Gostaria
de agradecer ao jornalista Geneton Moraes Neto pela cessão desta maravilhosa entrevista com o poeta Ledo Ivo (abril de 2004), um dos
maiores da nossa Língua, para que ela fosse reproduzida aqui na Revista Banzeiro. (atualizada em 02/01/2016).
|
Ledo Ivo - Fonte imagem: Musarara |
O poeta dá o conselho :
"Seja como os lobos : more num covil e só mostre à canalha das ruas os
seus dentes afiados.Viva e morra fechado como um caracol.Diga sempre não
à escória eletrônica".
Caçadores
de belos versos, tremei de arrependimento: quem nunca leu um poema de
Lêdo Ivo, por preguiça, desinformação ou enfado, deve se penitenciar
deste crime de lesa-literatura o mais rapidamente possível. Um exemplo ?
É difícil encontrar uma declaração de princípios tão bela quanto "A
Queimada" :
"Queime tudo o que puder :
as cartas de amor
as contas telefônicas
o rol de roupas sujas
as escrituras e certidões
as inconfidências dos confrades ressentidos
a confissão interrompida
o poema erótico que ratifica a impotência
e anuncia a arteriosclerose
os recortes antigos e as fotografias amareladas.
Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.
Seja como os lobos : more num covil
e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.
Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica.
Destrua os poemas inacabados,os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.
Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita".
O
que o velho lobo terá a dizer a um repórter forasteiro que for
procurá-lo no covil ? Aos cartógrafos empenhados em mapear as rotas da
poesia brasileira neste início de século,diga-se que o lobo vive num
apartamento do sétimo andar de um prédio da rua Fernando Ferrari,no
bairro de Botafogo,Rio de Janeiro. Ao contrário do que os versos podem
fazer supor, o homem não é uma fera de garras afiadas.
Ei-lo
: sentado numa poltrona da sala,o lobo Ledo vai fazer,a pedido do
repórter,uma expedição ao País da Memória diante do gravador ligado. O
cenário que circunda o Covil do Lobo é um convite à inspiração. Quando
quer descansar a retina das mazelas do mundo,o lobo Ledo precisa
caminhar apenas cinco passos. É a distância entre a sala e a extremidade
da varanda deste apartamento.Lá fora,a beleza escandalosa de um céu sem
nuvens pinta de azul a vista da praia de Botafogo. A localização do
apartamento é invejável. Parece ter sido escolhida a dedo por um
poeta.Uma confidência lítero-hidráulica : do banheiro do apartamento do
lobo é possível vislumbrar a imagem do Cristo Redentor de braços abertos
sobre a Guanabara.Não é para qualquer um.
O
poeta posa para as fotos na varanda. Parece ligeiramente incomodado
pela lente da máquina. O sorriso aberto transmuta-se numa expressão
repentinamente carrancuda um décimo de segundo antes do clique da
máquina.
As
lembranças dos ídolos que povoam os corredores do Museu das Admirações
de poeta vão se sucedendo,aos borbotões : com os gestos agitados de quem
fala para uma platéia invisível,o pequenino Ledo Ivo reconstitui,com
frases precisas,momentos marcantes da convivência com Carlos Drummond de
Andrade,Graciliano Ramos,Manuel Bandeira e João Cabral de Melo
Neto,gente que virou verbete obrigatório nas enciclopédias.
Justiça
se faça: aos setenta e oito anos de idade,Ledo Ivo já colheu as
glórias daquele país que Ariano Suassuna chama de "o Brasil oficial": a
Academia Brasileira de Letras concedeu-lhe,por unanimidade,a cadeira
número 10,no não tão distante ano de 1986. Mas o "Brasil real",aquele
que passa ao largo dos salões acadêmicos,não conhece Ledo Ivo tanto
quanto o poeta merece. Dificilmente o Lobo seria reconhecido na rua. Não
é lido tanto quanto deveria ser. Aos caçadores de pérolas,recomenda-se a
leitura da última pepita da mina do lobo Ledo : "O Rumor da
Noite",publicado recentemente pela Nova Fronteira.
