BRECHÓ DO PÓ
existem duas cidades
(ou nenhuma)
unidas por razão alguma
em uma
uma sente saudade
a outra piedade
uma olha pra longe
a outra se esconde
uma se espelha
a outra se destelha
duas costelas
do mesmo barro
duas mulheres
do mesmo sarro
duas plantas
do mesmo jarro
uma é suja
a outra mal lavada
uma tem o céu no muro
a outra o incerto futuro
uma é made in portugal
a outra from pasárgada
o cordão umbilical
que as liga é o mar
cadeia parental
que costura uma a outra
igual duas ostras
temperadas de sal
irmãs siamesas
de igual natureza
uma vive de rendas
outra de prendas
uma está tombada
a outra desmoronada
uma quer exílio
a outra auxílio
mas na embaixada do meu peito
meu coração em beleza
põe mesa
e lhes dá asilo
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vista pelo alto
não se veem as crenças
brechada por baixo
não se sabem as rendas
e mesmo o povo
que dorme nos mirantes
acordando de repente
confundirá os poentes
uma é oficiosa
a outra é oficial
uma tem a rua da Manga
outra a rua Dr. Fulano de Tal
uma vai a Mântua
a outra é menstruada
uma olha Alcântara
a outra é alcantarada
a ruína-barbárie
de uma acareação em série
redundará às duas
uma procissão de cáries
uma está entrevada
até os ossos
a outra tem penhorada
as veias do pescoço
uma quer exílio
a outra quer auxílio
mas na embaixada do meu peito
sem ferir-lhes os vincos
meu coração abre os trincos
e oferece asilo
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agora as empoladas vovós
para completar as obras
convocaram as sogras
para um simpósio do oh
nessa concorrência rococó
abriram um pós-moderno brechó
juntaram todas as sobras
e vendem orgulho em pó
In. A Poesia Sou Eu - Poesia Reunida
Volumes 1 e 2 - Imago Editora.
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