Francisco Perna Filho - Poema


Foto by Rhett A. Butler
ACONTECIMENTOS



São duros os acontecimentos
do meu tempo:
escândalos,
crimes,
corrupção.
Enquanto isso, 
lá no fundo,
a poesia,
à maneira da flor,
imprensada na rocha,
nas pedras de Cida Almeida,
silenciosa,
rompe o escuro das trevas
e, timidamente, brota.

Do lado de cá,
na rua deserta,
não há mais o grito do jornaleiro,
somente o silêncio:
Chico Anysio, Millôr Fernandes, /tio Tito Perna.

O tempo de agora
continua infinito,
e nele retumbam os acontecimentos
no instante,
no instantâneo do click,
do compartilhamento:
- quantos homens sós, meu Deus!

As vozes do meu tempo
são midiáticas,
virtuais,
escondidas,
quase inaudíveis,
mas fazem estragos maiores
do que o grito.

A dor do meu tempo é coletiva,
sofremos todos,
ainda cedo,
desde a Síria, 
Egito, 
Palestina, 
Haiti.
Sentimos muito,
entre uma colher e outra 
que levamos à boca.
Já nos acostumamos.

Vivemos a morte,
coletivamente,
sem remorso,
sem culpa,
sem memória,
sem nos darmos conta 
de que também
morremos.

Lindolf Bell - Poema



Imagem by Androxa


A PALAVRA DESTINO



Deixai vir a mim
a palavra destino.

Manhã de surpresas, lascívia e gema.
Acasos felizes, deslizes.
Ovo dentro da ave dentro do ovo.
Palavra folha e flor.

Deixai vir a mim palavra
e seus versos, reversos:
         metamorfose,
         metaformosa.

Deixai vir a mim
a palavra pão-de-consolo.
Livre de ataduras, esparadrapos,
choques elétricos
e sutis guardanapos em seco engolidos socos.

Deixai vir a mim
a palavra intumescida pelo desejo .
a palavra em alvoroço sutil, ardil
e ave na folhagem da memória.
A palavra estremecida entre a palavra.
A palavra entre o som
mas entre o silêncio do som.

Deixai vir a mim
a palavra entre homem e homem.
E a palavra entre o homem
e seu coração posto à prova
na liberdade da palavra coração.

Deixai vir a mim
a palavra destino.

Odorico Tavares - Poema




VOLTA À CASA PATERNA

Limpem o espelho.
Se quiserem, não mexam na mobília.
Mas limpem o espelho:
Vai haver a volta a casa paterna.

Verdade é que não sei se tudo pode ficar como dantes:
se os sapatos ainda me caberão,
se as roupas apertadas ficarão,
se nos livros as antigas leituras estarão.
Mas limpem o espelho.

O rio pode muito bem ter desviado o seu curso,
e não encontrarei mais o local dos banhos à tardinha.

As pedras das ruas possivelmente não terão mais as marcas dos meus pés.
E nenhum indivíduo me indicará os caminhos conhecidos.
As árvores mesmo, se não são outras, mostrarão velhos troncos irreconhecíveis
Perguntarei inutilmente pelos companheiros:
Antônio? Frederico? Baltazar?
Oh! vozes que não me respondem! Amigos que jamais verei!

Decerto terei pelo menos as vozes dos pais ressoando de leve pelas paredes.

Por isso, limpem o espelho,
porque, apesar de todos os disfarces,
a imagem da criança que se foi há muito tempo e hoje voltou
se refletirá nítida e forte com a pureza e o encanto dos seus
primeiros sorrisos.

Imagem retirada da Internet: espelho

Bandeira Tribuzi - Poema




Imagem

Vista do mar, a cidade, 
subindo suas ladeiras, 
parece humilde presépio 
levantado por mãos puras: 
nimbada de claridade, 
ponteia velhos telhados 
com as torres das igrejas 
e altas copas de palmeiras.  
Seus dois rios, como braços 
cingem-lhe a doce figura.

Sobre a paz de sua imagem 
flui a música do tempo, 
cresce o musgo dos telhados 
e a umidade das paredes 
escorre pelos sobrados 
o amargo sal dos invernos.  
Tudo é doce e até parece 
que vemos só o animado 
contorno de iluminura 
e não a realidade: 
vista do mar, a cidade 
parece humilde presépio 
levantado por mãos puras 
e em sua simplicidade 

esconde glórias passadas,
sonha grandezas futuras.

