Um olhar sobre as diferenças
Olhando o homem, o peixe se reconhece
Por Francisco Perna Filho
Há dias em que estamos mais leves, longe dos problemas comuns, libertos de toda preocupação, quando movidos pela busca da paz, da tranquilidade, buscamos nos acomodar à beira de um riacho, de um lago; à sombra de uma árvore ou guarda-sol, para deleitar as horas de harmonia com o universo.
Ciceroneado pelo amigo, poeta e jornalista, Sinésio Dioliveira, conheci um pesque-pague dos mais aprazíveis, em Goiânia, mais precisamente ao lado da Vila Muitirão. Foi uma surpresa, pelo fato de antes ele haver me convidado e eu nunca ter aceitado, ou melhor, nunca ter dado certo para que eu fosse conhecer aquele lugar tranquilo, de paz e muitas surpresas, a começar pela pescaria em si, atividade que o meu amigo Sinésio, segundo ele mesmo, é um expert.
Pois bem, chegamos ao local, ao pesque-pague, logo na entrada estava escrito: “Tambaquis e Tucunarés, só para pesca esportiva”. Entramos, o Sinésio pediu uma isca, algumas cervejas e fomos para a labuta; e que labuta! Armamos a tralha toda: anzol, chumbada, vara de pescar, carretilha e isca, tudo o que era preciso para uma boa tarde de pescaria, segundo os entendidos.
O meu amigo atirou a isca aos peixes, um silêncio apoderou-se da tarde, fez-nos contemplativos e esperançosos: dois homens e a vastidão do mundo, assombrados com o encantamento do lago, com a solidão da espera, prestes a refletir o peixe no seu morredouro: “morrer pela boca”, como diriam os nossos pais.
Estávamos ali, numa expectativa de águas, espectadores serenos da longa espera do peixe que não vinha; da linha frouxa a deslizar pela água fria, quando virei-me para ele, para dizer que talvez fosse eu o empecilho, talvez a minha energia o estivesse impedido de pegar muitos peixes, como era de costume, já que não sou afeito a jogos e pescarias, esta última só praticava quando criança, no Rio Tocantins. No que ele me tranqüilizou: “fique calmo, sempre que eu venho aqui pesco um bocado, logo vamos fisgar um”.
Após ser tranquilizado pelo amigo, continuamos nossa peleja: o homem, a linha, o lago e os peixes. Mais uma vez a isca fora atirada a esmo. Enquanto isso, a menos de duzentos metros, um senhor fazia a festa na pesca esportiva: pescava e soltava os pescados, ou melhor, os grandalhões, principalmente as Caranhas. E nós? nada! Continuávamos na longa espera, fisgados pelos peixes que tentávamos pescar, já que alguns deles, à nossa frente, alegres e saltitantes pareciam saber do nosso intento e, por isso, ironizavam a nossa labuta.
O amigo Sinésio, na sua paz e calma interior, tranqüilizou-me dizendo que era assim mesmo, logo fisgaríamos um grande. Tentamos, fisgamos dois, mas eram fortes e escaparam, um deles levou o anzol. Ficamos boquiabertos, mas tudo era festa, confraternização. O amigo saiu, foi ao bar e pediu para fritarem um peixe do estoque deles, por sinal, muito saboroso. Continuamos na lida: isca aos peixes, cerveja como refresco; peixe na linha, só no pensamento.
Já escurecia, quando a linha ficou tesa, sentiu-se um puxão, e ali estava o bruto, o gigante, o inominado prêmio das águas, um peixe pesando “meio quilo”, uma Caranha de dar água na boca, para alegria do meu amigo, que já se tinha como um grande contador de histórias, história de pescador.
Impression, Sunrise, 1872 - Claude Monet, Pintor Francês (Impressionismo) - 1840-1926 - (Musee Marmottan, Paris)
Ouvindo a própria voz
Ternura, talvez seja o que nos falta
CRIAÇÃO
Dá ao rei, ó Deus, o teu dom de julgamento,
E ao filho do rei o teu senso de justiça
(salmo 72 (71) – O Reino do Rei Messias)
Francisco Perna Filho
A madrugada é louça mal acabada,
e o oleiro tenso arremata o sonho,
moldando o barro da própria existência.
Deus de si mesmo, julga-se
capaz das próprias inconclusões
ao acompanhar o martelar das horas que ainda estão por vir.
Ele só, sozinho só, ali
atento aos ruídos de sua rudeza,
nos arredores de si mesmo,
silencia em pó, em pós, no reino.
The Creation of Adam, detail of Adam , 1508-12 - Michelangelo Buonarroti (Painter) Pintor, Escultor e Arquiteto Italiano (Alta Renascença) 1475-1564 - Sistine Chapel Ceiling - (Vaticano, Rome, Italy).
FRAGMENTOS
Francisco Perna Filho
O meu amor é feito de fragmentos,
mosaico de bocas e pernas
que foram ficando nas bancas de revistas,
torres de catedrais,
portos de rio,
e na celebração das praças.
No meu amar estou eu,
multiplicado cem vezes por mim,
temporal e relativo,
composto de absoluto.
Imagem: Study of a young Man Beside the sea. Hippolyte Flandrin. Pintor Francês 1809-1864 - (Musée du Louvre, Paris, France)
KOSOVO
A dor da separação
castiga minh'alma.
A raça à qual pertenço
condena os meus passos.
A água que me dessedenta
congelou o meu grito.
Sirenes, explosões, desolação e mortes
eis o meu cardápio.
Que mal fiz aos adultos do mundo?
com cinco anos
e já participo das primeiras lições de ódio,
onde se urde, secretamente,
o desdém (DRESDEM) à raça humana.
Quisera ter nascido árvore,
sem clamor, sem dor,
sem família.
Quisera ter nascido lama
e, dessa forma, sem precisar
conviver com irmãos..
apodrecendo em cativeiros da loucura humana.
Quisera ter nascido pedra
para não ter de ver
tantos corações empedernidos
por ideologias.
Quisera não ter nascido!
Deus meu,
clamo pelo colorido das praças,
pela mesa posta em família,
pelos clows nas tardes de Domingo.
Clamo por todos aqueles que se perderam
no labirinto e, cativados pelo minotauro,
foram seduzidos ao ódio de uma guerra,
uma guerra, uma guerra.
Estou com cinco anos:
a lua acaba de se apagar.
In.Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.93-4.
Imagem: http://www.geocities.com/SoHo/Den/8823/kosopic.jpg
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