Um olhar sobre as diferenças




A muda da minha rua falou-me das estrelas,
com ela aprendi a escutar o rio da minha infância










Por Francisco Perna Filho




Ao nascermos, a primeira leitura que fazemos do mundo é a leitura sensorial: os sons, as cores, os cheiros, a temperatura, as texturas, os sabores. Daí, passamos para abstração do mundo, começamos a sair do concreto para o abstrato, vamos eliminando as figuras; passamos ao simbólico, às sentenças, ao descortínio do que se nos apresenta implícito, nas entrelinhas. Tornamo-nos críticos do mundo e das coisas, senhores do nosso nariz, da nossa boca, do nosso paladar, do nosso cheiro, do nosso som. Espelhos de uma sociedade perfeita, aparelhada de um estado perfeito, de uma justiça perfeita, de um legislativo perfeito, portanto de homens perfeitos. Democraticamente perfeitos.

Descoberto um mundo não tão perfeito, ou quase imperfeito, modificamos a nossa crença, antes absoluta, para um aprendizado de realidades outras: os nossos pares são tão imperfeitos quanto nós, mas não se dão conta disso, até serem colocados à prova da convivência, quando os pré-conceitos afloram, quando a razão é imperativa e degrada, alija e maltrata.

Começamos a nos redescobrir como seres sensíveis, dotados de sentidos e de intuição; capazes de sentimentos e de reflexão. Passamos a valorizar o que somos e o que temos. Passamos a olhar o mundo, outra vez, com os olhos infantis para o descortino de um tempo ainda não corrompido. Um mundo vibrante, de formas e cores; de sons e cheiros. Redescobrimos a beleza do simples, para uma contemplação de plenitudes.

Reabilitamo-nos para a convivência plena: sem preconceito, sem discriminação, sem qualquer estigma. O outro nas suas particularidades, com as suas diferenças, com as suas idiossincrasias. O outro que - ao nos mostrar aquilo que somos - nos habilita para recifração de um mundo mais humano e pleno.




Imagem: Pieta - Jan Saudek, Fotografo Tcheco - born 1935-

Olhando o homem, o peixe se reconhece




Por Francisco Perna Filho






Há dias em que estamos mais leves, longe dos problemas comuns, libertos de toda preocupação, quando movidos pela busca da paz, da tranquilidade, buscamos nos acomodar à beira de um riacho, de um lago; à sombra de uma árvore ou guarda-sol, para deleitar as horas de harmonia com o universo.

Ciceroneado pelo amigo, poeta e jornalista, Sinésio Dioliveira, conheci um pesque-pague dos mais aprazíveis, em Goiânia, mais precisamente ao lado da Vila Muitirão. Foi uma surpresa, pelo fato de antes ele haver me convidado e eu nunca ter aceitado, ou melhor, nunca ter dado certo para que eu fosse conhecer aquele lugar tranquilo, de paz e muitas surpresas, a começar pela pescaria em si, atividade que o meu amigo Sinésio, segundo ele mesmo, é um expert.

Pois bem, chegamos ao local, ao pesque-pague, logo na entrada estava escrito: “Tambaquis e Tucunarés, só para pesca esportiva”. Entramos, o Sinésio pediu uma isca, algumas cervejas e fomos para a labuta; e que labuta! Armamos a tralha toda: anzol, chumbada, vara de pescar, carretilha e isca, tudo o que era preciso para uma boa tarde de pescaria, segundo os entendidos.

O meu amigo atirou a isca aos peixes, um silêncio apoderou-se da tarde, fez-nos contemplativos e esperançosos: dois homens e a vastidão do mundo, assombrados com o encantamento do lago, com a solidão da espera, prestes a refletir o peixe no seu morredouro: “morrer pela boca”, como diriam os nossos pais.

Estávamos ali, numa expectativa de águas, espectadores serenos da longa espera do peixe que não vinha; da linha frouxa a deslizar pela água fria, quando virei-me para ele, para dizer que talvez fosse eu o empecilho, talvez a minha energia o estivesse impedido de pegar muitos peixes, como era de costume, já que não sou afeito a jogos e pescarias, esta última só praticava quando criança, no Rio Tocantins. No que ele me tranqüilizou: “fique calmo, sempre que eu venho aqui pesco um bocado, logo vamos fisgar um”.

Após ser tranquilizado pelo amigo, continuamos nossa peleja: o homem, a linha, o lago e os peixes. Mais uma vez a isca fora atirada a esmo. Enquanto isso, a menos de duzentos metros, um senhor fazia a festa na pesca esportiva: pescava e soltava os pescados, ou melhor, os grandalhões, principalmente as Caranhas. E nós? nada! Continuávamos na longa espera, fisgados pelos peixes que tentávamos pescar, já que alguns deles, à nossa frente, alegres e saltitantes pareciam saber do nosso intento e, por isso, ironizavam a nossa labuta.