Imagem retirada da Internet: São Luís do Maranhão

Octavio Paz - Poema


 
CREPÚSCULOS DE LA CIUDAD

A Rafael Vega Albela,
que aquí padeció

          I

Devora el sol restos ya inciertos;
el cielo roto, hendido, es una fosa;
la luz se atarda en la pared ruinosa;
polvo y salitre soplan sus desiertos.

Se yerguen más los fresnos, más despiertos,
y anochecen la plaza silenciosa,
tan a ciegas palpada y tan esposa
como herida de bordes siempre abiertos.

Calles en que la nada desemboca,
calles sin fin andadas, desvarío
sin fin del pensamiento desvelado.

Todo lo que me nombra o que me evoca
yace, ciudad, en ti, yace vacío,
en tu pecho de piedra sepultado.





Octavio Paz - Poema


AGUA NOCTURNA




La noche de ojos de caballo que tiemblan en la noche,
la noche de ojos de agua en el campo dormido,
está en tus ojos de caballo que tiembla,
está en tus ojos de agua secreta.

Ojos de agua de sombra,
ojos de agua de pozo,
ojos de agua de sueño.

El silencio y la soledad,
como dos pequeños animales a quienes guía la luna,
beben en esos ojos,
beben en esas aguas.

Si abres los ojos,
se abre la noche de puertas de musgo,
se abre el reino secreto del agua
que mana del centro de la noche.

Y si los cierras,
un río, una corriente dulce y silenciosa,
te inunda por dentro, avanza, te hace oscura:
la noche moja riberas en tu alma.

Murilo Mendes - Poema

 

A VOLTA DO FILHO PRÓDIGO


Ofício no altar terrestre,
Roseiras dando-se as mãos,
Iluminações na usina.
O filho pródigo
Despertou as nuvens,
Levanta a saia das árvores,
Abraça o amigo e o inimigo.
Navios batendo palmas
O esperam na enseada.

Ordenam a sinfonia:
Nijinsky dançando no arco-íris
Reconcilia o céu e a terra.

Imagem retirada da Internet: Nijinsky

ARMILAVDA



Armilavda, ó doce Armilavda,
Lembras-te do tempo em que descobríamos o universo,
Em que ficávamos na varanda à espera da lua chegar,
Retendo a respiração diante do movimento das ondas?
Em que folheávamos grandes livros de gravuras,
Ou então nos debruçávamos sobre o mapa da terra.
Lembras-te quando te apontei um dia a Áustria,
A Índia com seus palácios e seus deuses,
A China da surpresa e das metamorfoses?

Armilavda,
Sei que te lembras do tempo
Em que íamos para o campo assistir à germinação da semente
(Corrias, solta a cabeleira ao vento,
Tuas pernas eram fortes e polidas
Como as da dançarina que eu vi no ginásio de dança,
E os laçarotes azuis do teu vestido
Se confundiam com as borboletas do mato).
Sei que te lembras do jogo de bilboquê no quarto ladrilhado,
Da noite em que surgiste de dominó para o baile de máscaras,
De nossas primas tocando piano a quatro mãos,
Das chuvas de pedra e do sinal de Deus na nuvem.
Que te lembras de tudo. Das nossas respirações em suspenso,
Das longas confidências no jardim de magnólias,
Do movimento das ondas, lá fora, despeteando a praia.
Sei que guardaste todas as imagens,
Que de vez em quando sobe-te às narinas o cheiro das magnólias
E que reconstituis o nosso tempo antigo.

Armilavda, Armilavda,
O tempo é o mesmo, germina nos campos a semente de outrora,
A lua chega esta noite entre nuvens e presságio,
As ondas lá fora despenteiam a praia.

Armilavda, Armilavda, o tempo é o mesmo:
As espadas dos tiranos retalham as partituras das sinfonias austríacas,
Nos palácios da Índia com seus deuses
Lutam tropas de párias e soldados nus,
Na china da surpresa e da metamorfose
Morrem crianças e velhos metralhados.
Consultáramos tantos mapas, lêramos tantos livros:
Mas não tínhamos lido a história de Abel e Caim.


In. As Metamorfoses.Rio de Janeiro: Record, 2002,p.53-54.
Imagem retirada da Internet: Murilo Mendes

Brasigóis Felício - Ensaio Crítico


graciramos.gif (983 bytes)



Angústia e aridez em Graciliano Ramos
                                                              
                                                               
Balzac, o grande romancista francês, que ambicionou, na criação de personagens, competir com o registro civil de seu país, afirmou que a humanidade sacrifica seus pensadores, para depois erigir-lhes estátuas. Parece ter sido este o caso do escritor brasileiro Graciliano Ramos. Mesmo após consagrar-se como um de nossos maiores romancistas, aplaudido por críticos do porte de Álvaro Lins, pela criação de obras imortais da literatura, como São Bernardo, Angústia e Vidas secas, continuou sendo ignorado por Alagoas, seu estado natal.

