Carlos Drummond de Andrade - Poema








Carlos Drummond de Andrade










Amor, pois que é palavra essencial



Amor – pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa externa região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da prórpia vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar está gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o climax:
é quando o amor morre de amor, divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.



In.O amor natural. Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1992. p.5.
Imagem: Cupid and Psyche

Lacordaire Vieira - Conto





Lacordaire Vieira








Lacordaire Vieira é natural de Guapó, Goiás. Nasceu em 1946, foi criado em São Luís de Montes Belos. Mudou para Goiânia em 1965, onde reside até hoje. É Mestre em Letras e Lingüística pela UFG, é professor, literato e lingüista. Com o livro O Corpo, ganhou o Prêmio Bolsa de Publicações Cora Coralina Categoria Geral. Publicou textos também para a imprensa local. É autor das seguintes obras: Detalhes em Preto e Branco (contos, 1995), A Voz dos Vivos (contos, 1997), O conto Sociológico Urbano (ensaio, 1999), Os Níveis de Análise Lingüística (ensaio, 2003), Os Riscos da Língua (ensaio, 2003), O Corpo (contos, 2004).





FORMIGAMENTO





- O próximo - anunciou a recpcionista do Dr. Isaac.

As pessoas se olham sem saber quem é o próximo, mas a dúvida se dissipa em seguida com a chamada pelo nome:

-Miúcha! Quem é Miúcha?
-Sou eu, meu bem!
-Pode entrar!

Miúcha se levanta com o assombro de todos pela beleza global de sua altura e entra pela porta semi-aberta do consultório.
Dr. Isaac, cabeça baixa, examina-lhe a ficha: "Miúcha Miúra, brasileira, goiana, goianiense, 22 anos, Setor Oeste, modelo fotográfico."

- É a primeira vez?
- Como assim?
- O enjôo... quando começou?
- Há um mês mais ou menos...
- Desde que você trabalha na Agência?
- Há uns dois meses...
- Você já tinha sentido essas ânsias de vômitos antes?
- Do jeito de agora, não...
- Como é o seu trabalho?
- Difícil, doutor...muito difícil!
- Quantas horas por dia?
- Umas doze horas. Entro às dez da manhã e às vezes fico até meia-noite, uma hora...
- O que você faz?
- Tudo!
- Tudo como?
- É!...Todo tipo de fotografia...Todo tipo de pose. Nua! ...seminua!... madame... sensual... de todo jeito.
- Você fica tensa?
- Às vezes..
- Sente-se aí! (Indica-lhe uma caminha alta e branca com uma escadinha ao lado)
- Tire a blusa (Apalpa-lhe o pulso, mede a pressão)
- Deita! (Põe luvas brancas, pressiona a barriga e os seios).
- Dói?
- Não!
- E aqui?
- Também não!...
- Pode levantar (Senta-se novamente atrás da mesa com tampão de vidro e continua a consulta).
- Como são suas fezes?
- As minhas fezes?...
- É!... Se são amarelas, escuras? ...
- Amareladas...Acho que são amareladas... Nunca observei bem...
- Suas fezes ficam no fundo ou flutuam no vaso?
- Um pouco em cima... e um pouco embaixo... As primeiras que saem ficam em cima...
- Têm mau cheiro?
- Tem vez que tem... Mas não é sempre não...
- À noite, sente uma coceira no ânus?
- Outro dia, parece que percebi um formigamentozinho...
- Está bem! Faça esses exames, tome o lombrigueiro e volte na próxima semana (Passa-lhe o pedido e a receita, e anuncia para a recepcionista o fim da consulta).
- O próximo!
- O próximo! - repete a secretária abrindo-lhe a porta. (Ainda no ar, um suave sabor de perfume loiro...)



In. Detalhes em |Preto e Branco. Lacordaire Vieira. Goiânia:Editora da UCG, 1995, p.73-75
Imagem: Loira

Sinésio Dioliveira - Fotopoema




Sinésio Dioliveira















Deus mora em almas


Foram muitas preces rezadas.
Foram muitos pecados confessados.
Apenas as paredes ouviram.