O
Ledo Ivo que responde com entusiasmo ao precário questionário do
repórter é um homem afável. O poeta que desponta nas entrelinhas dos
versos é um lobo solitário,um ermitão que prefere ver a humanidade à
distância. A ode à solidão - que ele já escrevera nos versos definitivos
do poema "A Queimada" - repete-se no não menos belo "A Passagem":
"Que me deixem passar - eis o que peço
diante da porta ou diante do caminho.
E que ninguém me siga na passagem.
Não tenho companheiros de viagem
nem quero que ninguém fique ao meu lado.
Para passar,exijo estar sozinho,
somente de mim mesmo acompanhado.
Mas caso me proíbam de passar
por seu eu diferente ou indesejado
mesmo assim eu passarei.
Inventarei a porta e o caminho
e passarei sozinho".
O Lobo é um apóstolo confesso da beleza. Reage com compreensível enfado à faina dos que preferem criar teses sobre a poesia :
"Sou um esteta porque nunca li tratados de estética"
disse, num volume autobiográfico há anos esgotado ("Confissões de um Poeta").
Quando
começa a falar do assunto que lhe consome todas as energias - a criação
literária -,o alagoano Ledo Ivo vai alinhando as frases com a precisão
de um ourives e a rapidez de uma metralhadora giratória. É incapaz de
fazer concessões a vulgaridades gramaticais na hora de construir uma
sentença. O lobo Ledo aparentemente concede à linguagem falada o mesmo
cuidado que devota à linguagem escrita.O Português agradece,comovido. O
poeta já confessou que sente abalos sísmicos em suas florestas
interiores ao ouvir confrades pronunciarem impropriedades como "de
maneiras que....". Se alguém cometer o sacrilégio de misturar "tu" com
"você" diante do lobo, certamente escapará de uma admoestação, porque o
homem é afável,mas cairá vinte pontos no conceito do poeta.
O
Recife ocupa um extenso capítulo na memória afetiva do lobo - que deu
de presente à cidade um poema escrito na juventude (“Amar
mulheres,várias/Amar cidade,só uma – Recife”). Um detalhe : temeroso de
despertar ciúmes bairristas em seus conterrâneos alagoanos, Ledo Ivo
jamais incluiu o poema em homenagem ao Recife em seus livros. O cântico
de amor à cidade estaria inédito até hoje,se não tivesse sido divulgado
por amigos do poeta.
Tradutor de Rimbaud e Dostoiévski, o lobo Ledo carrega, pelas décadas afora, as marcas da infância em Maceió :
"Na tarde de domingo,volto ao cemitério velho de Maceió
onde os meus mortos jamais terminam de morrer
de suas mortes tuberculosas e cancerosas
que atravessam as maresias e as constelações
com as suas tosses e gemidos e imprecações
e escarros escuros
e em silêncio os intimo a voltar a esta vida
em que desde a infância eles viviam lentamente
com a amargura dos dias longos colada às suas existências
monótonas.
(...) Digo aos meus mortos : Levantai-vos,
voltai a este dia inacabado
que precisa de vós,de vossa tosse persistente e de vossos gestos enfadados
e de vossos passos nas ruas tortas de Maceió.
Retornai aos sonhos insípidos
e às janelas abertas sobre o mormaço. Na tarde de domingo,entre os mausoléus
que parecem suspensos pelo vento
no mar azul
o silêncio dos mortos me diz que eles não voltarão.
Não adianta chamá-los.No lugar em que estão,não há retorno
Apenas nomes em lápides.Apenas nomes.E o barulho do mar".
A
nostalgia do tempo irremediavelmente sepultado nos velhos calendários
marca não apenas os melhores poemas de Ledo Ivo, mas também suas
confissões autobiográficas :
"-
Sou um sobrevivente na passagem entre o dia e a noite.Onde estão as
figuras de antigamente - em que estrelas,em que túmulos se esconderam?
Gari implacável, a vida varre os sonhos dos homens e, na praça vazia,
vagam os fantasmas dos fracassos dissimulados e dos gordos perjúrios.
