Alexandre Bonafim - Poema










Outono



Nas antecâmaras do silêncio
o amor estende os lençóis de luto
o linho suave do lamento
esculpindo nas sombras da ausência
um pergaminho de lágrimase tormentos.
O que fazer dos braços
do peito
o que fazer da carne
quando a dor torna excesso
o tudo mais além do eu?
O que fazer das chuvas
das horas mais tristes da infância
o que fazer dos gestos
quando a hora torna cicatriz
o todo infinito aquém do eu?
Em pequenos barcos de papel
escoam-se os risos do menino de outrora,
as cirandas de cinzas
e aurorasdo Nada.
E em tudo nasce a névoa,
o sortilégio do vazio
o pó da memória.
Ante os escombros do invisível
nasce apenas o desejo do movimento urgente,
a vontade de andar contra os acasos e acidentes.
Entretanto,
apesar do silêncio
a vida estoura
rápida,
precisa
conclamando à luta
as mãos e o poema.

Mesmo sem itinerários
a vida ergue seu cântico
para além de todas as noites
para além de todas as ausências.



Imagem retirada da Internet: outono

Mario Vargas Llosa Nobel de Literatura 2010

Mario Vargas Llosa,o 6.º Nobel... espanhol

Peru foi apanhado de surpresa com notícia e demorou

Foi o próprio Prémio Nobel, ao agradecer horas depois do anúncio oficial a Espanha o empurrão que deu na sua carreira, que permitiu a apropriação parcial por parte deste país ibérico do galardão que a Academia Sueca concedera a Mario Vargas Llosa. O jornal El Mundo destacou-se e até titulava ontem na primeira página "Vargas Llosa, o 6.º Nobel espanhol"...


Claro que não há qualquer inverdade na situação, já que o autor tem dupla nacionalidade, desde que o ex-presidente Fujimori lhe retirou a peruana e foi Felipe González quem lhe deu pátria, enquanto não recuperou a cidadania com que nascera.

Ontem, se feridas havia na relação entre Vargas Llosa e o Peru, elas foram tratadas com o forte medicamento chamado Prémio Nobel. Não era para menos, pois desde 1982 - com Gabriel García Márquez - que o continente sul-americano não ganhava o Nobel. Mas foi na cidade onde nasceu em 1936 que a alegria foi mais genuína e a festa até contou com uma sessão de fogo-de-artifício para chamar a atenção ao povo de Arequipa. À boa maneira sul-americana, os populares ocuparam a Plaza de Armas para exibirem o seu orgulho e, contam os jornais locais, participar das homenagens de jovens estudantes que agitavam bandeiras e davam vivas. Apesar de Arequipa ficar a 1300 km de Lima, os seus habitantes não são info-excluídos e muitos deles entraram no mundo virtual para responder a perguntas que vinham de todo o mundo. "Foi a melhor notícia de 2010", dizia um; "És genial, Mario", dizia outro. O mais bairrista escrevia "Tinha de ser arequipenho".

Oficialmente, o país também viveu um dia de euforia e uma das frases que se impuseram referia que "O Peru e a liberdade celebram". A Agência Oficial Andina recordou o primeiro livro de Vargas Llosa, A Cidade e os Cães, e a razão alegada pela Academia Sueca para dar o Nobel, a "cartografia das estruturas do poder", enquanto a Rádio Programas do Peru festejava "o anúncio mais esperado". Diga-se que o Peru foi apanhado desprevenido com a concessão do Nobel e os primeiros ecos surgiram através das agências internacionais, até que o Presidente peruano, Alan García, deu o mote ao afirmar que era "um enorme dia para o Peru. Um dia de alegria, inclusive para os que não comungavam com Mario".

As reacções no resto do continente seguiram os sentimentos do Peru, à excepção do órgão oficial do Partido Comunista Cubano, que definiu a atribuição do prémio a Vargas Llosa como o "anti-Nobel da ética". O Granma aceitou que o escritor trouxe "desenvolvimento à literatura universal", mas "ideias reaccionárias" provam "a sua repugnância moral".

Se a festa foi grande na América, na Feira do Livro de Frankfurt não se ficaram atrás. Editores de todo o mundo do escritor abriram garrafas de champanhe e comemoraram o Nobel. Nos Estados Unidos, Vargas Llosa encerrou o dia com uma conferência de imprensa onde afirmou: "É preciso estimular a leitura nas novas gerações e convencê-las de que a literatura, mais do que conhecimento, é um prazer."