Deus foi embora da igreja
(Se é que Ele desse jeito exista
E se acomode entre tijolos.)

Deus mora em almas...

Os romeiros vão muito longe
Sob sol ou chuva
À procura de Deus
Quando pra encontrá-lo
Nenhum passo seria necessário.

Não sabem eles
Que Deus anda muito ocupado:
Colorindo flores
Fazendo chuvas
Madurando frutos
Ensinando música aos pássaros
Portanto sem tempo pra ouvi-los.

Não sabem os romeiros
Que não é Deus que os chama
Mas homens famintos de algibeira.


Foto by Sinésio Dioliveira. Igreja - Todos os direitos reservados.

Sóror Mariana Alcoforado - Carta









Mariana Alcoforado









(...)



Depois destes abalos tenho sofrido muitas enfermidades, mas posso eu viver sem males em tanto que não te vir?
Suporto-os sem murmurar pois que de ti provêm.
Coitada de mim! é esta a recompensa que me dás de te haver carinhosamente amado?
Não importa.
Estou decidida a adorar-te toda a vida e a não querer a mais ninguém.
Digo-te que farás bem, igualmente, em não amar outra.
Porventura poderia contentar-te uma paixão menos ardente do que a minha
Encontrarias talvez mais formosura, - e contudo dizias-me outrora que eu era bonita, - mas não encontrarias, nunca, tanto amor...e tudo o mais é nada.
Não enchas as tuas cartas de coisas inúteis, e não me digas mais que me lembre de ti.
Eu não posso esquecer-te, e não me esqueço, tampouco, de que me fizeste esperar que virias passar algum tempo comigo.
Ai por que não queres tu passar comigo toda a tua vida!
Pudesse eu sair deste aborrecido convento, que não esperaria em Portugal, não, que se cumprissem as tuas promessas!...
Iria, sem escrúpulos, procurar-te e seguir-te e amar-te por toda parte.
Não ouso mesmo pensar que fosse possível.
Não quero nutrir uma esperança que me daria algum alívio, e não quero entregar-me senão às penas deste infortúnio.
Confesso-te, porém, que a ocasião que meu irmão* me proporcionou de escrever me fez um alvoroço alegre e suspendeu por um momento o desespero em que vivo.
Conjuro-te que me digas por que te empenhaste em enfeitiçar-me tanto, sabendo bem que terias de abandonar-me um dia?
Ai, por que tanto te encarniçaste em fazer-me desgraçada?
Por que não me deixaste tranquila no meu convento?
Fizera-te eu algum mal?
Mas perdoa, meu amor.
De nada te culpo.
Nem estou em condição de tirar vingança de ti, e acuso somente o rigor do meu destino.
Também...separando-nos, parece-me que nos fez todo o mal que poderíamos recear dele.
Não conseguirá separar os nossos corações: - o amor que pode mais do que ele uniu-os para toda a vida.
Se algum interesse tens pela minha, escreve-me muitas vezes.
Bem te mereço que tenhas algum cuidado em me informar do estado do teu coração e da tua vida.
Ah, sobretudo...vem ver-me.
Adeus; não posso resolver-me a largar este papel para que vá cair-te nas mãos.
Quisera ter eu essa dita!
Que loucura a minha! Bem sei que não é possível.
Adeus: não posso mais.
Adeus.
Ama-me sempre.
E faze padecer, mais ainda, a tua pobre
Mariana.



*O irmão de Mariana, Baltasar Alcoforado, era oficial também e manteria possivelmente relações de amizade com Chamilly.