Sozinho na grande cidade que engole as promessas dos homens, vejo-me
passar de repente no jovem poeta desconhecido que atravessa o meu
caminho. Deixo de ser eu mesmo para ser, por um instante, o jovem poeta
sem nome. Que ele seja fiel à sua promessa de agora, eis o que peço. Que
ele seja uma dessas criaturas para as quais nada é perdido, segundo a
lição de Henry James. Mas a quem dirigir esse pedido? Os deuses
inexistentes não me ouvem. À vida cega e surda? Ao mar longínquo e mudo?
O jovem poeta Ledo Ivo dilui-se na sombra da tarde. E anoitece”.
Graciliano
Ramos, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e Manuel
Bandeira vão entrar em cena agora como verbetes vivos da imaginária
enciclopédia do Lobo Ledo.
Gravando !
PRIMEIRA ESTAÇÃO:
O DURÃO GRACILIANO RAMOS CHORA AO SE DESPEDIR DA VIDA
GMN : A imagem de Graciliano Ramos, como homem seco e intratável,corresponde à verdade ?
Ledo Ivo
: “Graciliano Ramos era rústico e intratável. Nascemos no mesmo estado.
Quando menino,como primeiro da turma no grupo escolar,fui apresentado a
Graciliano,na época secretário de Educação. Pôs a mão carinhosamente na
minha cabeça. Quando ele publicou “Vidas Secas”, eu,”menino prodígio”
em Maceió,escrevi,em 1938,um artigo sobre o livro. Aquilo passou. Quando
vim para o Rio, fazer vestibular de Direito, minha mãe me disse “vá
visitar Heloísa” - a mulher do Graciliano Ramos,àquela altura,aos
cinquenta anos de idade,uma figura importante na literatura brasileira.
Durante nossa conversa,ele abriu uma gaveta e disse : “Quando publiquei
“Vidas Secas” em Alagoas,só uma pessoa falou do meu livro : um menino de
14 anos.....”.
A
relação de Graciliano Ramos com Alagoas era de amor e ódio,porque ele
tinha saído do Estado de cabeça raspada,jogado no porão de um navio. É
curiosíssimo como duas pessoas tão diferentes como eu e Graciliano Ramos
puderam se relacionar. Devo ter aprendido com ele muitas
coisas,como,por exemplo,a correção lingüística que,dizem,existe em minha
prosa.
Graciliano
Ramos era,sim,uma pessoa rústica.Em toda a literatura brasileira,ele só
tinha três, quatro admirações,além de Machado de Assis, a quem
considerava um negro metido a inglês : José Lins do Rego,Rachel de
Queiroz e Jorge Amado. Em poesia,admirava Manuel Bandeira e Carlos
Drummond de Andrade, por ordem do Partido Comunista (risos).
Notei,
na casa de Graciliano Ramos,um livro de poesia autografado,fechado e
intocado. Toda vez que eu ia à casa de Graciliano,dizia a ele : “Você
deveria abrir esse livro ! ”. E ele : “Já falei com Heloísa várias vezes
para abrir esse livro, mas essa mulher…” (risos) .
Era
como se competisse à Heloísa Ramos a função de abrir o livro.Se não me
engano,era um volume das poesias completas de Augusto Frederico
Schmidt”.
GMN : De toda essa convivência com Graciliano Ramos, a melhor herança foi a obsessão com a correção gramatical ?