Em Maceió, onde residiu e foi diretor da Imprensa Oficial, não há nenhuma homenagem à sua pessoa, na forma de museu, casa onde tenha residido. Talvez leve seu nome algum remoto logradouro ou rua de periferia - ao contrário das expressivas homenagens a coronéis políticos de todos os tempos. Dizem os otimistas que o fato talvez seja reflexo da timidez e retraimento do autor, sempre a ocultar ou reprimir o fluxo das emoções, na secura de seu texto seco, despido de adiposidade ou da gordura dos adjetivos, reduzido quase a osso puro: Aludindo à estranha atmosfera de sonho ou delírio, presente nos romances São Bernardo, Angústia e Vidas Secas, Otto Maria Carpeaux assinala a presença, em sua ficção, de tentativas de autodestruição, ou de acabar com a memória: "Há nas minhas recordações estranhos hiatos", diz Luís da Silva, o pessimista personagem de Angústia: "Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente!Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento".

Há uma afinidade temática visível, entre os romances Vidas secas, de Graciliano Ramos, e  e Ratos e homens, de Stenbeck. Só que o cenário nordestinado é destituído de toda esperança de haver água. É um Mundo rios sem água, de estranhos nomes, como Doido, Barriga, Fubá - como quem vive ao Deus-dará.Quando no tempo não existem horas, só alucinações e sonhos nevoentos, estamos imersos na dimensão do devaneio, ausentes de nós mesmos - situação de vida ou de sobrevivência em que quase não vibra a luz da consciência. E nesta transformação da existência em sonho se comprazem os que dedicam-se a tentar fugir à realidade, correndo freneticamente, no afã de escapar da visão da sua sombra. Empreitada impossível, visto que a sombra segue o vivente por toda parte onde ele vá. Se o fim  é o destino inevitável de tudo o que vive, viver com sabedoria é estar consciente de todas as fases do "vão das coisas", escolhendo o caminho a seguir, não sendo levado como perau, na correnteza dos acontecimentos.

Precipícios não têm princípios - em face da miséria auto-sustentada não se sabe se há fim, nem quando se deu o início. O mundo de angústia e das vidas secas de Graciliano Ramos parece ser um espelho a refletir a desolação de deserto presente nos versos de Thomas Hardy:"Negra copa a noite avança, mas a morte não apavora quem passou tudo e espera sem esperança".

Eça de Queirós - Conto


 
O Tesouro





Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guannes e Rostabal, eram então, em todo o Reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados.

Nos paços de Medranhos, a que o vento da serra levara vidraça e telha, passavam eles as tardes desse inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo as solas rotas sobre as lajes da cozinha, diante da vasta lareira negra, onde desde muito não estalava lume, nem fervia a panela de ferro. Ao escurecer devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho. Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a neve, iam dormir à estrebaria, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como eles, roíam as traves da manjedoura. E a miséria tornara esses senhores mais bravios que lobos.

Ora, na Primavera, por uma silenciosa manhã de domingo, andando todos os três na mata de Roquelanes a espiar pegadas de caça e a apanhar tortulhos entre os robles, enquanto as três éguas pastavam a relva nova de abril, - os irmãos de Medranhos encontraram, por trás de uma mouta de espinheiros, numa cova de rocha, um velho cofre de ferro. Como se o resguardasse uma torre segura, conservava as suas três chaves nas suas três fechaduras. Sobre a tampa, mal decifrável através da ferrugem, corria um dístico em letras árabes. E dentro, até às bordas, estava cheio de dobrões de ouro!

No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficaram mais lívidos do que círios. Depois, mergulhando furiosametne as mãos no ouro, estalaram a rir, num riso de tão larga rajada, que as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam... E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a flamejar, numa desconfiança tão desabrida que Guannes e Rostabal apalpavam nos cintos os cabos das grandes facas. Então Rui, que era gordo e ruivo, e o mais avisado, ergueu os braços, como um árbitro, e começou por decidir que o tesouro, ou viesse de Deus ou do demônio, pertencia aos três, e entre eles se repartiria, rigidamente, pesando-se o ouro em balanças. Mas como poderiam carregar para Medranhos, para os cimos da serra, aquele cofre tão cheio? Nem convinha que saíssem da mata com o seu bem, antes de cerrar a escuridão. Por isso ele entendia que o mano Guannes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho, levando já ouro na bolsinha, a comprar três alforges de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne e três botelhas de vinho. Vinho e carne eram para eles, que não comiam desde a véspera: a cevada era para as éguas. E assim refeitos, senhores e cavalgaduras, ensacariam o ouro nos alforges e subiriam para Medranhos, sob a segurança da noite sem Lua.