O Peru foi apanhado de surpresa com a

Primeiro capítulo do novo livro de Vargas Llosa

O capítulo que abre o novo livro intitula-se 'O Congo'. Relata a história do cônsul britânico Roger Casement e o seu pensamento sobre colonialismo. O novo romance será publicado antes do fim do ano pela Quetzal.




Quando abriram a porta da cela, com o jorro de luz e um golpe de vento entrou também o barulho da rua que as paredes de pedra abafavam e Roger acordou, assustado. Pestanejando, ainda confuso, lutando para se acalmar, vislumbrou, encostada no vão da porta, a silhueta do sheriff. A sua cara flácida, com o bigode louro e os olhinhos maldizentes, contemplava-o com a antipatia que nunca tinha tentado dissimular. Eis aqui alguém que sofreria se o governo inglês lhe concedesse o pedido de clemência.
- Visita - murmurou o sheriff, sem tirar os olhos de cima dele.
Pôs-se de pé, friccionando os braços. Quanto tempo teria dormido? Um dos suplícios da Pentonville Prison era não saber as horas. Na prisão de Brixton e na Torre de Londres, ouvia os sinos que marcavam as meias horas e as horas; aqui, os grossos muros não deixavam chegar ao interior da prisão o agitar dos sinos das igrejas de Caledonian Road nem o bulício do mercado de Islington e os guardas colocados na porta cumpriam estritamente a ordem de não lhe dirigir palavra. O sheriff pôs-lhe as algemas e indicou-lhe que saísse à frente dele. Trar-lhe-ia o seu advogado alguma boa notícia? Ter-se-ia reunido o gabinete e tomado uma decisão? Talvez o olhar do sheriff, mais carregado do que nunca com a aversão que lhe inspirava, fosse devido ao facto de lhe terem comutado a pena. Avançava pelo comprido corredor de ladrilhos vermelhos enegrecidos pela sujidade, entre as portas metálicas das celas e umas paredes descoloridas nas quais a cada vinte ou vinte cinco passos havia uma janela gradeada através da qual conseguia vislumbrar um pedacinho de céu acinzentado. Porque teria tanto frio? Era Julho, o coração do Verão, não havia razão para este gelo que lhe eriçava a pele.
Ao entrar no pequeno locutó- rio das visitas afligiu-se. Quem o esperava ali não era o seu advoga-do, maître George Gavan Duffy, mas sim um dos seus ajudantes, um jovem louro e desengonçado, de maçãs do rosto salientes, vestido co-mo um peralvilho, a quem tinha visto durante os quatro dias do julgamento a levar e trazer papéis aos advogados de defesa. Por que ra-zão o maître Gavan Duffy, em vez de vir em pessoa, mandava um dos seus assistentes?
O jovem deitou-lhe um olhar frio. Nas suas pupilas havia agastamento e asco. O que passaria pela cabeça deste imbecil? "Olha-me como se eu fosse uma alimária", pensou Roger.
- Alguma novidade?
O jovem negou com a cabeça. Inspirou antes de falar:
- Sobre o pedido de indulto, ainda não - murmurou secamente, fazendo um trejeito que o desfigurava ainda mais. - Há que esperar que se reúna o Conselho de Ministros.
A Roger incomodava-o a presença do sheriff e do outro guarda no pequeno locutório. Ainda que permanecessem silenciosos e imóveis, sabia que estavam suspensos de tudo o que diziam. Essa ideia oprimia-lhe o peito e dificultava-lhe a respiração.
- Mas, tendo em conta os últimos acontecimentos - acrescentou o jovem louro, pestanejando pela primeira vez e abrindo e fechando a boca exageradamente -, tudo se tornou agora mais difícil.
- À Pentonville Prison não chegam as notícias do exterior. O que aconteceu?
E se o Almirantado alemão tinha decidido por fim atacar a Grã-Bretanha pela costa da Irlanda? E se a sonhada invasão estava a ter lugar e os canhões do Kaiser vingavam neste preciso momento os patriotas irlandeses fuzilados pelos ingleses no Levantamento da Semana Santa? Se a guerra tivesse tomado esse rumo, os seus planos realizavam-se, apesar de tudo.
- Agora tornou-se difícil, talvez impossível, ter êxito - repetiu o assistente. Estava pálido, continha a sua indignação e Roger adivinhava-lhe a caveira sob a pele esbranquiçada da sua tez. Pressentiu que, nas suas costas, o sheriff sorria.
- Do que está você a falar? O senhor Gavan Duffy estava optimista a respeito da petição. O que aconteceu para que mudasse de opinião?
- Os seus diários - disse o jovem separando as sílabas, com outro trejeito de repugnância. Tinha baixado a voz e Roger tinha dificuldade em ouvi-lo. A Scotland Yard descobriu-os na sua casa de Ebury Street.