Ledo Ivo:
“A herança - pungente - é ver que a glória de Graciliano é uma glória
póstuma. O que aprendi com Graciliano Ramos foi ter fidelidade ao ofício
de escritor. Quem era Graciliano Ramos quando convivi com ele ? Um
grande escritor,mas ainda não plenamente reconhecido - essa é que é a
verdade. Os livros que ele lançara estavam esgotados. José Olympio não
reeditava. Em conversas íntimas,Graciliano chamava José Olympio de “esse
filho da puta - que vive editando Lourival Fontes e Getúlio
Vargas.....” (N: Lourival Fontes era o chefe do Departamento de Imprensa
e Propaganda durante a ditadura Vargas) . O que eu via ali,em
Graciliano, era a amargura de um homem que foi tirado do ninho natal –
Alagoas. Note-se que três livros de Graciliano foram escritos em Alagoas
: “Caetés”, “São Bernardo” e “Angústia” . Se ele não tivesse saído de
Alagoas, ficaria como uma coisa misteriosa. Por quê? Por que será que em
um pequeno Estado,como Alagoas, um sujeito escreveu três grandes
romances ? Depois é que veio a experiência carcerária – a única coisa
que o Rio,a metrópole,deu a ele. Graciliano vivia de pequenos “bicos
literários”,vivia corrigindo textos alheios. Trabalhava como revisor.
Qual
foi,então, a grande impressão que Graciliano Ramos me deu ? A
fidelidade ao ofício,algo que se viu também em Machado de Assis. São
escritores que não esperavam nenhuma recompensa, porque a própria obra
seria a recompensa. Graciliano não pensava em Academia,não pensava em
prêmios literários,não pensava em glória. Eu trabalhava em jornal naquela época. Jamais Graciliano Ramos ou José Lins do Rego me pediram que publicasse uma nota sobre eles.
GMN : O desleixo com a glória imediata foi,então,uma atitude que o senhor herdou de Graciliano Ramos ?
Ledo Ivo
: “Uma característica de Graciliano Ramos -que me orgulha- é a pobreza.
Era um escritor que andava de ônibus. Vivia-se num Brasil
diferente.Naquele tempo, só Carlos Drummond de Andrade tinha um carro -
oficial. Os outros eram Augusto Frederico Schmidt e Jorge de Lima. Eram
os três escritores que tinham carro ! Um negócio impressionante,porque
todo mundo andava de bonde ou de ônibus. Não havia feriado. A José
Olympio ficava aberta aos sábados até seis horas da tarde. Era um mundo
diferente,o da vida literária, marcada pela existência de suplementos
literários. Mas havia ,em Graciliano Ramos,um
detalhe que me impressionava : o problema da formação literária. Eu
ficava impressionado com o fato de que a formação literária de
Graciliano Ramos era – de certa maneira - muito reduzida. Baseava-se nos
brasileiros Machado de Assis e Aluísio Azevedo – um autor de quem ele
gostava -,no português Eça de Queiroz e nos russos Tolstói, Dostoievski e
Gorki. Com esse pequeno mundo de leitor, Graciliano Ramos fez uma uma
obra grandiosa. Nunca leu Marcel Proust,por exemplo. Quando eu
perguntava por que,ele dizia : “Não leio veados ! ” (risos).
Quando
o visitei pela última vez,no hospital,ele chorou,porque sabia que ia
morrer. Enquanto chorava,falava -e muito – sobre a mãe.O hospital ficava
aqui ao lado,onde hoje é este edifício (Ledo aponta para fora do
apartamento). Aquele foi nosso último encontro,porque eu estava de
partida para Paris. Fui me despedir. Graciliano estava esquálido.De vez
em quando,falava coisas desconexas. Contava que a mãe,quando casou,levou
as bonecas para casa – um negócio curioso. O choro de Graciliano ficou
como uma lembrança marcante,porque já trazia a saudade da vida. Eu senti
ali que,por mais que ele dissesse que odiava a vida,ele,na
verdade,amava viver. O que matou Graciliano foi um câncer no pulmão. Era
um fumante de cigarros Selma.Só escrevia bebendo cachaça. Jorge de Lima
também morreu de câncer no pulmão,mas nunca fumou. Os homens não morrem
de doenças : morrem de morte”.
SEGUNDA ESTAÇÃO:
O POETA ESPERA HÁ SESSENTA ANOS PELO LEITOR
GMN
: O senhor escreveu em suas memórias : “Vivo escrevendo, mas o trágico é
que escrever não é viver”. Com que freqüência,então,o senhor tem a
sensação de estar substituindo a vida pela escrita?
