Ruy Espinheira Filho - Poema

















FRIO


Chove.
Mar e céu cor de chumbo.
Casas com rostos melancólicos.
O Jardim Zoológico anuncia galinhas ornamentais.
Morte de Edna foi crime ou suicídio?
Nuvens baixas pesadas.
Faz frio, meu amor.

Raptaram a moça na Cinelândia.
Um político inglês considera obscena escultura
que representa um casal de namorados.
Outro político sugere que a escultura seja colocada
num parque. Como falou Zaratustra,
para os puros tudo é puro,
para os porcos tudo é porto.

Chove mais.
Antigamente era simples:
ruas quietas, risos na praça, sombras de árvores.
Vestidos brancos em manhãs de domingo.
O sino. Chamando para a missa ou acompanhando
ao cemitério. Eu queria aprender
a tocar o sino,
mas me disseram que sino não gosta
de menino.

Ondas se quebram, cinzentas, contra rochas negras.
Policiais torturam prisioneiros.
Terroristas prometem novos sequestros,
novas bombas. Adolescente
se atira do oitavo andar.
Menor relata sevícias.
Bem-me-quer, mal-me-quer. Ah,
mal-me-quer...Doeram-me os olhos verdes
de janeiro a maio. Depois, silenciosa,
veio a garoa de junho.

Ainda chove.
Antigamente é um país mágico.
Bom é morar em Antigamente.
Flore de tamarindeiro cobrindo o chão.
Canto longínquo e triste de perdiz.
Cuidado, o açude é muito fundo.
Já matou três homens, uma mulher,
um menino. Melhor não brincar
com a sorte.

As meninas me fizeram saltar o muro
do internato. Retornei
sem alegria. Sigo sem
alegria.
Há cabelos ao vento, transatlânticos naufragados, risos
escarninhos. Há mais,
há muito mais.
Há o mundo.
Por que gritam tanto,
meu general?

Chove, chove, chove.
Portas e janelas fechadas.
Estou melancólico.
A cidade está melancólica.
Chove melancolia sobre o mundo,
sobre a vida.

Faz frio,
faz muito frio,
meu amor.


In.Sob o Céu de Samarcanda. Ruy Espinheira Filho. Rio de Janeiro:Bertand Brasil/Biblioteca Nacional, 2009, p.213-215.
Imagem retirada da Internet: Antigamente.

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