In. Grandes Cartas da História. Organização: José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1969, p.102-105.
Imagem: Zeus e Hera

Sóror Mariana Alcoforado - Carta



MARIANA ALCOFORADO





O amor proibido de uma freirinha de Beja por um oficial de cavalaria francês constituiu um dos capítulos mais instigantes e mais ternos da literatura portuguesa. A freirinha chamava-se Mariana Alcoforado (1640-1723). Viu ela passar certo dia de 1667, sob as rótulas do Convento da Conceição de Beja, onde professara, a cavalaria francesa que viera ajudar os portugueses a restaurarem a monarquia pátria. Dentre os cavalarianos, impressionou-se Sóror Mariana particularmente pela guapa figura do Capitão Noël-Bouton de Chamilly. Versado na arte da galantaria, tão cultivada nos salões parisienses da época, o Capitão Chamilly não teve maiores dificuldades em transformar em paixão devoradora a ingênua admiração da freirinha. Vieram depois os encontros pecaminosos na cela do convento, e, finalmente, o escândalo público. Por influência dos Alcoforados, cuja vingança de certo temeria, o Capitão Chamilly acabou voltando definitivamente para a frança. Decorrido um ano de sua partida, Mariana escreveu ao ingrato amante cinco cartas que, no entender de Fidelino de Figueiredo, são "uma das mais poderosas análises introspectivas do amor" que se conhece. Publicadas em Francês em 1669, obtiveram um êxito imenso, que se prolonga até hoje, sendo incontáveis as edições das Lettres Portugaises.

Chamilly nunca mais voltou a Portugal: ao cabo de uma brilhante carreira militar, morreu marechal de França, em 1715. Mariana sobreviveu-lhe oito anos. Até o fim, com as recordações do seu desgraçado amor, viveu no Covento de Beja, do qual chegou a ser abadessa, apesar de tudo. Como o original de suas Cartas se perdeu, só se conhecendo o texto da edição francesa, houve muita polêmica quanto à autencidade de sua autoria. Na França, julgam-nas, até hoje, obra de imaginação de um autor francês; em Portugal, graças às eruditas investigações de Luciano Cordeiro (cuja tradução foi a que para aqui trouxemos), a questão está definitivamente resolvida em favor de Sóror Mariana.
José Paulo Paes




CARTA I



Considera, meu amor, como foste excessivamente descuidado! Ai mal-aventurado! - Traíram-te esperanças fementidas e com elas me enganaste.

Uma paixão em que bordava tantos deleitosos projetos só pode dar-te, agora, um mortal desespero, apenas comparável à crueldade desta ausência.

E há de este desterro para o qual todo requinte da minha dor não acha nome assaz funesto, privar-te para sempre de embeber-me nesses olhos em que via tanto amor e que me fizeram conhecer enlevos que me enchiam de contentamento, que eram tudo para mim, que enfim me abastavam a vida?

Os meus olhos é que perderam nos teus a única luz que os animava. Só lhes restam lágrimas, nem eu lhes tenho dado outro emprego senão o de chorar continuamente desde que soube que estavas resolvido a um apartamento para mim tão insuportável que cedo me fará morrer.

E contudo parece-me que tenho o quer que seja de enamorado apego às mágoas de que tu só és a causa.

Consagrei-te a vida desde que em ti descansaram meus olhos, e sinto em sacrificar-ta um místico prazer.

Mil vezes ao dia te procuram meus cansados suspiros e não me trazem, os tristes, outro alívio a tantas tribulações do que o aviso cruamente sincero da minha desventura que me não consente uma esperança e me repete a todos os instantes: - "deixa, deixa de consumir-te em vão, infeliz Mariana deixa de anelar um amado que não tornarás a ver, que passou o mar para te fugir, que está em França no meio dos prazeres, que não pensa um momento nas tuas penas, que te dispensa de todos estes transportes, que nem sabe agradecer-tos."

Mas não. Não posso resolver-me a cuidar tão mal de ti. Sou muito interessada em justificar-te. Nem quero imaginar que me tenhas esquecido!...

Não sou eu já bem desgraçada sem me torturar com falsas suspeitas?

Por que hei de esforçar-me em apagar da memória todos os desvelos com que te esmeravas em me provar amor?

Ai tanto me deleitavam eles que bem ingrata fora se não te amasse ainda com os mesmos arroubamentos em que a minha paixão me enlevava quando lograva os testemunhos da tua.