Ledo Ivo:
“É um drama comum a todo e qualquer escritor este sentimento de que
estamos vivendo,sim,mas essa vida se destina somente a acumular
experiências para a obra literária. Já a quase totalidade das pessoas se
limita a viver,porque não dispõe de linguagem. Trago um mistério
inicial em minha biografia : por que logo eu,numa família de
onze,revelou a vocação e o destino para a escrita,numa família que não
tinha pendores literários ? Sempre tenho a impressão de que toda a vida
de um escritor é estuário onde se acumula a matéria que se transformará
em obra literária. O escritor é,então,uma pessoa condenada não a
viver,mas a escrever. Fausto Cunha - grande crítico,que notou,em minha
procedência literária,a influência de poetas malditos como
Rimbaud,Verlaine e Baudelaire – me disse : “O grande erro de sua vida é
que você não morreu aos vinte anos.Se tivesse morrido moço,teria deixado
“Ode e Elegia”, “As Imaginações”, e “Acontecimento do Soneto”. Então,
seria um poeta como Castro Alves ou Casemiro de Abreu !.Vida longa
atrapalha a biografia !”.João Cabral me disse a mesma coisa. Eu respondi
: “Prefiro ser o Victor Hugo das Alagoas – o poeta que vive até os
oitenta anos !”. Prefiro o mistério dos poetas que,como Drummond e
Manuel Bandeira,tiveram uma vida longa e uma obra igualmente longa”.
GMN
: Ariano Suassuna - que foi homenageado no carnaval aqui no Rio - disse
que já tinha recebido a homenagem do “Brasil oficial”, ao entrar para a
Academia Brasileira de Letras e estava recebendo ali,no sambódromo,a
homenagem do que ele chama de “Brasil Real”. O senhor – que já foi
homenageado pelo “Brasil Oficial” ao ser recebido por unanimidade na
Academia Brasileira de Letras - sente falta do reconhecimento do “Brasil
Real”,,já que não é tão conhecido como poeta como deveria ?
Ledo Ivo:
“O poeta inglês John Mansfield diz que já viu o azarão no jóquei ganhar
o prêmio, já viu flor brotar da pedra, já viu coisas amáveis feitas por
homens de rosto feio. “Eu também espero” – diz ele. Confesso que o
problema do reconhecimento vasto não me preocupa. A vida literária se
faz pela diversidade e pela multiplicidade. Não se sabe se o escritor de
pouco público de hoje será o escritor de grande público de amanhã.
Um
escritor pode ser obscuro e desconhecido hoje e famoso e glorioso
amanhã. Você pode também estar dentro da literatura e um dia ser expulso
! São coisas que não me preocupam. O que me preocupa é a criação
literária. Já que sou uma criatura dotada de linguagem, quero me
exprimir. Mas sei que uma obra só se completa com a existência do outro.
Há sessenta anos estou esperando por esse leitor. Um dia ele haverá de
aparecer”.
GMN :
O poema “A Queimada” – aquele que fala do lobo no covil - é uma
declaração de princípios de que o escritor deve ser,no fim das contas,um
solitário ?
Ledo Ivo: “O escritor deve ser um solitário solidário.A verdade,como digo no poema,não pode ser dita”.
GMN : O senhor reclama daqueles escritores que só brilham em congressos....
Ledo Ivo:
“Oswald de Andrade – de quem fui muito amigo até brigarmos – me
procurou,magoado,porque tinha sido expulso do Partido Comunista.Os
comunistas,então, não o deixaram participar do Congresso dos Escritores
de São Paulo. Eu disse a ele: “É besteira ! . Nietzsche nunca participou
de um congresso de escritores” (risos)…
GMN: Por que o senhor diz que detesta escritores que consideram a criação poética “um suplício” ? .
Ledo Ivo:
“Tenho horror desses camaradas que passam o tempo todo dizendo que
gemem e suam na hora de escrever. A minha criação literária é uma
felicidade. Quando escrevo, parece que as coisas já vêm
prontas,organizadas subconscientemente. Pensa que “capino” o meu texto.
