferreiro, começo agora a compreender. Diz v. s. que …

- … que “ferra-se cavalos” é um solecismo horrendo e o certo é “ferram-se cavalos”.

- V. S. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele “se” da tabuleta refere-se cá a este seu criado. É como quem diz: Serafim ferra cavalos – Ferra Serafim cavalos. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e ficou como está: Ferra Se (rafim) cavalos. Isto me explicou o pintor, e entendi-o muito bem.

Aldrovando ergueu os olhos para o céu e suspirou.

- Ferras cavalos e bem merecias que te fizessem eles o mesmo!… Mas não discutamos. Ofereço-te dez mil réis pela admissão dum “m” ali…

- Se V. S. paga…

Bem empregado dinheiro! A tabuleta surgiu no dia seguinte dessolecismada, perfeitamente de acordo com as boas regras da gramática. Era a primeira vitória obtida e todas as tardes Aldrovando passava por lá para gozar-se dela

Por mal seu, porém, não durou muito o regalo. Coincidindo a entronização do “m” com maus negócios na oficina, o supersticioso ferreiro atribuiu a macaca à alteração dos dizeres e lá raspou o “m” do professor.

A cara que Aldrovando fez quando no passeio desse dia deu com a vitória borrada! Entrou furioso pela oficina a dentro, e mascava uma apóstrofe de fulminar quando o ferreiro, às brutas, lhe barrou o passo.

- Chega de caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no serviço e na língua, sou eu. E é ir andando antes que eu o ferre com bom par de ferros ingleses!

O mártir da língua meteu a gramática entre as pernas e moscou-se.

- “Sancta simplicitas!” ouviram-no murmurar na rua, de rumo à casa, em busca das consolações seráficas de Fr. Heitor Pinto. Chegado que foi ao gabinete de trabalho, caiu de borco sobre as costaneiras venerandas e não mais conteve as lágrimas, chorou…

O mundo estava perdido e os homens, sobre maus, eram impenitentes. Não havia desviá-los do ruim caminho, e ele, já velho, com o rim a rezingar, não se sentia com forças para a continuação da guerra.

- Não hei-de acabar, porém, antes de dar a prelo um grande livro onde compendie a muita ciência que hei acumulado.

E Aldrovando empreendeu a realização de um vastíssimo programa de estudos filológicos. Encabeçaria a série um tratado sobre a colocação dos pronomes, ponto onde mais claudicava a gente de Gomorra.

Fê-lo, e foi feliz nesse período de vida em que, alheio ao mundo, todo se entregou, dia e noite, à obra magnífica. Saiu trabuco volumoso, que daria três tomos de 500 páginas cada um, corpo miúdo. Que proventos não adviriam dali para a lusitanidade. Todos os casos resolvidos para sempre, todos os homens de boa vontade salvos da gafaria! O ponto fraco do brasileiro falar resolvido de vez! Maravilhosa coisa…

Pronto o primeiro tomo – Do pronome Se - anunciou a obra pelos jornais, ficando à espera das chusmas de editores que viriam disputá-la à sua porta. E por uns dias o apóstolo sonhou as delícias da estrondosa vitória literária, acrescida de gordos proventos pecuniários.

Calculava em oitenta contos o valor dos direitos autorais, que, generoso que era, cederia por cinqüenta. E cinqüenta contos para um velho celibatário como ele, sem família nem vícios, tinha a significação duma grande fortuna. Empatados em empréstimos hipotecários sempre eram seus quinhentos mil réis por mês de renda, a pingarem pelo resto da vida na gavetinha onde, até então, nunca entrara pelega maior de duzentos. Servia, servia!… E Aldrovando, contente, esfregava as mãos de ouvido alerta, preparando frases para receber o editor que vinha vindo…

Que vinha vindo mas não veio, aí!… As semanas se passaram sem que nenhum representante dessa miserável fauna de judeus surgisse a chatinar o maravilhoso livro.

- Não me vêm a mim? Salta rumor! Pois me vou a eles!

E saiu em via sacra, a correr todos os editores da cidade.

Má gente! Nenhum lhe quis o livro sob condições nenhumas. Torciam o nariz, dizendo “Não é vendável”; ou: “Porque não faz antes uma cartilha infantil aprovada pelo governo?

Aldrovando, com a morte n’alma e o rim dia a dia mais derrancado, retesou-se nas últimas resistências.

- Fá-la-ei imprimir à minha custa! Ah, amigos! Aceito o cartel. Sei pelejar com todas as armas e irei até ao fim. Bofé!

Para lugar era mister dinheiro e bem pouco do vilíssimo metal possuía na arca o alquebrado Aldrovando. Não importa! Faria dinheiro, venderia móveis, imitaria Bernardo de Pallissy, não morreria sem ter o gosto de acaçapar Gomorra sob o peso da sua ciência impressa. Editaria ele mesmo um por um todos os volumes da obra salvadora.