- Bem tramado! - gritou Rostabal, homem mais alto que um pinheiro, de longa guedelha e com uma barba que lhe caía desde os olhos raiados de sangue até à fivela do cinturão.

Mas Guannes não se arredava do cofre, enrugado, desconfiado, puxando entre os dedos a pele negra do seu pescoço de grou. Por fim, brutalmente:

- Manos! O cofre tem três chaves... Eu quero fechar a minha fechadura e levar a minha chave!

- Também eu quero a minha, mil raios! - rugiu logo Rostabal.

Rui sorriu. Decerto, decerto! A cada dono do ouro cabia uma das chaves que o guardavam. E cada um em silêncio, agachado ante o cofre, cerrou a sua fechadura com força. Imediatamente Guannes, desanuviado, saltou na égua, meteu pela vereda de olmos, a caminho de Retortilho, atirando aos ramos a sua cantiga costumada e dolente:


Olé! Olé!
Sale la cruz de la iglesia,
Vestida de negro luto...


Na clareira, em frente à mouta que encobria o tesouro (e que os três tinham desbastado a cutiladas), um fio de água, brotando entre rochas, caía sobre uma vasta laje encravada, onde fazia como um tanque, claro e quieto, antes de se escoar para as relvas altas. E ao lado, na sombra de uma faia, jazia um velho pilar de granito, tombado e musgoso. Ali vieram sentar-se Rui e Rostabal, com os seus tremendos espadões entre os joelhos. As duas éguas tosavam a boa erva pintalgada de papoilas e botões de ouro. Pela ramaria andava um melro a assobiar. Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso. E Rostabal, olhando o sol, bocejava com fome.

Então Rui, que tirara o sombrero e lhe cofiava as velhas plumas roxas, começou a considerar, na sua fala avisada e mansa, que Guannes, nessa manhã, não quisera descer com eles à mata de Roquelanes. E assim era a sorte ruim! Pois que se Guannes tivesse quedado em Medranhos, só eles dois teriam descoberto o cofre, e só entre eles dois se dividiria o ouro! Grande pena! Tanto mais que a parte de Guannes seria em breve dissipada, com rufiões, aos dados, pelas tavernas.

- Ah! Rostabal, Rostabal! Se Guannes, passando aqui sozinho, tivesse achado este ouro, não dividia conosco, Rostabal!

O outro rosnou surdamente e com furor, dando um puxão às barbas negras:

- Não, mil raios! Guannes é sôfrego... Quando o ano passado, se te lembras, ganhou os cem ducados ao espadeiro de Fresno, nem me quis emprestar três para eu comprar um gibão novo!

- Vês tu! - gritou Rui, resplandecendo.

Ambos se tinham erguido do pilar de granito, como levados pela mesma idéia, que os deslumbrava. E, através das suas largas passadas, as ervas altas silvavam.

- E para quê - prosseguia Rui. - Para que serve todo o ouro que nos leva! Tu não o ouves, de noite, como tosse! Ao redor da palha em que dorme, todo o chão está negro do sangue que escarra! Não dura até às outras neves, Rostabal! Mas até lá terá dissipado os bons dobrões que deviam ser nossos, para levantarmos a nossa casa, e para tu teres ginetes, e armas, e trajes nobres, e o teu terço de solarengos, como compete a quem é, como tu, o mais velho dos de Medranhos...

- Pois que morra, e morra hoje! - bradou Rostabal.

- Queres!

Vivamente, Rui agarrara o braço do irmão e apontava para a vereda de olmos, por onde Guannes partira cantando:

- Logo adiante, ao fim do trilho, há um sítio bom, nos silvados. E hás-de ser tu, Rostabal, que és o mais forte e o mais destro. Um golpe de ponta pelas costas. E é justiça de Deus que seja tu, que muitas vezes, nas tavernas, sem pudor, Guannes te tratava de cerdo e de torpe, por não saberes a letra nem os números.

- Malvado!
- Vem!