Mas o mjeu texto vem espontaneamente.Não tenho nenhuma simpatia por
escritores que cortam. A minha simpatia maior é pelos escritores que
acrescentam !.
João
Cabral uma vez me disse que passava noites acordado, com angústia. Eu
dizia “Você só diz que passa noites acordado para ver se me causa
inveja, mas não causa não!”.
GMN : Ao contrário do que dizia Carlos Drummond de Andrade,escrever não é “cortar palavras”, mas acrescentar ?
Ledo Ivo:
“Um escritor francês disse que o bom escritor é aquele que “enterra uma
palavra por dia”. Para mim,o bom escritor é o que desenterra uma
palavra por dia ! . Porque o escritor lida com um patrimônio
lingüístico. De vez em quando o brasileiro ressuscita palavras
esquecidas”.
GMN:Por que afinal de contas o senhor não inclui em seus livros o tão citado poema sobre o Recife?
Ledo Ivo: Em primeiro lugar, porque os alagoanos protestariam. Eu tinha dezesseis anos quando escrevi o poema:
“Amar mulheres, várias
amar cidade,só uma – Recife.
E assim mesmo com as suas pontes
E os seus rios que cantam
E seus jardins leves como sonâmbulos
E suas esquinas que desdobram os sonhos de Nassau”
O
poema reflete a descoberta do Recife por um alagoano. Porque Recife tem
um lado cosmopolita – que me impressionou muito. O meu pai era
pernambucano. A família Ivo é pernambucana. Eu era considerado meio
pernambucano por ser ligado ao grupo do crítico Willy Lewin,nos anos
quarenta.Recife foi a cidade de minha primeira formação literária.
Fazíamos poemas nas mesas do Lafayette,numa época de boemia. O poema
sobre o Recife ficou desaparecido até 1947,quando chegou às mãos de
Mauro Mota – que o publicou no Diário de Pernambuco (ou terá sido no
Jornal do Commercio). O destino de um poema é curioso. A gente escreve
um poema; ele ganha vida própria,começa a circular.
Guardo
a lembrança de um conselho que Joaquim Cardozo me deu: ele dizia que eu
deveria ser um poeta alagoano,assim como ele era um poeta pernambucano.
O sentimento do berço tinha grande importância para ele”.
TERCEIRA ESTAÇÃO:
DRUMMOND, O GRANDE POETA SECRETO, ENTRA EM CENA
GMN : Qual é a grande lembrança que o senhor traz da convivência com Carlos Drummond de Andrade ?
Ledo Ivo:
“O que me impressionou em Drummond, já no primeiro encontro, foi um
certo “fechamento” interior. Não se entregava. Era como se vivesse
insulado em si mesmo. Há em Drummond algo que é “intransmissível”. Tive
essa sensação de intransmissibilidade. Eu levei meus primeiros poemas
para Drummond,no gabinete em que ele trabalhava,no prédio do Ministério
da Educação,no centro do Rio. Depois que leu, ele até chamou a atenção
de outros escritores para mim. Em seguida,vieram as rusgas,porque havia
divisões políticas naquele tempo. A coisa mais impressionante que
Drummond me disse foi num de nossos últimos encontros. Um certo poeta
brasileiro - de quem não quero dizer o nome - proclamou-se herdeiro de
Drummond. Quando me encontrei com ele, disse: “Como é que vai o
herdeiro?” . E ele : “O herdeiro de um poeta é o poeta diferente do
modelo. O meu herdeiro será um poeta inteiramente diferente de mim : é
esta a lição da poesia”. O herdeiro de Olavo Bilac foi Mário de
Andrade.Os herdeiros são os diferentes. São até os adversos : não são os
assemelhados. É a grande lição de Drummond que ficou em mim : ele não
espera ter um clone como herdeiro. (risos) O que Drummond esperava era o
“anti-clone”
.
GMN
: Nesse primeiro encontro, o senhor - que viria a se considerar um lobo
no poema “A Queimada” - teve a sensação de que o Drummond era o “urso
polar”,como ele disse que era num dos poemas ?