Disse e fez.

Passou esse período de vida alternando revisão de provas com padecimentos renais. Venceu. O livro compôs-se, magnificamente revisto, primoroso na linguagem como não existia igual.

Dedicou-o a Fr. Luz de Souza:

À memória daquele que me sabe as dores,

O Autor.

Mas não quis o destino que o já trêmulo Aldrovando colhesse os frutos de sua obra. Filho dum pronome impróprio, a má colocação doutro pronome lhe cortaria o fio da vida.

Muito corretamente havia ele escrito na dedicatória: …daquele que me sabe… e nem poderia escrever doutro modo um tão conspícuo colocador de pronomes. Maus fados intervieram, porém – até os fados conspiram contra a língua! – e por artimanha do diabo que os rege empastelou-se na oficina esta frase. Vai o tipógrafo e recompõe-na a seu modo …d’aquele que sabe-me as dores… E assim saiu nos milheiros de cópias da avultada edição.

Mas não antecipemos.

Pronta a obra e paga, ia Aldrovando recebê-la, enfim. Que glória! Construíra, finalmente, o pedestal da sua própria imortalidade, ao lado direito dos sumos cultores da língua.

A grande idéia do livro, exposta no capítulo VI – Do método automático de bem colocar os pronomes – engenhosa aplicação duma regra mirífica por meio da qual até os burros de carroça poderiam zurrar com gramática, operaria como o “914″ da sintaxe, limpando-a da avariose produzida pelo espiroqueta da pronominuria.

A excelência dessa regra estava em possuir equivalentes químicos de uso na farmacopéia alopata, de modo que a um bom laboratório fácil lhe seria reduzí-la a ampolas para injeções hipodérmicas, ou a pílulas, pós ou poções para uso interno.

E quem se injetasse ou engolisse uma pípula do futuro PRONOMINOL CANTAGALO, curar-se-ia para sempre do vício, colocando os pronomes instintivamente bem, tanto no falar como no escrever. Para algum caso de pronomorreia agudo, evidentemente incurável, haveria o recurso do PRONOMINOL Nº 2, onde entrava a estriquinina em dose suficiente para libertas o mundo do infame sujeito.

Que glória! Aldrovando prelibava essas delícias todas quando lhe entrou casa a dentro a primeira carroçada de livros. Dois brutamontes de mangas arregaçadas empilharam-nos pelos cantos, em rumas que lá se iam; e concluso o serviço um deles pediu:

- Me dá um mata-bicho, patrão!

Aldrovando severizou o semblante ao ouvir aquele “Me” tão fora dos mancais, e tomando um exemplo da obra ofertou-a ao “doente”.

- Toma lá. O mau bicho que tens no sangue morrerá asinha às mãos deste vermífugo. Recomendo-te a leitura do capítulo sexto.

O carroceiro não se fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao companheiro:

- Isto no “sebo” sempre renderá cinco tostões. Já serve!

Mal se sumiram, Aldrovando abancou-se à velha mesinha de trabalho e deu começo à tarefa de lançar dedicatórias num certo número de exemplares destinados à crítica. Abriu o primeiro, e estava já a escrever o nome de Rui Barbosa quando seus olhos deram com a horrenda cinca:

“daquele QUE SABE-ME as dores”.

- Deus do céu! Será possível?

Era possível. Era fato. Naquele, como em todos os exemplares da edição, lá estava, no hediondo relevo da dedicatória a Fr. Luiz de Souza, o horripilantíssimo

- “que sabe-me”…

Aldrovando não murmurou palavra. De olhos muito abertos, no rosto uma estranha marca de dor – dor gramatical inda não descrita nos livros de patologia – permaneceu imóvel uns momentos.

Depois empalideceu. Levou as mãos ao abdômen e estorceu-se nas garras de repentina e violentíssima ânsia.

Ergueu os olhos para Frei Luiz de Souza e murmurou:

- Luiz! Luiz! Lamma Sabachtani?!

E morreu.

De que não sabemos – nem importa ao caso. O que importa é proclamarmos aos quatro ventos que com Aldrovando morreu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes.

Paz à sua alma.

1920

(1) Octave Mirbeau - Journal d'une Femme de Chambre.



Imagem: idem

José Fernandes - Ensaio crítico


Abolição da Literatura



Por José Fernandes*





Estarreci-me com a possível censura à Caçada de Pedrinho. Pensei razões de cunho ecológico que, também, seria cegueira, porque a arte é a expressão estética de uma época. Mas, não, elas eram muito mais ridículas, porque resultantes de preconceitos que mostram o apequenamento por que o homem está passando. Sobretudo, mostram uma total miopia literária. Se o tratamento conferido pelo narrador à simpática e querida Tia Nastácia se configura como racismo, teremos de abolir da literatura brasileira grande parte da lírica crioula, de Gregório de Matos que, em seus estilos maneirista e barroco entronizava a mulher negra e, às vezes, a rebaixava, quando ela merecesse ser satirizada.

