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Francisco Perna Filho
NATAL
Eu nunca fiz um poema de Natal,
talvez por não sabê-lo,
embora compreenda sua simbologia.
Sei que o Cristo renasce em cada coração,
que as cidades se enchem de luzes coloridas e brilhantes,
que os homens tornam-se mais solidários e felizes.
Eu sei de tudo isso,
mas também sei dos homens empedernidos,
das mulheres maltratadas,
das crianças abusadas,
das trapaças,
e das sórdidas armações palacianas.
Eu sei de tanta coisa,
mas ainda sei tão pouco da vida,
talvez esteja aí a minha dificuldade para compor um poema natalino.
Seria fácil falar de presentes,
desejar votos de felicidades,
falar de abraços e sorrisos,
de manjedouras e presépios,
de um menino que nasce para salvação do mundo.
Talvez fosse simples assim,
mas a verdade se nos impõe cortante,
as cores, apesar indução midiática,
são de outras matizes, de menos brilho e bem doídas,
como no conto de Dostoievski “A Árvore de Natal na Casa do Cristo”,
ou no romance “O Caçador de Pipas”, de Khaled Hosseini,
ou, quem sabe, no absurdo de "A Metamorfose", de Franz Kafka.
Sei que num poema de Natal os leitores desejam cantatas,
louvores e muita alegria,
não havendo espaço para qualquer pensamento destoante
daquilo quem vem a ser bondade.
Tampouco para palavras que roubem a esperança de centenas de milhares de miseráveis
espalhados nas prisões,
nos campos de trabalho escravo,
nos hospitais e hospícios,
nos cárceres dos regimes totalitários.
Um poema de Natal
não comporta maldade,
estelionato,
usurpação.
Num poema de Natal
todos devem estar felizes,
solícitos e
amigáveis.
Por tudo isso,
é que eu sinto dificuldade em fazer um poema de Natal.
Para o ano que vem,
desejo que as coisas melhorem,
que a verdade consiga vencer os artifícios,
que os olhares possam refletir as almas,
que os homens consigam se dar as mãos,
que as crianças possam confiar nos pais,
e que os velhos tenham dignidade.
Para o ano que vem
eu não prometo um poema de Natal, ainda,
mas estou certo de que serei melhor,
que seremos melhores
em todos os aspectos.
Com tanta coisa para falar,
e o poema que não vem,
para este ano,
aproveito para dizer
que continuo acreditando no homem,
na sua bondade,
na sua criatividade,
no seu amor.
Aproveito para louvar a Deus,
na sua infinina sabedoria e nobreza,
que, apesar da maldade humana,
nunca abandona os seus filhos.
Aproveito para desejar um Feliz Natal!
domingo, 20 de dezembro de 2009
Imagem retirada da Internet:Natal.
Ana Maria Machado - Conto
Ana Maria Machado
Burrinho de presépio
- Recolhidas como a Virgem na lapinha! - ensinava irmã Vicência. - Vejam e aprendam. Ela está num êxtase de felicidade, no momento mais sublime de sua vida e não fica saltitando nem rindo à toa.
Glorinha olhava o presépio e achava que nunca ia aprender. Mais que as figuras humanas envoltas em mantos ao redor da palha da manjedoura, o que a atraía eram os bichos e as crianças, com suas promessas de movimento e alegria. O boi e o burro respirando para aquecer o bebê. Os camelos cobertos de arreios, levando presentes dos Reis Magos. Os carneirinhos peludos trazidos pelos pastores. O galo encarapitado no alto do telhado. Patinhos num lago feito de espelho, cercado de brotos de alpiste, verde verdade num cenário de papel, a simular caniços num brejo. Tudo em homenagem ao Menino Jesus que nascia, deitado no feno, agitando braços e pernas. Acima de tudo, a dança dos anjinhos pendurados junto à estrela, desenrolando uma faixa com seu cântico que parecia endereçado a ela, já que trazia seu nome: Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.
Uma estatueta, porém, se destacava e chamava a atenção. Essa, sim, se movia mesmo: o burrinho que mexia a cabeça para cima e para baixo. Dizia amém para as orações, explicava a freira. Agradecia pelas esmolas, dissera o padre. Tinha uma ranhura, como um cofre. Cada vez que uma moeda caía lá dentro, ele assentia. Um modelo. Mostrava como é possível se portar bem. Em silêncio, concordando, sem estardalhaço.