Ledo Ivo:
“Tive essa sensação. Drummond tinha uma vida amorosa muito escondida -
que depois,infelizmente, foi violada pela imprensa. Eu via,em
Drummond,um grande poeta secreto. Naquela época, 1940, Drummond não
tinha a notoriedade que ganhou depois. O próprio Manuel Bandeira pensava
que o grande poeta brasileiro daquela época fosse Augusto Frederico
Schmidt. Porque o Schmidt enrolava todo mundo (risos). Schmidt até
pensou em fazer um poema sobre a descoberta do Brasil,mas depois
Drummond veio com a Rosa do Povo e acabou com a festa”.
QUARTA ESTAÇÃO :
MANUEL BANDEIRA ENSINA QUE O POETA PRECISA SER CULTO
GMN : O que ficou da amizade com Manuel Bandeira ?
Ledo Ivo:
“Minha ligação com Manuel Bandeira foi profunda. De todos os poetas,
talvez o que mais me tenha marcado e ensinado foi Manuel Bandeira.
Quando eu era menino, mandei poemas para ele. Recebi de volta um
cartãozinho em que ele tocou em um ponto que ainda hoje permanece na
poesia: “Há muita magia verbal em seus poemas”. Depois percebi que, para
mim, a operação poética é como se fosse um encantamento da linguagem –
uma magia. Sou um poeta que acha que a poesia é o uso supremo da
linguagem.Bandeira fez esta descoberta em meu momento inicial. Deu-me
lições perenes : por exemplo,a de que o poeta deve ser um intelectual
culto. Só a cultura tem condições de abrir caminhos. Ao poeta,não basta
apenas ter talento e vocação. Por que o poeta deve ser realmente um
homem culto ? Porque a poesia é um sistema milenar de expressão. É
preciso conhecer os mestres. A criação poética não é,portanto,um
problema só de sensibilidade. É um problema de cultura. Somente o vasto
conhecimento da poesia e da literatura é que permite ao poeta
exprimir-se. A fidelidade à literatura deve ser o emblema do escritor.
Devemos continuar segurando o estandarte. Vivemos um tempo de mudanças.
Somos uma civilização de massas, uma civilização eletrônica, uma
civilização consumista. Tudo alterou a posição do escritor e do poeta no
Brasil. Já não temos aqueles poetas populares de que Drummond foi o
último grande exemplo.O poeta vive hoje em uma época de anonimato. Os
ícones são diferentes,os gurus são outros. A linguagem literária hoje
compete com a linguagem eletrônica, o CD-Rom, o cinema,o disco . Mas,há
alguma coisa que só a poesia tem condições de dizer. A
poesia,então,existirá sempre,como linguagem específica,porque só ela
pode dizer,sobre a condição humana,algo que não pode ser dito de nenhuma
outra maneira. O cinema e a televisão lidam de uma maneira diferente”.
GMN : O poeta, então, deve se resignar a ser anônimo, nesse mundo dominado pela fama e pela mídia eletrônica?
Ledo Ivo: “A função do poeta na sociedade é escrever poemas.A notoriedade é secundária”.
GMN : O senhor tem uma certa sensação de deslocamento por ser um poeta em uma sociedade que não dá tanto valor aos poetas?
Ledo Ivo: “Pelo
contrário ! Para mim, seria inconcebível ter aparecido antes ou ter
aparecido depois. Como poeta ,surgi no momento certo.Tenho um grande
sentimento da minha contemporaneidade.O mundo atual habita os meus
poemas.A função do poeta é,também,celebrar o mundo em que vive. Não
tenho nostalgia pelo passado. Não gostaria de ter nascido no
passado,assim como não gostaria de ter nascido no futuro”.
QUINTA ESTAÇÃO:
JOÃO CABRAL DÁ DE PRESENTE A LEDO UM EPITÁFIO EM FORMA DE POESIA
GMN : Do que o senhor ouviu de João Cabral de Melo Neto, qual foi a grande lição?