Como é possível que lembranças de tão doces momentos se tenham tornado tão amargas? E que contra toda a natureza, sirvam somente para dilacerar-me o coração?
Pobre dele! A tua última carta pô-lo num estado singular: tais saltos me dava no peito que parecia forcejar por arrancar-se de mim e voar para ti.

Tão quebrantada fiquei, de todas estas emoções violentas que por mais de três horas estive toda alienada dos sentidos.

Era como se me defendesse de voltar à vida que devo perder por ti, já que para ti a não posso conservar.

Com bem pesar tornei a mim.

Regalava-me sentir que morria de amor, e sentia-me bem finalmente, por ver cessar de flagelar-me a alma a dor de tua ausência.

(...)

Continua amanhã!




In. Grandes Cartas da História. Organização: José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1969, p.102-105
Imagem retirada da Internet: anjo

Rainer Maria Rilke - Carta




SER OU NÃO SER POETA







Hoje, prosseguiremos com a segunda parte desta belíssima carta de Rainer Maria Rilke: Cartas a um Jovem Poeta, em que ele explica ao seu jovem correspondente o que entendia por verdadeira vocação poética. Tenham todos uma bela leitura!








"Voltar-se para si mesmo e sondar as profundezas de onde provém a sua vida: nessa fonte encontrará resposta à pergunta se deve criar."







(...)




Se a vida cotidiana lhe parece pobre, não a culpe: culpe a si mesmo. Diga consigo que não é bastante poeta para descobrir-lhe as riquezas. Para os criadores, não há pobreza, nem sítios pobres, indiferentes. E mesmo que estivesse numa prisão, cujas paredes não lhe deixassem chegar aos ouvidos os rumores do mundo, não lhe restaria sempre a infância, essa riqueza preciosa e imperial, essa arca de lembranças? Volte para ela a sua atenção. Procure trazer à tona as sensações submersas desse vasto passado: sua personalidade se afirmará; sua solidão se engrandecerá, convertendo-se num retiro crepuscular, perante o qual desfilam, distante, os ruídos do mundo. E se desse regresso ao interior, desse mergulho no mundo que lhe é próprio, surgirem versos, não pensará em perguntar a ninguém ser tais versos são bons. Tampouco lhe importará que as revistas se interessem ou não por seus trabalhos, pois verá neles uma valiosa possessão natural, um fragmento e uma voz de sua vida. A obra de arte é boa quando criada necessariamente. Na própria forma da sua origem está implícito o seu julgamento: não há outro.Eis por que, prezado senhor, sei dar-lhe outro conselho,além deste: voltar-se para si mesmo e sondar as profundezas de onde provém a sua vida: nessa fonte encontrará resposta à pergunta se deve criar. Aceite a resposta como ela vier, sem dar-lhe interpretações sutis. Talvez se evidencie que foi chamado a ser artista. Então, aceite tal destino e cumpra-o, com seu peso e a sua grandeza, sem indagar jamais de recompensa que possa vir de fora. Pois o criador tem de ser um mundo para si próprio, e achar tudo em si e na Natureza a que se incorporou.

Todavia, depois dessa descida ao seu mundo e à sua solidão interior, talvez tenha de renunciar a chegar a ser poeta (basta sentir, como já disse, que possamos viver sem escrever para que não nos seja permitido escrever). Mesmo assim, esse recolhimento que lhe aconselho não terá sido em vão. A partir de então, sua vida encontrará caminhos próprios. Que sejam bons,ricos e amplos, é o que desejo, embora não saiba dizer-lhe quanto.

Que poderei acrescentar? Parece que dei a tudo a ênfase necessária. Em suma, só quis aconselhar-lhe que se adiante grave e tranquilamente na sua evolução; perturba-la-á profundamente sem fixar os olhos no exterior ou se dele esperar respostas e perguntas que só o seu sentimento íntimo, numa hora de extremo silêncio, quiçá possa responder.

