CHUVA NOTURNA


Francisco Perna Filho










Venham ver, meus filhos,

a hora da chuva,

o doce bater dos pingos na grama escura.

Sintam o cheiro líquido

se derramando

sobre os nossos olhos.

Não pensem em mais nada, meus filhos,

apenas olhem,

olhem e vejam,

celebrem a noite, também líquida,

se desmanchando em chuva, também noite.

Daqui a pouco,

os pássaros virão,

e pousados nas antenas de tv

anunciarão o novo dia em cantos.

Antecipemo-nos a eles,

cantemos com a chuva,

com a noite.

Os pássaros se repetem todos os dias,

a despeito das imagens e das Atenas.

A chuva noturna, não,

assim como a poesia,

apesar dos sons que produz,

é puro silenciar.

É preciso saber ouvi-la.


Foto by Francisco Perna Filho - Buenos Aires, junho de 2009

ENTREVISTA - ESTÉRCIO MARQUEZ CUNHA


Por Francisco Perna Filho







Originalmente, esta entrevista foi veiculada no jornal Hoje, de Goiânia, no ano de 2006, na página de cultura que eu editava: Mosaico. Para uma melhor percepção do leitor, atualizei a idade do autor.


Considerado um virtuose da composição, Estércio Marquez Cunha ainda é pouco conhecido pelos goianos


As raízes da composição


A sala de estar é ampla e sóbria, paredes decoradas com desenhos e algumas telas. Contígua a ela, do lado esquerdo, uma outra abriga o piano, cd's e livros. Do lado direito, uma sacada espaçosa, com plantas e móveis rústicos, dentre eles, uma mesa, contendo papéis, anotações, e algumas partituras, o que leva a crer que ali seja um dos lugares prediletos do compositor, que recebeu a reportagem para um agradável bate-papo.


Estércio Marquez Cunha, 68 anos, é goiano de Goiatuba, professor universitário e compositor, referência no meio musical, principalmente pela importância das peças que compôs para piano e violão. São
peças para violão solo, música para violão e violino, flauta e violão, música para soprano, e música para dois violões. Para piano solo, são sessenta e quatro peças, sem falar nas que compôs para instrumento solo, câmara, coro, orquestra e música-teatro.


Durante muitos anos, viveu no Rio de Janeiro, onde se formou em Piano, Composição e Regência no Conservatório Brasileiro de Música. Mesmo antes de se formar, já era professor de música na rede pública do Estado da Guanabara. Foi professor de análise e harmonia musical na Universidade Federal de Goiás, cadeira que inaugurou, por concurso público. Fez o mestrado em Música e o doutorado em Artes Musicais (composição) pela University of Oklahoma (USA), em 1982. Hoje ensina nos cursos de pós-graduação.


O compositor,mostrando-se muito à vontade, falou da vida, da educação no Brasil, que, para ele, está falida: "A escola não prepara o indivíduo para pensar
e refletir; o que há, de fato, é uma preocupação em formar mão de obra". Com relação às artes, Estércio foi bastante enfático, criticando o momento atual, naquilo que ele considera como imediatista, sem nenhum aprofundamento, pessoas que se dizem “artistas”, mas apenas repetem, nada criam, o que não leva a lugar algum: "Não dá para enganar, essas pessoas pecam pela falta de criatividade, pelo imediatismo e repetição". Para ele, isso não se dá apenas na música, mas em todas as áreas, incluindo a literatura: "Colocar uma roupagem no que já existe não contribui para nada, é preciso ir além. Vejam o que tentaram fazer com a música de raiz... não deu certo, virou isso aí"(uma referência à música feita pelos "sertanejos").

Quando perguntado sobre o panorama musical brasileiro, ele assim se pronunciou:


“A Escola de Música da UFG tem formado muita gente boa, o que coloca Goiás como destaque no cenário musical brasileiro, basta vermos os nomes que têm despontado, podendo citar: a pianista Lúcia Silva Barrenechea; o violinista Eduardo Meirinhos; Ângela Barra e Marcília Álvares no canto, e, na composição, Paulo Guicheney e Rodrigo Lima”.


Influências musicais


Estércio, ao falar da sua formação, se entusiasmou com a pergunta sobre as suas influências musicais: "Eu ficava encantado com aquelas melodias (modas de viola), mas tinha de ouvi-las escondido, pois a minha família dizia que moda de viola não era música séria. Naquela mesma época (infância), além das modas de viola, eu me encantava com a criatividade de Luiz Gonzaga (o Gonzagão). Eu ficava maravilhado ao ouvi-lo pelo rádio. Até hoje eu o cultuo. Mas, um dia, eu ouvi um outro tipo de música, fiquei extasiado com a melodia, não sabia o que era aquilo, ou quem a executava, fui atrás, só depois descobri que se tratava de Stravinski, Igor Stravinski (compositor russo, um dos mais influentes nomes da música do século XX - 1882 - 1971). Uma grande descoberta, monumental! foram essas as primeiras influências".