Teríamos de suprimir de nossa cultura literária, pelo menos, dois romances de Aluisio de Azevedo. O primeiro, por causa da personagem Rita Baiana, descrita como a própria sedução e, pior, por causa da Bertoleza, que fora nomeada com o nome de mula, ou feminino de Bertoldo, a que governa com brilho, e que trabalhava como um animal, assim descrita pelo narrador naturalista com impiedosa ironia: ”Bertoleza é que continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula suja, sempre atrapalhada de serviço, sem domingo nem dia santo: essa, em nada, em nada absolutamente, participava das novas regalias do amigo: pelo contrário, à medida que ele galgava posição social, a des-graçada fazia-se mais e mais escrava e rasteira.

João Romão subia e ela ficava cá embaixo, abandonada como uma cavalgadura de que já não precisamos para continuar a viagem.” E que dizermos de O Mulato, em que Raimundo realmente é vítima do racismo de Maria Bárbara? Mas, se o extinguirmos, como ficará cristalizada aquela época em linguagem, como saberemos das ideologias e filosofias que embasaram o naturalismo em toda a sua extensão estética? E A escrava Isaura, também passaria por algum tipo de censura, em decorrência dos sofrimentos a ela impostos pelo comendador Almeida e, sobretudo, pela sanha do indecoroso Leôncio?

Mas, e o nosso simpático Macunaíma, herói sem caráter, uma das principais produções do estilo modernista? Deveria ser extirpado de nossa cultura ficcional por que suas “malandragens” constituem a essência mesma do brasileiro irresponsável e brincalhão só pelo fato de ele fazer piadas aparentemente indecentes, como ao perguntar “em que lugar a negra tem os cabelos mais crespinhos”? E o estupendo poema de Jorge de Lima, Essa Nega Fulô, em que ele joga magistralmente com os sentidos vários de fulô, que pode ser flor e aquela que roubou? Deveria ser excluído da poética brasileira por que acusa a negrinha de roubar as jóias da Sinhá, ou por que roubara o Sinhô, decor-rência de sua beleza exuberante? Coitado do poema Irene no céu, obra-prima de Manuel Bandeira – “Irene preta, Irene boa/Irene sempre de bom humor.//Imagino Irene entrando no céu?/ – Licença, meu Branco?//E São Pedro bonachão:/ - Entra, Irene! Você não pre-cisa pedir licença!”?

Seria abolido só pelo fato de ela ser chamada de preta? E o ritmo do poema Monjolo, de Raul Bopp, banido, por que se refere à labuta dos escravos na fazenda?: “Fazenda velha./Noite e dia/Bate-pilão.//Negro passa a vida ouvindo/Bate-pilão.//Relógio triste o da fazenda./Bate-pilão.//Negro deita. Negro acorda./Bate-pilão.//Quebra-se a tarde./Ave-Maria./Bate-pilão.//Chega a noite./Toda a noite/Bate-pilão.//Quando há velório de negro/Bate-pilão.//Negro levado pra cova/Bate-pilão.”

Mas, e Negrinha, que dá nome ao esplendoroso livro de contos do próprio Lobato? Que será dessa narrativa ímpar de nossas letras, se, para retratar os sofrimentos cruéis da personagem, inicia-se com uma descrição impiedosa da criança?: “Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados. Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre es-condida, que a patroa não gostava de crianças.” Todo ele expeliria preconceitos em todas as direções, inclusive contra brancos, igreja, solteirice? Deveria ser banido da literatura por estilar ironia e sátira em todas as letras e palavras? E a inimitável trilogia de Antônio Olinto, seria visto nela algum tipo de preconceito contra os iorubás, por causa dos mitos e ritos sabiamente cristalizados em um processo intercultural singular?

O fato de os ex-escravos e seus descendentes, ao voltarem para a África, terem de descer nus, ou enrolados em lençóis, como ocorre em A casa da água, não seria um tipo de constrangimento e de racismo imposto pelos próprios patriotas? E centenas de outras criações de nossa literatura que cristalizam verdades de humano, de história e de cul-tura que tem como personagens negros, índios, jagunços, favelados, garimpeiros?... Só se pode calar se se puder falar! Lobato, como os tempos mudaram, para pior! Querem calar-te! Querem cassar o Pedrinho! Como os professores estão analfabetos, meu caro! Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus, se eu deliro... ou se é verdade tanto preconceito inútil perante os céus! Cálice!


*José Fernandes é Doutor em Literatura, Professor aposentado da UFG, Crítico Literário e Membro da Academia Goiana de Letras.