Ledo Ivo:
“João Cabral me deu a lição da diferença entre os poetas.Cada poeta é
diferente.As estéticas dos poetas são até inconcebíveis. Como são
diferentes os caminhos para fazer a mesma coisa ! . O que mais me
impressiona em João Cabral
é ele ser saudado sempre como “o poeta da razão”, no Brasil. Para mim,
João Cabral de Melo Neto é o poeta da “anti-razão”,o poeta da obsessão, o
poeta das coisas ocultas,o poeta das coisas sibilinas, herméticas. A
poesia que ele deixou é complexa,mas se abre para o grande acesso
popular, o que é curioso.Uma vez,João Cabral me disse: “Nós estamos
fazendo uma obra literária. Procuramos fazer uma obra literária o maior
possível.De repente, lá em Nova Iguaçu ,a essa hora, anonimamente, alguém pode estar fazendo a obra com que nós sonhamos”.
GMN :
Para o senhor - que se considera “um homem de muitas perguntas e quase
nenhuma resposta” - qual é a grande pergunta, a grande perplexidade que
até hoje o atormenta?
Ledo Ivo:
“A perplexidade é estar no mundo – com todas essas perguntas que se
acumulam; o fato de ser transitório; a existência e não-existência de
Deus; o problema da condição humana. Vivo num mundo em que quase não há
resposta.Não sei onde começo e onde termino. Sequer sei se existo,no
sentido de ter uma existência nítida,com fronteiras definidas.Talvez o
meu mundo seja o mundo da ambigüidade. Drummond chamou a minha poesia de
”múltipla”. É uma frase que ilumina mais uma existência poética do que
muitos rodapés. Quando publiquei “Confissões de um Poeta”, Hélio
Pellegrino me telefonou para dizer que ficou impressionado com o clima
de procura que há em todo o livro. Como era psicanalista e poeta,Hélio
Pellegrino disse que minha descoberta estava exatamente nessa procura.
Vivo nessa perpétua indecisão.O que me impressiona é que essa procura
tenha durado tanto; não tenha acabado ainda”.
GMN : Há em seus textos uma certa obsessão com a finitude.Qual foi o primeiro espanto que o senhor teve diante da morte?
Ledo Ivo: “Venho
de uma família numerosa. Tenho um irmão que morreu, o chamado
“anjinho”, aquele que morre novo.Outro irmão meu chamado Éber, morreu
aos oito anos. Numa família nordestina, numerosa,a morte vive sempre
rodeando as pessoas. Quando menino, eu gostava de visitar cemitérios.
Mas censuro a morte!. Como sou uma criatura do aqui e do agora, fico
impressionado com a morte, porque ela faz com que a gente já não esteja
aqui”. Talvez venha da infância o sentimento de que a vida é provisória e
instantânea. É um relâmpago. Além de tudo, há o mistério da existência:
por que será que uns morrem cedo, outros morrem tarde e outros não
morrem nunca ? “.
GMN :
O senhor faz,em um de seus textos,uma referência a uma caminhada
solitária pelas alamedas do Cemitério São João Batista.O que é que o
senhor estava fazendo no cemitério?
Ledo Ivo: “Devo
ter ido me despedir de um amigo.Não fui para visitar o cemitério. O
engraçado é que João Cabral escreveu o meu epitáfio em versos que ele
nunca incluiu em livro. O
que João queria era fazer um livro só de epitáfios de amigos. Terminou
não fazendo.João foi um grande amigo meu,mas tínhamos temperamentos
diferentes. Enquanto ele ia para um lugar, eu ia para outro. Nunca nos
encontramos - nem esteticamente. Dizia que eu falava muito; achava que
só a morte é que me reduziria ao silêncio. O epitáfio que João Cabral
criou para mim é este :
“Aqui repousa
Livre de todas as palavras
Ledo Ivo,
Poeta,
Na paz reencontrada
de antes de falar
E em silêncio, o silêncio
de quando as hélices
param no ar “.
|
Geneton Moraes Neto
Geneton Moraes Neto. Recife, 13/07/56. Para saber mais sobre o Jornalista Geneton, acesse http:www.geneton.com.br/quem/
|