Foi para mim uma alegria encontrar em sua carta o nome do Senhor Professor Horacek; tenho por esse amável sábio uma grande veneração e uma gratidão que duram há anos. Quer, por favor, falar-lhe desse sentimento meu? É muita bondade dele ainda lembrar-se de mim; sei o quanto vale isso.

Devolvo-lhe os versos que amavelmente me confiou. E uma vez mais agradeço-lhe a cordialidade e a magnitude da sua confiança, de que procurei fazer-me um pouco mais digno do que na realidade o sou (dada a minha condição de estranho senhor) mediante esta resposta sincera, escrita o melhor que soube.

Com todo afeto e interesse,


Rainer Maria Rilke



In.Grandes Cartas da História.Organização de José Paulo Paes.São Paulo: Cultrix, 1969,p.190-193.

Rainer Maria Rilke - Carta


SER OU NÃO SER POETA




Poeta da morte e da solidão e da vida interior, Rainer Maria Rilke (1875-1926) é uma das vozes líricas mais altas do nosso século. Embora tcheco de nascimento, teve educação germânica e escreveu toda a sua obra em Alemão. Viajou a maior parte da vida pelos países da Europa e pelo Norte da África. Seus poemas mais célebres figuram nas “Elegias de Duíno” e nos “Sonetos a Orfeu, sendo igualmente célebres as cartas que, entre 1903 e 1908, trocou com o poeta Kappus, que lhe pedira opinasse sobre uns versos que lhe enviava. Em vez de simplesmente opinar, Rilke preferiu desde logo explicar ao seu jovem correspondente o que entendia por verdadeira vocação poética. Tal é o tema admiravelmente desenvolvido na carta a seguir, a primeira das dez “Cartas a um Jovem Poeta”

José Paulo Paes



París, 17 de fevereiro de 1903.

Prezado Senhor:

Recebi sua carta faz alguns dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança que me testemunha, mas pouco mais posso fazer. Não quero entrar no mérito dos seus versos, pois todo intento de crítica está longe de mim. Nada mais ineficaz do que abordar uma obra de arte com palavras de crítica: daí resultam sempre equívocos mais ou menos felizes. Nem todas as coisas são tão compreensíveis e descritíveis quanto nos querem fazer crer. A maior parte dos acontecimentos é indizível: consumam-se eles num âmbito no qual jamais penetrou qualquer palavra; mais inefáveis ainda são as obras de arte, existências misteriosas cuja vida acompanha a nossa efêmera existência.

Feita esta advertência, posso tão somente aduzir que seus versos não revelam uma maneira sua; possuem apenas tímidos e recatados germes de personalidade. Percebo-o com muita clareza no último poema: “Minha Alma”. Nele, algo que é peculiar ao senhor procura encontrar letra e música. E no formoso poema “A Leopardi” se acentua, ao que parece, uma espécie de afinidade com esse príncipe, esse solitário. Não obstante, os poemas ainda não são nada em si mesmos: falta-lhes independência; mesmo ao último, mesmo ao “A Leopardi”. A amável carta que os acompanha esclareceu-me acerca de algumas insuficiências que percebi ao ler seus versos; não posso, contudo, precisá-las.

Pergunta-me o senhor se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim. Antes o perguntou a outros. Envia-os a revistas. Compara-os com outros poemas e se inquieta quando certas redações rejeitam seus tentamens. Já que me permitiu aconselhá-lo, rogo-lhe que doravante deixe tudo isso de parte. O senhor tem os olhos voltados para o exterior, e isso é o que, em particular, não deveria fazer agora. Ninguém pode aconselhar nem ajudar; ninguém. Há um único meio: volte-se para si próprio. Investigue a causa que o impele a escrever; verifique se ela estende raízes até às profundezas do seu coração. Confesse-se: morreria se estivesse proibido de escrever? Antes do mais, na hora mais serena da noite, pergunte a si próprio: “Devo escrever?” Mergulhe no seu íntimo em busca da resposta profunda; se ela for afirmativa, se puder responder a essa grave pergunta com um vigoroso e singelo “devo”, construa então sua vida em função dessa necessidade. Sua existência, mesmo na mais insignificante e indiferente das horas, tem de ser signo e testemunho desse impulso. Aproxime-se depois da Natureza. Trate então de exprimir, como se fosse o primeiro homem do mundo, o que vê e experimenta, o que ama e perde. Não escreva poemas de amor; evite sobretudo as formas demasiado comuns e usadiças: são mais difíceis, pois é necessário força e maturidade para exprimir-se com originalidade ali onde existam tradições firmadas e por vezes brilhantes. Por isso, fuja dos motivos gerais, encaminhando-se para aqueles que sua própria vida cotidiana lhe oferece; exprima as suas tristezas e desejos, os pensamentos que lhe ocorram, a sua fé em alguma forma de beleza...Diga tudo isso com a mais profunda, serena e humilde sinceridade, e utilize, para expressar-se, as coisas que o circundam, as imagens dos seus sonhos e os temas de suas recordações.