Foram. Ambos se emboscaram por trás dum silvado, que dominava o atalho, estreito e pedregoso, como um leito de torrente. Rostabal, assolapado na vala, tinha já a espada nua. Um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos - e sentiram o repique leve dos sinos de Retortilho. Rui, coçando a barba, calculava as horas pelo sol, que já se inclinava para as serras. Um bando de corvos passou sobre eles, grasnando. E Rostabal, que lhes seguira o voo, recomeçou a bocejar, com fome, pensando nos empadões e no vinho que o outro trazia nos alforges.

Enfim! Alerta! Era, na vereda, a cantiga dolente e rouca, atirada aos ramos:


Olé! Olé!
Sale la cruz de la iglesia
Toda vestida de negro...

Rui murmurou:
 - “Na ilharga! Mal que passe!” O chouto da égua bateu o cascalho, uma pluma num sombrero vermelhejou por sobre a ponta das silvas.

Rostabal rompeu de entre a sarça por uma brecha, atirou o braço, a longa espada; - e toda a lâmina se embebeu molemente na ilharga de Guannes, quando ao rumor, bruscamente, ele se virara na sela. Com um surdo arranco, tombou de lado, sobre as pedras. Já Rui se arremessava aos freios da égua: - Rostabal, caindo sobre Guannes, que arquejava, de novo lhe mergulhou a espada, agarrada pela folha como um punhal, no peito e na garganta.

- A chave! - gritou Rui.

E arrancada a chave do cofre ao seio do morto, ambos largaram pela vereda - Rostabal adiante, fugindo, com a pluma do sombrero quebrada e torta, a espada ainda nua entalada sob o braço, todo encolhido, arrepiado com o sabor de sangue que lhe espirrara para a boca; Rui, atrás, puxando desesperadamente os freios da égua, que, de patas fincadas no chão pedregoso, arreganhando a longa dentuça amarela, não queria deixar o seu amo assim estirado, abandonado, ao comprido das sebes.

Teve de lhe espicaçar as ancas lazarentas com a ponta da espada: - e foi correndo sobre ela, de lâmina alta, como se perseguisse um mouro, que desembocou na clareira onde o sol já não dourava as folhas. Rostabal arremessara para a relva o sombrero e a espada; e debruçado sobre a laje escavada em tanque, de mangas arregaçadas, lavava, ruidosamente, a face e as barbas.

A égua, quieta, recomeçou a pastar, carregada com os alforjes novos que Guannes comprara em Retortilho. Do mais largo, abarrotado, surdiam dois gargalos de garrafas. Então Rui tirou, lentamente, do cinto, a sua larga navalha. Sem um rumor na selva espessa, deslizou até Rostabal, que resfolgava, com as longas barbas pingando. E serenamente, como se pregasse uma estaca num canteiro, enterrou a folha toda no largo dorso dobrado, certeira sobre o coração.

Rostabal caiu sobre o tanque, sem um gemido, com a face na água, os longos cabelos flutuando na água. A sua velha escarcela de couro ficara entalada sob a coxa. Para tirar de dentro a terceira chave do cofre, Rui solevou o corpo - e um sangue mais grosso jorrou, escorreu pela borda do tanque, fumegando.


AGORA eram dele, só dele, as três chaves do cofre!... e Rui, alargando os braços, respirou deliciosamente. Mal a noite descesse, com o ouro metido nos alforges, guiando a fila das éguas pelos trilhos da serra, subiria a Medranhos e enterraria na adega o seu tesouro! E quando ali na fonte, e além rente aos silvados, só restassem, sob as neves de dezembro, alguns ossos sem nome, ele seria o magnífico senhor de Medranhos, e na capela nova do solar renascido mandaria dizer missas ricas pelos seus dois irmãos mortos... Mortos, como? Como devem morrer os Medranhos - a pelejar contra o Turco!

Abriu as três fechaduras, apanhou um punhado de dobrões, que fez retinir sobre as pedras. Que puro ouro, de fino quilate! E era o seu ouro! Depois de examinar a capacidade dos alforges - e encontrando as duas garrafas de vinho, e um gordo capão assado, sentiu uma imensa fome. Desde a véspera só comera uma lasca de peixe seco. E há quanto tempo não provava capão!

Com que delícia se sentou na relva, com as penas abertas, e entre elas a ave loura, que rescendia, e o vinho cor de âmbar! Ah! Guannes fora bom mordomo - nem esquecera azeitonas. Mas por que trouxera ele, para três convivas, só duas garrafas? Rasgou uma asa do capão: devorava a grandes dentadas. A tarde descia, pensativa e doce, com nuvenzinhas cor-de-rosa. Para além, na vereda, um bando de corvos grasnava. As éguas fartas dormitavam, com o focinho pendido. E a fonte cantava, lavando o morto.