Estércio, de algum tempo para cá, tem produzido mais para violão, instrumento para o qual dedica um carinho especial e que tem repercutido muito no Brasil e no exterior. Aguarda, para breve, a gravação de uma peça: "trio para violão", pelo grupo goiano
El legno. No momento, a sua obra está sendo estudada na Espanha e executada em várias partes do mundo.


Fonte da imagem:

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiiLkmuEEjD3kmZBO11P9XlxjlYYrDh0Q2rncdH4RDKXcVvtU8b7vAAoygAH3hyYnFoqTdHXT7-zML178HOoSX80g6mD7TI0angCdBB5yk_cgbI_qG3vnyJJSSrnkYXRtPI9MjyoeuOYHfd/s400/DSC00366.JPG

CENAS URBANAS

Francisco Perna Filho








Para o poeta JJ Leandro



Entre um banho de rio e delinquência,

no vermelho doce das melancias,

o albino solitário copia o branco da tarde nas suas retinas,

ao curiar, pelo vão da janela,

os saltitantes seios da beata solteirona.



Adiante,

os mascates cobrem a nudez das moças,

e a platéia aplaude,

entre um grito e outro

do esquálido vendedor de quebra-queixo.



Meninos jogam finca

e soletram as tardes em sabores de q-suco e vinagreira.



Arroz,

farinha,

frango,

fumo,

carne seca,

e o mercado se enche de cores e movimento

carne seca

fumo

frango

farinha

arroz



Do outro lado,

nos desvãos da carne,

as prostitutas compõem seus pecados

e celebram a vida nos goles de Campari

e tragadas de Albany.



Imagem - Pablo Picasso - The Tragedy,1903 - (National Gallery of Art, Washington D.C.)

CONTO - ÚLTIMAS PALAVRAS

Francisco Perna Filho



Já passava das 9h, subitamente fora acordado pelo barulho do despertador, levantou-se de sobressalto e olhou apressadamente para o relógio no criado da cama. Era preciso correr, não tinha muito tempo. Olhou-se no espelho da sala, vira um rosto amassado pela longa noite de sono. A barba por fazer, não ficaria bem ir assim. Abriu o armário do banheiro, pegou uma gilete, creme de barbear, tudo muito corrido, tudo muito depressa, tudo muito preciso.

Era preciso acelerar, o carro cantou pneu, saiu em disparada. Nada poderia detê-lo, não fossem os sinais que sucessivamente iam se fechando. Conspiração! Pensou. Não adiantava impacientar-se, mas impacientou-se. Esmurrou o volante, saltitou no banco do carro. Ensaiou, numa sequência rápida, engatar todas as marchas, mas nada. O carro permanecia imóvel, apesar de bufar pelas aceleradas do seu condutor. O homem, a máquina e o sinal.

Lembrou-se do que lhe dissera a viúva, logo após ficar sabendo do acontecido: “ele estava bem, fez um lanche às 15h, tomou banho às 19h, tomou um copo de leite às 20h e viu televisão. Às 22h, beijou-me, se disse indisposto, e foi se deitar. Ninguém sabia de nada, ele nunca havia mencionado que sentisse qualquer coisa. Nenhuma dor, nada! Continuava como sempre, seguia a sua rotina no atelier, continuava muito visitado por amigos, discípulos e colecionadores.

Os sinais foram se abrindo, um a um, e o carro arrancou com toda força. Não poderia atrasar-se. Afinal de contas aquela seria a última homenagem que faria ao seu grande amigo. Acelerou fundo, passou sob o viaduto em direção a Bela Vista, passou em disparada pelo autódromo, não parou no sinaleiro que, de súbito, se fechara. Precisava chegar a tempo. Precisava chegar a tempo.

Retornou ao que lhe dissera a viúva: “Nos últimos dias, eu o achei estranho, há muito que ele não abria um velho armário onde guardava suas primeiras telas, as quais não mostrava para ninguém”. - Falava, emocionada, a mulher – “Chegou mesmo a dizer: Eu quero que a Celina fique com esta tela, se me esquecer, não deixe de dar a ela”. O quadro era um velho Dom Quixote montado no seu Rocinonte, assinado em letras vermelhas, datado de dezembro de 1963.