Fez uma longa pausa esperando que Roger dissesse alguma coisa. Mas como este tinha emudecido, deu rédea solta à sua indignação e entortou a boca:
- Como pôde ser tão insensato, homem de Deus - falava com uma lentidão que tornava mais patente a sua raiva. - Como pôde você pôr no papel semelhantes coisas, homem de Deus. E, se o fez, como não tomou a precaução elementar de destruir esses diários antes de se pôr a conspirar contra o Império britânico.
"É um insulto que este imberbe me chame 'homem de Deus'", pensou Roger. Era um mal-educado, porque ele tinha, pelo menos, o dobro da idade deste mocinho amaneirado.
- Fragmentos desses diários circulam agora por todo o la- do - acrescentou o assistente, mais sereno, ainda que continuando enraivecido, agora sem olhar para ele. - No Almirantado, o porta-voz do ministro, o capitão-de-mar-e-guerra Reginald Hall em pessoa, entregou cópias a dezenas de jornalistas. Estão por toda a Londres. No Parlamento, na Câmara dos Lordes, nos clubes liberais e conservadores, nas redacções, nas igrejas. Não se fala de outra coisa na cidade.
Roger não dizia nada. Não se mexia. Tinha, outra vez, aquela estranha sensação que se tinha apoderado dele muitas vezes nos últimos meses, desde aquela manhã cinzenta e chuvosa de Abril de 1916 em que, inteiriçado de frio, foi preso entre as ruínas de McKenna's Fort, no sul da Irlanda: não se tratava de ele, era de outro que falavam, outro a quem aconteciam estas coisas.
- Já sei que a sua vida privada não é assunto meu, nem do senhor Gavan Duffy nem de ninguém - acrescentou o jovem assistente, esforçando-se por controlar a cólera que impregnava a sua voz. - Trata--se de um assunto estritamente profissional. O senhor Gavan Duffy quis pô-lo ao corrente da situação. E preveni-lo. A petição de clemência pode estar comprometida. Esta manhã, em alguns jornais já há protestos, inconfidências, rumores sobre o conteúdo dos seus diários. A opinião pública favorável à petição poderá vir a ser afectada. Uma mera suposição, para já. O senhor Gavan Duffy mantê-lo-á informado. Deseja que lhe transmita alguma mensagem?
O prisioneiro negou, com um movimento quase imperceptível da cabeça. No acto, girou sobre si mesmo, encarando a porta do locutório. O sheriff deu uma indicação com a sua cara bochechuda ao guarda. Este correu o pesado ferrolho e a porta abriu-se. O regresso à cela pareceu-lhe interminável. Durante o percurso pelo longo corredor de pétreas paredes de ladrilhos vermelhos enegrecidos teve a sensação de que a qualquer momento tropeçaria e cairia de bruços sobre aquelas pedras húmidas e não voltaria a levantar-se. Ao chegar à porta metálica da cela, recordou: no dia em que o trouxeram para a Pentonville Prison o sheriff disse-lhe que todos os réus que ocuparam aquela ce-la, sem uma excepção, tinham terminado no patíbulo.
- Poderei tomar um banho, hoje? - perguntou, antes de entrar.
O obeso carcereiro negou com a cabeça, olhando-o nos olhos com a mesma repugnância que Roger tinha percebido no olhar do assistente.
- Não poderá tomar banho até ao dia da execução - disse o sheriff, saboreando cada palavra. - E, nesse dia, só se for a sua última vontade. Outros, em vez do banho, preferem uma boa refeição. É mau negócio para Mr. Ellis, porque depois, quando sentem a corda, cagam-se. E deixam o lugar numa imundície. Mr. Ellis é o verdugo, caso não saiba.
Quando sentiu a porta fechar-se nas suas costas, deixou-se cair de barriga para cima no pequeno catre. Fechou os olhos. Teria sido bom sentir a água fria a enrijecer-lhe a pele e a azulá-la de frio. Na Pentonville Prison, os réus, com excepção dos condenados à morte, podiam tomar banho com sabão uma vez por semana naquele jorro de água fria. E as condições das celas eram passáveis. Pelo contrário, recordou com um calafrio a sujidade da prisão de Brixton, onde se tinha enchido de piolhos e pulgas que pululavam no colchão do seu catre e lhe tinham coberto de picadas as costas, as pernas e os braços. Procurava pensar nisso, mas uma e outra vez voltava à sua memória a cara enraivecida e a voz odiosa do louro assistente ataviado como um manequim que o maître Gavan Duffy lhe tinha enviado em vez de vir pessoalmente dar-lhe as más notícias.
Fonte: DN Artes - A tradução é da responsabilidade do DN