Rui ergueu à luz a garrafa de vinho. Com aquela cor velha e quente, não teria custado menos de três maravedis. E pondo o gargalo à boca, bebeu em sorvos lentos, que lhe faziam ondular o pescoço peludo. Oh vinho bendito, que tão prontamente aquecia o sangue! Atirou a garrafa vazia - destapou outra. Mas, como era avisado, não bebeu porque a jornada para a serra, com o tesouro, requeria firmeza e acerto. Estendido sobre o cotovelo, descansando, pensava em Medranhos coberto de telha nova, nas altas chamas da lareira por noites de neve, e o seu leito com brocados, onde teria sempre mulheres.

De repente, tomado de uma ansiedade, teve pressa de carregar os alforges. Já entre os troncos a sombra se adensava. Puxou uma das éguas para junto do cofre, ergueu a tampa, tomou um punhado de ouro... mas oscilou, largando os dobrões que retilintaram no chão, e levou as duas mãos aflitas ao peito. Que é, D. Rui! Raios de Deus! era um lume, um lume vivo, que se lhe acendera dentro, lhe subia até às goelas. Já rasgara o gibão, atirava os passos incertos e, a arquejar, com a língua pendente, limpava as grossas bagas dum suor horrendo que o regelava como neve. Oh Virgem Mãe! Outra vez o lume, mais forte, que alastrava, o roía! Gritou:

- Socorro! Além! Guannes! Rostabal!

Os seus braços torcidos batiam o ar desesperadamente. E a chama dentro galgava - sentia os ossos a estalarem como as traves duma casa em fogo.

Cambaleou até à fonte para apagar aquela labareda, tropeçou sobre Rostabal; e foi com o joelho fincado no morto, arranhando a rocha, que ele, entre uivos, procurava o fio de água, que recebia sobre os olhos, pelos cabelos. Mas a água mais o queimava, como se fosse um metal derretido. Recuou, caiu para cima da relva que arrancava aos punhados, e que mordia, mordendo os dedos, para lhe sugar a frescura. Ainda se ergueu, com uma baba densa a escorrer-lhe nas barbas: e de repente, esbugalhando pavorosamente os olhos, berrou como se compreendesse enfim a traição, todo o horror:

- É veneno!

Oh! D. Rui, o avisado, era veneno! Porque Guannes, apenas chegara a Retortilho, mesmo antes de comprar os alforges, correra cantando a uma viela, por detrás da catedral, a comprar ao velho droguista judeu o veneno que, misturado ao vinho, o tornaria a ele, a ele somente, dono de todo o tesouro.

Anoiteceu. Dois corvos de entre o bando que grasnava, além nos silvados, já tinham pousado sobre o corpo de Guannes. A fonte, cantando, lavava o outro morto. Meio enterrada na erva, toda a face de Rui se tornara negra. Uma estrelinha tremeluzia no céu.

O tesouro ainda lá está, na mata de Roquelanes.


In. A Palavra é Portugal. São Paulo: Spicione, 1990, p.84-93.
Imagem retirada da Internet: tesouro

Thiago de Mello - Poema


Os astros íntimos


Consulto a luz dos meus astros, 
cada qual de cada vez. 
Primeiro olho o do meu peito: 
um sol turvo é o meu defeito. 
A minha amada adormece 
desgostosa do que sou: 
a estrela da minha fronte 
de descuidos se apagou. 

Ela sonha mal do rumo 
que minha galáxia tomou. 
Não sabe que uma esmeralda 
se esconde na dor que dou. 

A cara consigo ver, 
sem tremor e sem temor, 
da treva engolindo a flor. 
Percorre a mata um espanto. 

A constelação que outrora 
ardente cruzava o campo 
da vida, hoje mal demora 
no fulgor de um pirilampo. 

Mas vale ver que perdura 
serena em seu resplendor, 
mesmo de luz esgarçada, 
a nebulosa do amor.




Barreirinha, Ponta da Gaivota, 97
Imagem retirada da Internet: sistema solar

Olavo Bilac - Poema Infantil


A PRIMAVERA




Coro das quatro estações


Cantemos! Fora a tristeza!
Saudemos a luz do dia:
Saudemos a Natureza!
Já nos voltou a alegria!


A Primavera

Eu sou a Primavera!
Está limpa a atmosfera,
E o sol brilha sem véu!
Todos os passarinhos
Já saem dos seus ninhos,
Voando pelo céu.
Há risos na cascata,

Nos lagos e na mata,
Na serra e no vergel:
Andam os beija-flores
Pousando sobre as flores,
Sugando-lhes o mel.
Dou vida aos verdes ramos,
Dou voz aos gaturamos
E paz aos corações;
Cubro as paredes de hera;
Eu sou a Primavera,
A flor das estações!