Continua amanhã



In. Grandes Cartas da História. Org.: José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1969, p.190-192.

Imagem: Rainer Maria Rilke

Carlos Pena Filho - Poema








Carlos Pena Filho










A SOLIDÃO E SUA PORTA



Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar,
(nem o torpor do sono que se espalha).

Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.



In. Livro Geral. Recife, 1969, p.40 - Apud. Magaly Trindade Gonçalves et all. Antologia de Antologias. São Paulo: Musa, 1995, p.497.
Imagem: Solidão

Valdivino Braz - Poema




Valdivino Braz












AS MANGAS


Entre as mais fibrosas,
de preferência a Sabina,
com suas sardas;
a pele com azinabre de cobre
e ferrugem de lâmina.
O dentro doce quando mordido,
e logo ácido na língua.
O sabor da Sabina se sabe
na primeira lambida,
mas temporona é azeda,
madura demais é urina.

Das menos fibrosas, a Bourbon,
com nome de nobre,
mas que não engana:
o que tem de bom tom,
é um quê de cigana.

A Manga-rosa, a mais sensual,
escandalosa - Scandal Rose -,
a mais fêmea do mangueiral:
polpa farta, carnal,
um cheiro que excita e reporta
secretas impregnações
nas mucosas da boca.
Tem gosto de boca almiscarada,
de beijo obsceno,
e parece peito de mulher inesquecível.

A Coração-de-Boi - que coração!
É a manga das paixões e dos suicídios.
Tudo cabe num coração maior que tudo.

A Manga-Espada é óbvia: um porte afiado.

E todas essas as mais saborosas,
de melhor essência.
As demais são comuns,
entanto comíveis, ou chupáveis.

A tal de Coquinho, a mais desenxabida,
e muito enxerida no meio da meninada.
Não é à toa o nome que tem:
Coquinho é alcunha de mulher qualquer,
uma de todos e de ninguém.






In. A Dança do Intelecto. Valdivino Braz. (Coleção Caliandra de Prosa e Poesia)Goiâniap: Prefeitura de Goiânia/Kelps, 1996, p.: 104-105.
Imagem: Mangas

Manuel Maria Barbosa du Bocage - Poema





BOCAGE










Sonetos



Oh tranças, de que Amor prisões me tece,
Oh mãos de neve, que regeis meu fado!
Oh tesouro! oh mistério! oh par sagrado,
Onde o menino alígero adormece!

Oh ledos olhos, cuja luz parece
Ténue raio de sol! Oh gesto amado,
De rosas e açicenas semeado,
Por quem morrera esta alma, se pudesse!

Oh lábios, cujo riso a paz me tira,
E por cujos dulcíssimos favores
Talvez o próprio Júpiter suspira!

Oh perfeições! oh dons encantadores!
De quem sois?...Sois de Vénus? - É mentira
Sois de Marilia, sois de meus amores.