José Mendonça Teles - Crônica



BRASIGÓIS, POR ELE MESMO



À beira da praia do Farol, em São Bento do Norte, no Rio Grande do Norte, Isabela, de 8 anos, netinha de Brasigóis Felício, com o dedinho do pé inflamado, depois de uma topada, não queria entrar no mar. Foi advertida pela coleguinha, uma caiçarense, de 7 anos: “Deixa de ser mole, mulé, o mar cura!” Foi o que aconteceu com o poeta. Carregando enorme tristeza e solidão pelas ruas de Goiânia, subindo e descendo ladeiras da indiferença ele se mandou com a mudança nos pneus da distância, levando a companheira Elci e a netinha Isabela. Embarcou nos ares dos sonhos e depois de mais de dois mil quilômetros de palavras aceleradas, chegou. Chegou, viu e ouviu o clamor daquele marzão escancarado diante dos olhos, dizendo: - Vem, poeta, também estou sozinho! E o poeta lá ficou. Ficou, mas deixou saudades. Companheiro de tantas caminhadas, amigo para sempre nas horas emparedadas, sabendo-se distante, sentado nas dunas do silêncio, a contemplar o mar, naveguei nos ares da distância, e lá cheguei e encontrei o poeta, na sua simplicidade de menino interiorano, montado no jegue da vida, esperando o mundo parar para descer.

Tão lento e devagar ia o poeta, que suas palavras, suas contemplações, saiam compiladas no imaginário da solidão: “uma cabana à beira mar: eis o sonho do refúgio impossível. Também, no mais ermo lugar o tempo fustiga como acoite a mente que sempre deseja estar em outro lugar. Jamais encontrei o meu menino em mim. Certa nostalgia faz-me ter saudades do cerrado quando estou no mar, e maravilhar-me do mar quando estou no cerrado. Em Caiçara do Norte o silêncio é mais profundo, e tem o som de motor contínuo. É o som e o sentido da máquina do mundo, igual e diferente em todos os lugares. Sobrevivente de uma agitação vazia sem finalidade, vejo-me, hoje, como homem praiano. Vivo às margens do oceano que povoa meus sonhos. E não me encontro feliz. Trabalho desde a alvorada até as horas mais silenciosas da noite. Ocupo-me do reino das palavras. Mas não escrevo para que me amem. Tanta estrada com muito nada por todos os lados, eu tenho viajado. Na casa planetária em que vivo, sinto saudades dos amigos que deixei em Goiás. Longe estou da vida vertiginosa que vivia. Vim morar onde acaba o sertão, e começa a vastidão do mar. Ao longe, vendo os primeiros albores da madrugada, escuto o bramir do lendário Atlântico. É como se escutasse o som contínuo da máquina do mundo’’.

Quinze dias com Ana Maria fiquei no condado de Brasigóis (também lá estavam o poeta Edival Lourenço e sua musa Tânia), observando os passos do poeta, tentando decifrar o enigma de uma mudança tão rápida, desde endeusamento ao mar, nestas imagens tão sensíveis pelo reino mágico das palavras. Somente agora, em Goiânia, lendo o seu livro Vozes do Farol é que encontrei a resposta. Estava na frase da menina caiçarense de 7 anos ‘’O mar cura!’’.


A benção, Brasigóis Felício, meu amigo e poeta do mar e do Hotel do Tempo, farol iluminado dos ‘’mares nunca dantes navegados!’’.




José Mendonça Teles é Escritor e Imortal da Academia Goiana de Letras - e-mail: josemendoncateles@gmail.com

Dora Ferreira da Silva - Poema



Pássaro e Mulher




Quem me prende
mais do que a terra?
Impossível o vôo
agora.
Quente fremente
a intenção de alguém.
Desfez-se a palidez
perdi meu vôo
nas grades de seu peito.
Aprísiona-me - grilhão -
o seio suave e
no calor do instante
a união.