Coro das quatro estações

Cantemos! Fora a tristeza!
Saudemos a luz do dia:
Saudemos a Natureza!
Já nos voltou a alegria!



In. Poesias Infantis. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1949.
Imagem retirada da Internet: Primavera

José Geraldo Neres - Poema



UMA SEMENTE



corpo de lábios líricos
a se enterrar na carne do meu canto 
a criar a sede do abismo
& a queda desenfreada
a linguagem despe a morte
silêncio a se mover num cardume de sonhos
a se abrir num par de olhos
caminho a ser nomeado
a mergulhar os relógios nos lábios das horas noturnas
o outro
lâmina a respirar meus passos
& a morder a cauda da madrugada
& sentir nesses lábios as vozes das cores
a língua do horizonte um grito assassino
enterra-se na carne do meu canto



josé geraldo neres, do livro "Outros silêncios" (Escrituras, 2009).

Imagem retirada da Internet: IPlay.com.br 

Thiago de Mello - Poema


 

Canto do meu canto


Escrevi no chão do outrora
e agora me reconheço:
pelas minhas cercanias
passeio, mal me freqüento.
Mas pelo pouco que sei
de mim, de tudo que fiz,
posso me ter por contente,
cheguei a servir à vida,
me valendo das palavras.
Mas dito seja, de uma vez por todas,
que nada faço por literatura,
que nada tenho a ver com a história,
mesmo concisa, das letras brasileiras.
Meu compromisso é com a vida do homem,
a quem trato de servir
com a arte do poema. Sei que a poesia
é um dom, nasceu comigo.
Assim trabalho o meu verso,
com buril, plaina, sintaxe.
Não basta ser bom de ofício.
Sem amor não se faz arte.

Trabalho que nem um mouro,
estou sempre começando.
Tudo dou, de ombros e braços,
e muito de coração,
na sombra da antemanhã,
empurrando o batelão
para o destino das águas.
(O barco vai no banzeiro,
meu destino no porão.)

Nada criei de novo.
Nada acrescentei às forma
tradicionais do verso.
Quem sou eu para criar coisas novas,
pôr no meu verso, Deus me livre, uma
                 invenção.


Imagem retirada da Internet: escrita na areia

Francisco Perna Filho - Crônica



 
Nelson da Luz, a céu aberto 




Em outubro de 2011, Nelson Renato da Luz, um cidadão brasileiro, miserável, morador de rua, foi preso ao tentar furtar placas de zinco da estação República do metrô de São Paulo. Dois dias depois, a juíza da 14ª Vara Criminal da Capital converteu o flagrante em prisão preventiva e, posteriormente, por intercessão de alguns advogados, defensores dos oprimidos, descobriu-se que o "meliante" era inimputável, por sofrer de transtornos mentais, o que fez com que o relator da 1ª Câmara de Direito Criminal cogitasse interná-lo num hospital de custódia e tratamento, mas concluiu que tal medida só se aplicaria nos casos de crimes violentos ou praticados com grave ameaça, o que não era o caso de Nelson, daí a decisão de converter a prisão preventiva em prisão domiciliar.

Até aí, tudo bem, o hilário nessa história toda é que o mendigo é morador de rua, sem teto, sem residência fixa, sem "domicilio", vivendo a céu aberto, quando não, sob as marquises dos prédios da grande cidade de São Paulo, não podendo, portanto, cumprir prisão domiciliar aos moldes da Justiça Brasileira, já que prisão domiciliar pressupõe permanecer em casa, sem direito de sair à rua, o que, no caso dele, contraria a determinação do juiz, e o coloca na condição de descumpridor de uma ordem judicial, podendo ser preso a qualquer momento, mesmo já estando preso.

Pensando de outra maneira, já que sua prisão é domiciliar e ele é um sem-teto e vive nas ruas, pela lógica, o seu domicílio são as ruas, sendo assim, não poderá, em hipótese alguma, ser considerado um infrator da lei, uma vez que das ruas não se ausenta, nelas permanece, mesmo sem ter consciência do que seja prisão domiciliar; mas é certo que saiba muito de ausências, de privações, de frio, de fome e de abandono.