In. Sonetos e outros poemas. Bocage. São Paulo: FTD, 1994, p.25

Francisco Perna Filho - Crônica


VISGO ILUSÓRIO*


Por Francisco Perna Filho



Começo este texto dizendo que uma das coisas mais difíceis na vida é encontrar a palavra certa para aquilo que queremos expressar. Pois bem, escritores, poetas, compositores, todos eles de alguma forma já trataram desse assunto, falaram da luta diária pelo verbo preciso, pelo vocábulo não corrompido, pela palavra ideal para traduzir um estado de espírito, um sentimento vivido, ou para, simplesmente, relatar as impressões do cotidiano.

Carlos Drummond de Andrade muito bem tratou desse assunto: “Lutar com palavras é a luta mais vã./Entretanto lutamos/mal rompe a manhã.” A luta de que fala Drummond é a mesma a que me refiro: o embate cotidiano daqueles que se debruçam sobre a escrita, que vislumbram a recifração de um mundo em ruína, que se alimentam em sonhos de uma escrita encantada, de um pensamento materializado.

Pensar a palavra é querê-la na sua condição plural, representativa, desconcertante, dilacerante, às vezes. Cada vocábulo, no texto/contexto, traz uma motivação primeira, esse traço, essa marca do ser que a pensou, não que a tenha criado, mas que a elegeu naquela acepção.

A despeito de qualquer intenção, as palavras são convenções humanas. Não importa o país, o credo, a raça, elas estão em qualquer parte, em qualquer texto, em qualquer fala, prontas para traduzir os anseios e desencontros de quem as utiliza, prontas para auxiliar o homem na sua “permanência efêmera” nesse “sem fim” da linguagem.

O signo verbal é composto de um significante e de um significado (para lembrar Saussure), daí que, dependendo da motivação que se queira dar a ele, do contexto no qual se insira, esse significado se mantém ou se desdobra em outros significados. Vejamos a literatura, prova mais cabal do que estou dizendo: linguagem criativa, subjetiva, denotativa. Outro exemplo, a arbitrariedade do signo: muda a língua, muda o significante, como na palavra “casa” que para nós falantes da Língua portuguesa tem um significado, mas para o estrangeiro que não conhece o nosso código, nada significa, ou se significa, isso ocorre apenas no plano sonoro, quando ao pronunciar a palavra ela o remete a algo parecido no seu idioma.

As palavras carregam o peso, o brilho, o gosto, o cheiro, a textura das coisas, trazem muito mais, pois servem a contextos, textos e intenções. Quanto mais nós as dominamos, mais dominados ficamos, mais sofremos, pelo amargo sabor de nos sabermos intraduzíveis.

Cada palavra cumpre uma sentença: ser palavra, ser elástica a ponto de exaustão, aí vai depender das intenções: ciência, propaganda, jornalismo, ficção. Traduzem uma imanência arbitrária com seus significados. Vivem a vida de quem as pronuncia, trazem consigo um visgo ilusório, uma relação mágica com aquilo que significam, com as imagens que representam, e silenciam quando nos calamos nos intervalos da nossa existência.


*Visgo Ilusório é o título do meu próximo livro, no prelo.

Foto by Francisco Perna Filho - Visgo - Miracema do Tocantins - Tocantins - Brasil


Murilo Mendes - Poema






Murilo Mendes








Estudo Para Uma Ondina



Esta manhã o mar acumula ao teu pé rosas de areia,
Balançando as conchas de teus quadris.
Ele te chama para as longas navegações:
Tua boca, tuas pernas, teu sexo e teus olhos escutaram.

Só teus ouvidos é que não escutaram, ondina.
Minha mão lúcida sacode a floresta do teu maiô.
Ao longe ouço a trompa da caçada às sereias
E um peixe vermelho faz todo o oceano tremer.

Tens quinze anos porque já tens vite e sete,
tens um ano apenas...
Agora mesmo nasceste da espuma,
E na incisão do ar líquido alcanças o amor dos elementos.


In.Metamorfoses. Murilo Mendes. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 65.
Imagem:Nu - Filipe - Braga, Portugal

Leia também

Valdivino Braz - Poema

Soldado ucraniano Pavel Kuzin foi morto em Bakhmut  - Fonte BBC Ucrânia em Chamas - Século 21                               Urubus sobrevoam...