O amigo Sinésio, na sua paz e calma interior, tranqüilizou-me dizendo que era assim mesmo, logo fisgaríamos um grande. Tentamos, fisgamos dois, mas eram fortes e escaparam, um deles levou o anzol. Ficamos boquiabertos, mas tudo era festa, confraternização. O amigo saiu, foi ao bar e pediu para fritarem um peixe do estoque deles, por sinal, muito saboroso. Continuamos na lida: isca aos peixes, cerveja como refresco; peixe na linha, só no pensamento.

Já escurecia, quando a linha ficou tesa, sentiu-se um puxão, e ali estava o bruto, o gigante, o inominado prêmio das águas, um peixe pesando “meio quilo”, uma Caranha de dar água na boca, para alegria do meu amigo, que já se tinha como um grande contador de histórias, história de pescador.


Impression, Sunrise, 1872 - Claude Monet, Pintor Francês (Impressionismo) - 1840-1926 - (Musee Marmottan, Paris)


Ouvindo a própria voz



Por Francisco Perna Filho












Tudo foi muito estranho e engraçado, lembro-me bem, eu estava na rodoviária de Miracema do Norte, não posso precisar o ano, década de 70, quando vi pela primeira vez um gravador e ouvi a gravação que dele saía. Fiquei encantado. Como seria possível aquilo?

Cheguei em casa deslumbrado com o novo conhecimento, com a nova tecnologia. Meses depois, meu Pai foi a Goiânia e nos presenteou com um belo gravador, último tipo, genuinamente japonês, uma maravilha. Passamos a gravar todos os sons que encontrávamos, que fazíamos acontecer, desde batidas em latas, até o som da descarga do banheiro, tudo com muito entusiasmo e graça.

Passamos a gravar as nossas conversas, as conversas dos vizinhos. Brincávamos de espiões, cantávamos e nos dizíamos cantores, artistas. Enquanto isso, uma montoeira de fitas K-7 ia se acumulando nas estantes da casa, compondo a nossa coleção. O certo é que éramos puro entusiasmo, o mesmo que tínhamos pelos inúmeros livros da minha infância.

São agradáveis lembranças, mas, o mais agradável, o inusitado, o puro estranhamento, deu-se na fazenda Caridade, do meu avô materno, quando, à noite, nas reuniões que fazíamos, sob a luz dos candeeiros e lamparinas, no pátio da casa grande, o meu pai, Francisco Nolêto Perna; meus avós, vovô Antônio Nolêto e vovó Euzébia Nolêto; minha mãe, Adalgisa Nolêto; meus irmãos; meus amigos que levávamos; os vaqueiros; e os trabalhadores da fazenda estávamos conversando e, depois de muita conversa, após termos ouvido o pífaro de taboca do seo Tonhão, meu pai pediu silêncio. Todos silenciaram, e ele, meu pai, apertou o PLAY do gravador para ouvirmos as nossas falas, as conversas ali travadas, o som ancestral do seo Tonhão. Foi o êxtase total, uma cena indescritível, se considerarmos o rosto, o deslumbramento de cada um. Deus ali se manifestara, o mito, a cosmogonia, os espíritos ancestrais orquestravam aquele evento.

Talvez, se fosse hoje, nada de extraordinário aconteceria, ainda mais por se tratar de ouvir a própria voz, uma simples gravação não causaria tanto entusiasmo, numa época de instantaneidade, de tecnologias que capturam a voz, a imagem, os movimentos e, para muitos, a aura de cada um.

As lembranças da infância são para sempre, não se apagam, boas ou ruins, estarão sempre presentes, como podemos ver no filme O Caçador de Pipas (The Kite Runner), Direção de Marc Forster, baseado no romance do afegão Khaled Hosseini (2003), que conta a história de Amir (Khalid Abdalla), um garoto Pashtun rico de Wazir Akbar Khan, distrito de Cabul, que é atormentado pela culpa de ter traído seu amigo de infância, Hassan, filho do empregado do seu pai, Hazara Uma história comovente, de perdas encontros e desencontros.

Falo do filme, porque foi ele que me fez reviver este fato do gravador, uma história não de tristeza, mas de alegria, de boas lembranças, quando silenciávamos para ouvir a nossa voz, amparados pela luz das lamparinas, dos candeeiros e, muitas vezes, da lua cheia que nos acompanhava. Uma lembrança gostosa de descoberta e aprendizado.



Imagem: Vincent's Room, Arles, 1888 - Vincent Van Gogh, Pintor Holandês (Pós-Impressionismo) -1853-1890 - (Van Gogh Museum, Amsterdam, Netherlands).

Ternura, talvez seja o que nos falta


Por Francisco Perna Filho











Cada um deve comportar os seus abismos, apesar da insuficiência de muitos, que, a reboque, carregam uma dor bem maior do que suportam e, por isso, precisam de ajuda, de compreensão, de quem lhes garanta o pão de cada dia e a doce palavra de consolo.