Não sabemos o que se passa na cabeça de um ser que furta placas; não sabemos com que pretensão ele as roubou. Talvez, quem sabe, tenha fixação pelos signos, pelos símbolos, pela linguagem. Ou mais simples, queira apenas proteger-se das intempéries: do frio, da chuva, dos ditos "humanos", empedernidos pela própria estupidez. Ou, talvez, sonhasse mesmo com um cantinho, um abrigo para si, onde pudesse cumprir a sua prisão mental, o que, por ironia o levara à prisão e ao constrangimento de cumprir uma pena a céu aberto, passagem que me faz lembrar um dos maiores poetas da língua Portuguesa, o goiano José Décio Filho, que insistia em vender um terreno, que possuía em Goiânia (se não me falha a memória), ao também escritor e imortal da ABL, Bernardo Elis, que, não resistindo aos inúmeros apelos do amigo, fora conhecer tal terreno, estacando admirado ante a pequenez da gleba, o que o fez interrogar José Décio: - É este o terreno, Zé? No que José Décio respondeu: - Já viu o tamanho do céu?
Assim como em José Décio Filho, talvez, para Nelson, o céu seja o limite, onde poderá refestelar-se com alguns flashes de sanidade, sem os privilégios dos "ladrões sofisticados", que usam terno e gravata e têm foro privilegiado e nenhum sentimento. 

Imagem retirada da Internet: roubo


Francisco Perna Filho - Poema


Imagem Wikipédia

 
Em desalinho 



O bruto ser que brota,
nos olhos finos do gato,
em plena luz refletida.
a loucura da palavra
que me impede a boca
o beijo travo da louca
que me assalta o sonho.

Um caminho
que nunca volta,
a porta em desalinho
na sombra que me reflete torto.
O passarinho rouco
em desacelerado canto
um beijo tenso guardado
Quando me levanto.

Tarde tarda tantas vezes o sono
Sou assim assado sempre que me escondo,
me escudo, me recuso, nunca me acho
A fina flor que carrego
morreu de orvalho.

Manoel Bueno Brito (Nequito) - Poema

 

República dos sonhos


Para Nélida Piñon



Esperança,
que armas se levantam
das palavras que acendes
na boca da noite iminente?

Antígona, renascida
de outra tempestade,
?como enfrentar a lei
na alma da cidade morta?

O que não direi
ao rei: se rei,
serei indiferente?

Imagem retirada da Internet: Antígona

Manuel Bueno Brito (Nequito) - Poema


Nickolas Muray, Frida Kahlo, Nova Iorque, 1946
Versos marginais


O tema




Pende no teu ombro
e clama um dilema
apenas o tema: a ave
no cajueiro do quintal.
Querias vir colher a fruta,
a ave, principal, te chama.


Vivida nas humanas artes
a ave, de se prezar livre, foge
ao amor fundo do teu olhar
onde, mais grave, o desejo:
desde quando, ser volúvel,
frutificas, passarinhas?


Fonte dessa imagem: Arte Photographica

Célia Musilli - Poema



LÍGIA




eu sou a lenda  da mulher inexistente
só me vê  quem me consente
na solidão do encantamento de Ulisses
pérola entre os corais  
bailarina em ponta nos cristais
esfinge verde dos cabelos lisos


canto confundindo as marés
sopro barcos ao vento do desconhecido
deixo pegadas na areia
envio cartas de sereia
onde nada permanece escrito...


(Do livro Sensível Desafio/ 2006/ Foto: Elena Kalis)
Imagem retirada da Internet: deusa

José Régio - Poema



CANÇÃO DA PRIMAVERA



Eu, dar flor, já não dou. Mas vós, ó flores, 
pois que maio chegou, 
Revesti-o de clâmides de cores! 
Que eu, dar flor, já não dou.


Eu, cantar já não canto. Mas vós, aves, 
Acordai desse azul,calado há tanto, 
As infinitas naves! 
Que eu, cantar, já não canto.


Eu, invernos e outonos recalcados 
Regelaram  meu  ser  neste  arripio... 
Aquece tu, ó sol, jardins e  prados! 
Que eu, é de mim o frio.


Eu,  Maio, já não tenho. Mas tu, Maio, 
Vem, com tua paixão, 
Prostrar a terra em cálido desmaio! 
Que eu, ter Maio, já não.


Que eu, dar flor, já não dou; cantar,não canto; 
Ter sol, não tenho; e amar...  
Mas,  se não amo, 
Como é que,  Maio em flor, te chamo tanto, 
E não por  mim  assim te chamo?  


Imagem retirada da Internet: Primavera

Leia também

Valdivino Braz - Poema

Soldado ucraniano Pavel Kuzin foi morto em Bakhmut  - Fonte BBC Ucrânia em Chamas - Século 21                               Urubus sobrevoam...