In.Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: blog mural dos escritores

Alexandre Bonafim - Crítica Literária


O Real encantado de Helvécio Goulart




Por Alexandre Bonafim*




Quando encontramos um legítimo poeta ainda desconhecido do grande público (grande?), sentimos certa nostalgia, uma melancolia doce por ser uma descoberta inédita para nós, mas também amarga por sermos os raríssimos conhecedores desse autor quase anônimo.

Helvécio Goulart é um grande poeta praticamente irrevelado. O Brasil como um todo ainda precisa conhecê-lo. Durante toda a sua vida, Goulart erigiu uma obra de coerência exemplar, de fidelidade irrestrita à palavra poética sincera, devotada inteira na busca da beleza e nada mais. Sua escrita lembra a de um Juan Guelman ou a de um Alberto da Costa e Silva (o filho); recorda-me também, em alguns momentos, as epifanias de Clarice Lispector.

Como a autora de Laços de família, o poeta mineiro (na verdade também goiano, pois viveu quase toda existência em Goiás) desvela uma espécie de real desnudo, de espacialidade adâmica, virginal. As coisas despontam num esplendor fulminante, encantatório. Diante de poemas como os de Helvécio Goulart, sentimos uma alegria ingênua: a felicidade de possuirmos um corpo, um lugar no cosmos. Encantamo-nos com um real intensificado, agudo, fulgente. Essa é a paixão da escrita epifânica: transformar a banalidade do mundo em raríssima aventura. É o que podemos perceber, por exemplo, em A beleza:



Alimenta-se a luz

do corpo do pavão;

na cauda esplêndida

gasta-se a cor

multifária

e nas manchas de sangue

da plumagem

no azul e amarelo,

ele e o sol

completam-se, cada um no seu destino.

Leve cair de folhas,

grande a ave se volta

com os seu raios de fogo reprimidos

pela força imutável das origens

a afrontar, impassível,

a beleza traída.

(p. 19)



Nesse texto, uma inversão incomum de valores é de suma importância. O pássaro não é a beleza, mas o contrário: toda beleza verdadeira é um encantado pavão. A inventividade dessa metáfora abre-nos para o feito singelo de descobrir o encanto em sua humilde e avassaladora verdade. Toda beleza sempre nos arrasta com a mesma força inaugural de quando fitamos um belo pavão. Susto. Espasmo. Febre. Estertor. Alegria de viver apesar da morte, da fome, das injúrias da vida.

Algo semelhante se dá em Os objetos, em que a verdade das coisas, a fidelidade à sua justeza é o grande esplendor de todo o existir do nosso olhar:



Observa os objetos:

de todos eles

emanam respostas ao efêmero.



Falam a estante, os livros,

o tapete vermelho, as cortinas translúcidas,

os vasos de cristal, o escuro piano,

os enfeites de metal,

as paredes de pedra.



Expressam-se todos em silêncio

a lembrança do tempo

que não cessa de rodar

suas pernas de mármore

e de ver a morte

através de cada coisa

com grandes olhos de veneno

e de fogo,

invisíveis,

abertos para sempre.

(p. 23)



Se o real alcança sua agudeza pela palavra poética, essa mesma realidade torna-se alumbrada por ser mágica, feérica. Nesse sentido, Helvécio Goulart conjuga em sua escrita duas grandes e fundamentais lições dos surrealistas: o jogo de associações livres de imagens e a descoberta da surrealidade, do âmago, do cerne do verdadeiro real, do real mais verossímil e denso. Podemos perceber essa verdadeira bricolagem de imagens em Os meses:



A doçura de uma vida

cheia do verde luminoso da manhã.

A alegria dos mortos que voltavam

com os rostos cobertos de geada;

muitos vinham de longe

com seus cavalos novos

cheirando a hortelã.

A boca se entreabria

e leve

o sono ressoava

e eram muitos azuis os olhos das meninas

quando a noite as construía.

Lembranças. Histórias apagadas,

mulheres conduzindo maçãs em balaios de vime,

uma rua sem fim no começo da morte.



Quando o frio chegava

todos o acolhiam em seu peito

como se faz com o amor

no meio do verão.

Vinham com ele as namoradas,

as caixinhas de música,

os ciprestes noturnos

e a lua com seu halo de junho.

Era o momento das grandes descobertas,

a hora em que os corpos se queimavam

entre canções, no vento.