Glorinha cresceu e aprendeu. Adulta, falava baixo. Olhava de banda, de soslaio, de esguelha. Ria à socapa, dissimulando qualquer desejo de bandeiras despregadas. Andava silenciosa, quase na ponta dos pés, a deslizar furtiva e chegar inesperada junto a qualquer grupo.
Ficou viúva cedo. Criou o filho sozinha, nos desertos do silêncio. Envolveu-o num amor onipresente mas guardado a sete chaves. Parco de carícias. Imune a derramamentos. Sub-reptício e encoberto. Feito de ternuras enviesadas, e disfarçado por artimanhas mudas.
Forjou em Gabriel um homem parecido com ela. Herdeiro de seus modos. Intenso e comedido. Trancado.
A máscara quase se derreteu no dia em que ele chegou do trabalho com meio sorriso implícito e um brilho recôndito nos olhos. Não parava mais em casa. Saía muito. Voltava tarde. Começou a cantar no chuveiro. Nunca tinham tempo suficiente para que ela pudesse, aos poucos, puxar o assunto e descobrir o que poderia estar lhe acontecendo. Não podia acreditar que apenas a perspectiva de uma promoção no emprego estava deixando o filho daquele modo, a ponto de saltitar de animação.
Foi tudo rápido demais. Parecia que, poucos dias depois, Gabriel já estava lhe apresentando Letícia. Toda sorrisos. Perfumada de capim-cheiroso. Cheia de perguntas e expectativas olho-no-olho pelas respostas. Vestido leve e colorido. Sandálias nos pés nus. Pele escandalosamente dourada do sol.
Um vulcão. Avalanche. Tsunami. O pacote completo: promoção no emprego, remoção para outra cidade, casamento imediato. E Gabriel tão feliz no meio daquilo tudo, que não era possível outra reação amorosa que não fosse ir a reboque dele, no embalo. Mas nem isso Glorinha conseguia manifestar. Apenas fazia o que fosse necessário, ajudava e se recolhia. Segurava os ímpetos de abraçar o filho, as palavras de saudade antecipada, a vontade de afagá-lo. E aguentava firme o desejo inconfessado de um dia dar o troco, se vingar daquela moça que, de uma hora para outra, levava embora seu bem mais precioso.
Quando o casal partiu, Glorinha ficou com seu vazio. Aprendeu a usar o computador para se comunicar com eles. Acompanhava de longe como podia. Comedida, dava apenas pequenas notícias do quotidiano.
Jamais deixou que desconfiassem do mundo invisível que guardava em si. A essa altura já o chamava, para si mesma, de seu inferno particular. De vez em quando, ele transbordava, escorrendo lentamente dos olhos. De início, uma ou outra gota, tímida. Depois, foram ficando habituais. Meia dúzia que fossem, para Glorinha eram cachoeiras ocultas. Continuava sem demonstrar a ninguém. Mas se comovia à toa quando sozinha - vendo a novela, ouvindo uma música, lendo um livro. Derramava o sumo de uma vida inteira de gestos represados.
As netas foram nascendo - uma, duas, três. Uma vez por ano vinham todos visitá-la. Uma ou outra vez, Glorinha foi passar umas semanas com eles. Mas nesse ano, pela primeira vez, viriam no Natal. E iam festejar na casa dela.
A avó quis uma festa completa. Com bacalhau, peru, castanhas, bolo, fios de ovos, muitas frutas. Uma árvore de Natal cheia de cores e brilhos. Presentes escolhidos com carinho. E um presépio, como nunca mais tinha feito, desde que Gabriel era criança. Mas esperou que as netas chegassem, para ajudar a montá-lo e arrumar a árvore. Parte da festa infantil.
Chegaram na própria semana do Natal. Logo vieram preparar tudo. Três meninas barulhentas, sem modos. Tagarelas e beijoqueiras em algazarra de pardais. Às voltas com imagens, bonequinhos, cartolina, papel crepom, tesoura, lápis de cor. Entre pulos, correrias, gargalhadas, sujando a sala de purpurina e pedacinhos de papel.
- Vem, vó, ver uma surpresa - chamou a mais velha.
Era a faixa que os anjos carregavam: Vó Glorinha e Deus nas alturas, e os pais na terra. Com boa vontade.
A avó teve de rir. De repente, se emocionou.
- Ih, pai. Você não disse que sua mãe não chora nunca? - estranhou a do meio.
E a mais moça:
_ É um milagre? Milágrimas de Natal.
Glorinha assentiu, calada. Como o burrinho que não havia no presépio. Sabendo que era vingança, não milagre.
Desforra da infância, que os anos cada vez trazem mais.
In.O Estadão
Imagem retirada da Internet: Presépio.
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