Talvez não saibamos, ainda, da nossa impotência. Do tempo que, célere, nos conduz. Das tragédias diárias que teremos de enfrentar. Da dor progressiva de quem chora a depressão. Do triste olhar de quem há muito perdeu a esperança. Pouco sabemos da nossa desumanidade, já que o nosso interesse é pelo corpo, pela forma, pelo poder e dinheiro.

Se pouco sabemos, é porque a nossa ignorância é bem maior do que a vontade de enxergar a miséria humana - tão próxima de nós, tão dentro de nós – colocar-se no lugar do outro. Ser mais solidário, altruísta, sensato e irmão. Ninguém vence o mundo sem vencer-se a si mesmo. Ninguém dá carinho sem conhecê-lo.

Nada do que fazemos passa incólume aos olhos da natureza. Toda ação gera uma reação, isso é mais do que sabido. As nossas inimizades são do tamanho dos inimigos que possuímos. Os nossos delírios, aos olhos alheios, não passam de loucura. Ama-se o aprazível, o que é belo, o fácil.

Quantos se julgam dono do saber, do conhecimento, do estabelecimento que dirigem, da repartição onde trabalham. Quantos maltratam por insegurança, por incompetência e, por que não dizer, por pura maldade. Quantos, por inveja, desprezam, ofendem e, covardemente, perseguem.

Amar aquilo que se faz é, no mínimo, compreensível, agora, aceitar o outro nas suas diferenças, nos seus delírios, na sua impaciência, são atitudes enlevadas, dignas de humanidade, de sensatez, de libertação.

O mundo, as artes e o saber não têm donos, estão aí para os homens de fé, de coragem, de determinação e sensatez, apesar dos abutres que rondam as nossas cabeças tentando uma brecha para sua devoção.

Ternura, talvez seja o que nos falta, ou pelo menos, um pouco daquilo que necessitamos para enfrentar a turbulência da nossa desumanidade. Juntando a ela um pouco de carinho, afeto, atenção e empatia, sem sombra de dúvidas, o mundo tornar-se-ia mais mundo e menos imundo.




Imagem: The Helping Hand, 1881 - Emile Renouf, Pintor Francês - 1845-1894

CRIAÇÃO


Dá ao rei, ó Deus, o teu dom de julgamento,

E ao filho do rei o teu senso de justiça

(salmo 72 (71) – O Reino do Rei Messias)






Francisco Perna Filho



A madrugada é louça mal acabada,

e o oleiro tenso arremata o sonho,

moldando o barro da própria existência.


Deus de si mesmo, julga-se

capaz das próprias inconclusões

ao acompanhar o martelar das horas que ainda estão por vir.


Ele só, sozinho só, ali

atento aos ruídos de sua rudeza,

nos arredores de si mesmo,

silencia em pó, em pós, no reino.



The Creation of Adam, detail of Adam , 1508-12 - Michelangelo Buonarroti (Painter) Pintor, Escultor e Arquiteto Italiano (Alta Renascença) 1475-1564 - Sistine Chapel Ceiling - (Vaticano, Rome, Italy).

FRAGMENTOS


Francisco Perna Filho









O meu amor é feito de fragmentos,

mosaico de bocas e pernas

que foram ficando nas bancas de revistas,

torres de catedrais,

portos de rio,

e na celebração das praças.

No meu amar estou eu,

multiplicado cem vezes por mim,

temporal e relativo,

composto de absoluto.



Imagem: Study of a young Man Beside the sea. Hippolyte Flandrin. Pintor Francês 1809-1864 - (Musée du Louvre, Paris, France)

KOSOVO

Francisco Perna Filho












A dor da separação

castiga minh'alma.

A raça à qual pertenço

condena os meus passos.

A água que me dessedenta

congelou o meu grito.

Sirenes, explosões, desolação e mortes

eis o meu cardápio.

Que mal fiz aos adultos do mundo?

com cinco anos

e já participo das primeiras lições de ódio,

onde se urde, secretamente,

o desdém (DRESDEM) à raça humana.

Quisera ter nascido árvore,

sem clamor, sem dor,

sem família.

Quisera ter nascido lama

e, dessa forma, sem precisar

conviver com irmãos..

apodrecendo em cativeiros da loucura humana.

Quisera ter nascido pedra

para não ter de ver

tantos corações empedernidos

por ideologias.

Quisera não ter nascido!

Deus meu,

clamo pelo colorido das praças,

pela mesa posta em família,

pelos clows nas tardes de Domingo.

Clamo por todos aqueles que se perderam

no labirinto e, cativados pelo minotauro,

foram seduzidos ao ódio de uma guerra,

uma guerra, uma guerra.

Estou com cinco anos:

a lua acaba de se apagar.



In.Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.93-4.

Imagem: http://www.geocities.com/SoHo/Den/8823/kosopic.jpg

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