Fonte: União Brasileira de Escritores - Seção Goiás

Imagem retirada da Internet: Monteiro Lobato

Francisco Perna Filho - Poema

Singeleza



Uma melodia, assim tarde,

nervosa como a chuva fina,

trilhando em teus olhos, menina,

a delicadeza do véu

a cobrir teu olhar,

tarde e madrugada,

nas cores do teu abraço,

nos traços dos teus dedos.


Uma melodia diferente,

assim tinta, assim tela,

maravilhando em singeleza,

remédio para o meu quebranto,

quando caio,

quando quedo,

quando fico,

fico,

fico,

assim nervoso,

pinto outro universo.


Uma melodia

em sons de cordas,

de jazz e afro reggae,

de cachoeira

e mata,

que me mata,

que desata os cadarços do sapato

na larga avenida do teu sorriso, menina,

que trespassa sonhos,

quereres,

viagens,

beijos,


Uma melodia,

que se desdobra em sino,

em canto de passarinho,

em número de identidade.

Entidade,

que me mata,

Vanessa.



Imagem retirada da Internet: Vanessa

Edmar Guimarães - Poema




IMOTIVO




Sem motivo algum para o poema.
O dia sobre o chão como folha esmagada.
O jornal atirado por cima do muro.
Monturos de palavras, ossos dos dias
num museu de momentos constantes.
A noite passou chorando
pelo silêncio da sala.
Há lágrimas no canto da janela
de luz ligeira.
E as pupilas iluminadas com que se vê
A chuva pingando, da noite de ontem,
Que é cegueira extrema.
E ainda
... nenhum motivo para o poema.


Imagem retirada da Internet: papel amassado


Alexandre Bonafim - Poema


Celebração das marés


“Longe o marinheiro tem
Uma serena praia de mãos puras”

Sophia de Mello Breyner Andresen

IV



Do cerne dos oceanos, do fecundo ventre da noite,

nasce seu peito tatuado pela força das âncoras,

pela fúria dos cavalos marinhos.

Sua pátria sempre foi os relâmpagos,

o sal, o trêmulo pergaminho dos vendavais.

Há milênios ele se perdeu de toda terra.

Há séculos seu andar tem a leveza

das quilhas sobre as ondas,

das velas despidas pelo sal.

Por isso seu destino sempre se quebrou contra as marés,

contra a amplidão das águas sem nome.

Por isso seu barco sempre se partiu contra o infinito,

contra o nascimento do mundo.

O marinheiro mora em antigas tempestades.

De tanto queimar o rosto nas ondas,

seus olhos vestiram o êxtase dos cardumes cegos,

dos corais inundados de luz.

De longe, de muito longe ele vem...

Uma cicatriz corta-lhe o rosto:

relâmpago, ninho de enguias.

Uma cicatriz corta-lha a vida,

o coração, o seu destino inteiro:

faca de fina luz a singrar

os sonhos, a inocência.

Desertos sedentos, sequidão de ossos,

ardem seu cerne, corroem seus desejos.

Por isso a errância é sua campa, seu jazigo.

Por isso lugar nenhum é seu túmulo.

A vida espoca em suas vísceras,

com a lucidez dos ácidos agudos.

A vida é-lhe a urgência do salto,

do grito das águas, do urro das ondas.

De longe, de muito longe ele vem...

Ele teve o braço quebrado pelas chuvas,

a boca cinzelada pelas maresias.

Todo o oceano adormece em suas pálpebras.

Todas as procelas pousam em seus pulsos.

Ele tem o dom das luas cheias,

o estigma das constelações desnudas.

Do fecundo ventre dos oceanos, do cerne da noite,

nasce seu sêmen fustigado pela violência dos astros,

pela febre das estrelas marinhas.

Nos seus flancos veleiros ardem os pontos cardeais,

a embriaguez das gaivotas consumidas pelo azul.

Por isso sua pele sempre se desnuda nos nascimentos,

nas celebrações súbitas.

Por isso seu corpo sempre se nomeia no orgasmo das rebentações,

na ardências das águas vivas.

De longe, de muito longe ele vem...

As fatalidades navegam em seus ombros.

Os desastres apunhalam seu nome.

Toda a sua luta sempre foi fitar a morte de frente,

como quem acalanta um criança jamais nascida.

De longe, de muito longe ele vem...


Imagem retirada da Internet:arpão

Affonso Romano de Sant'Anna - Poema


Amar a Morte




Amar de peito aberto a morte.
Não de esguelha, de frente.
Amar a morte,
digamos,
despudoradamente.

Amá-la como se ama
uma bela mulher
e inteligente.Amá-la
diariamente
sabendo que por mais
que a amemos
ela se deitará
com uns e outros
indiferente.



Imagem retirada da Internet: meu aconchego

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