Muitos carros estavam estacionados ao longo da pista lateral do cemitério, ele deu a seta, indicando que viraria para o lado esquerdo. À sua frente, do outro lado, uma placa com letras grandes e prateadas em que se podia ler: “Cemitério Memorial”. Suspirou fundo, esperou um carro que passava no sentido contrário da pista, mais uma vez acelerou com vontade, atravessou a pista, virou para direita, muitos carros, muito movimento. Procurou um lugar no estacionamento, parou a uma quadra da sala de velório. Desceu do carro, caminhou rápido, estava um pouco alterado, temia não mais encontrar o amigo, apressou o passo, passou por um longo corredor, quando encontrou um conhecido, perguntando pelo amigo morto, obteve como resposta: “não, ainda não o enterram”.

Estava com sorte, pensou. Passou por duas salas, apressou o passo mais ainda, chegou à sala, onde o amigo estava sendo velado, no momento em que estavam fechando o caixão, na hora em que já estavam colocando os parafusos que prendiam a tampa, no exato momento, ele estacou e, ali mesmo, gritou: “Por favor, não fechem! Não fechem! Eu preciso vê-lo pela última vez, por favor! Houve um silêncio, as pessoas se entreolharam, o caixão foi reaberto, quando ele, se aproximando do caixão, começou um discurso, a princípio desconexo, para depois ir tomando forma, tornando-se inteligível. Na medida em que falava se lembrava da viúva: “ele falou muito da exposição que fariam em homenagem a ele, a homenagem que você estava organizando. “Ele gostava muito de você”.

Todos ali, comovidos e atônitos, presenciavam aquele homem na sua última homenagem, nos arroubos da meia idade, no enlevo das palavras, menos alguém, um homem alto, de uns quarenta e seis anos, que meneava a cabeça negativamente, enquanto ele pronunciava suas comoventes palavras: “Ele foi nosso mestre, todos nós, se não a maioria, aprendemos com ele. O nosso pai no desenho, na pintura, um verdadeiro mestre na acepção mais elevada do termo. Obrigado mestre e amigo”.

Enquanto proferia suas últimas palavras, absorto naquilo que acreditava, não observou as pessoas mais próximas ao caixão, atônitas, pareciam não entender aquele discurso esquizóide, ainda mais vindo de pessoa tão culta. Só se deu conta quando o homem se aproximou e falou baixinho ao seu ouvido: “Pedro, Pedro, quem está aí não é o seu amigo Cervantes, quem está aí é mamãe, a minha mãe, você entrou na sala errada”. Quando se deu conta do feito, não sabia o que dizer e não disse, naquele momento, apenas uma sentença fora pronunciada: “mamãe, mamãe! a vovó tá dormindo. A vovó tá dormindo”.


Foto by Francisco Perna Filho - Caminito de La Boca - Buenos Aires

CAFÉ TORTONI

















Meus olhos compreendem

os teus barcos, Buenos Aires.

Os teus portos,

os teus séculos e catedrais.

Em ti estão todos os homens,

o roçar breve da vida

nos dobres silenciosos

dos sinos da poesia.

Meus coração compreende

este teu sotaque, Buenos Aires,

na alegria dos teus insones cafés

e de suas perfiladas mesas

testemunhando olhares que se cruzam

na artilharia de vontades e ideias.

Borges, Cortàzar, Alfonsina,

todos ali,

tão vivos como esta noite que me habita,

tão intensos como tuas largas avenidas noturnas

de tangos e transeuntes.


Buenos Aires - Café Tortoni - 15/06/2009



Foto by Rosana Carneiro Tavares




CÂNTICO DO AMOR MAIOR

Francisco Perna Filho







Valho-me do acaso,

para ver no teu sexo,

o nexo da vida

São compridos os meus olhos

para lá das esquinas,

dos semáforos,

dos destinos.

Percorro teu trechos,

tuas curvas,

para sorver os teus frutos,

ainda tenros, quando chego;

maduros, quando findo.


http://pix.com.ua/db/art/painting/portraits/b-498032.jpg

O AMOR



Francisco Perna Filho

















O Dia,
com ares de masculinidade,
comporta em si três belas mulheres:
Manhã, Tarde e Noite.
Nelas,
Ele está mergulhado.
Nele, todas Elas estão.
Como o amor:
crescente.
Manhã, Tarde e Noite
Até explodir em luz,
para desconstruir-se em sono,
para refazer-se
em sonho.
Quando
será outro dia.






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