A marca dos meses continua nos muros.

(p.38)



Podemos vislumbrar o mesmo efeito em Os cavalos:



Peço perdão porque eu não sabia parar.

Nem a rua me deteve

com suas vitrinas luminosas

e seus metais sonoros.



Peço perdão porque eu não podia morrer naquela hora,

eu tinha que correr

eu tinha

que andar

correndo pela noite.

A vida estava perto

tão próxima,

que quem quisesse poderia tocá-la,

a vida.



A água caiu em minha sede

E de repente os cavalos ficaram amarelos

e voaram.

(p. 49)



Nesse texto, o movimento corporal do eu lírico é irrefreável. Tudo se agita, no poema, numa ansiedade infinita. Movido por uma sede sem nome, sem paradeiro, a pessoa poética anda a esmo, num caminhar misterioso, inescrutável em suas razões, em suas motivações. Esse movimento em moto contínuo se findará, encontrará a serenidade, apenas na epifania a findar o texto. A sede cessa quando os cavalos tornam-se ouro e magicamente voam. O desassossego finda-se na imagem lírica de grande singeleza e simplicidade, desemborcando em uma enseada de leveza e serenidade.

Determinados leit motivs consagram a escrita de Helvécio, pontilhando-a de símbolos emblemáticos, verdadeira chaves de entrada para os seus significados profundos dos textos (ainda a serem explorados por leitores e críticos): a criança, a estrela, o canário, as flores, os cavalos e etc. Se em cada poema eles ganham conotação singular, em todos os textos eles colorem as paisagens, imprimindo um tom pitoresco, campesino, bucólico à sua escritura. É o que podemos notar no belíssimo ciclo de poemas intitulado Crianças fontes estrelas canários:



1

As estrelas

dominavam o entardecer

dos dias antigos

e os canários conduziam

as árvores para a fonte

das primeiras crianças



[...]



7

Árvores e crianças

dominavam

os antigos canários

as estrelas

do entardecer

e os conduziam

à fonte dos dias

(p. 102-103)



Só quem conhece Goiás sabe o quanto essa geografia está viva na escrita desse mineiro goiano. Com seus flamboaiãs e ipês, suas árvores frondosas, Goiás respira inteira na escrita de Helvécio. Perto dessas árvores estamos também próximos de Deus, abraçados à poesia. E poucos como Helvécio sabem dessa verdade tão simples, tão singela.



GOULART, Helvécio. Poemas reunidos. Goiânia: UCG, 2007.


* Alexandre Bonafim é Professor Universitário, Doutor em Letras, Poeta e Crítico Literário.



Foto by Ana Carolina Pires: Pastor

Dora Ferreira da Silva - Poema



Agora




Agora que no vagar dos pensamentos
chamo-te - pai - da estação da infância
como se pudesses voltar no rápido só para me embalar,
fecho os olhos dentro de tuas pálpebras.
És minha invenção de amor. Olhos melancólicos
os teus. Eu contigo em degredo.

Difícil tocar a face desse segredo cada vez mais longe
e partir e também ficar, embora encontrada a chave
[da porta mais secreta.
Se eu pudesse dizer: seja a paisagem de seda azul
e o último sol fortíssimo do ocaso
- eu liberta enfim de tuas pupilas.
Um rio passaria desenhado pela mão mais fina. Passa uma
[pluma apenas uma
no rio acordado.



In. Jornal de Poesia.
Imagem retirada da Internet: blog Frases Perdidas

Dora Ferreira da Silva - Poema



Alguém...



Alguém desfecha a flecha do vôo:
reflexo no vidro onde a chuva
penteia os cabelos.
Cantiva de muitas lágrimas
dos suspiros do vento
nesta casa pousada na montanha
aguardo criança flor anjo ou passaro.
Pensamentos alígeros - andorinhas
nos aguaceiros de verão
traçam oblíquas, desaparecem
no céu que escurece.
Abraçada à minha alma
não sinto o tempo latejar por perto.
O incerto longe é a minha vocação.
O longe do longe onde talvez
estás sempre em despedida
do invólucro que não te retém. E eu
sempre atrás do aceno teu
do aroma que te esquece e se esvai.
Se um lenço de fino linho
se desprendesse de teus dedos (sonho meu)
o caçaria como a um pássaro
que longe vivia
e me pertencia.




In.Jornal de Poesia
Imagem retirada do blog Biografia do Deserto: Dora Ferreira da Silva

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