Gilberto Mendonça Teles - Crítica Literária



Este ensaio crítico, de autoria do Professor Doutor Gilberto Mendonça Teles, renomado crítico literário, poeta refinado, e pesquisador incansável, foi publicado originalmente na revista Sigila, nº25, em Paris. As imagens aqui colocadas não fazem parte do ensaio original, elas foram inseridas por pura feição estética do blog. Agradeço ao Professor Gilberto por ter atendido ao meu convite e permitir que eu publicasse aqui o seu Ensaio Crítico.



                  E a tua vida se levantará mais clara que o meio-dia; ainda que haja trevas, será como a manhã.

              JÓ 11,17.



O CLARO-ESCURO DA TRANSPARÊNCIA LITERÁRIA

Gilberto Mendonça Teles

O termo Transparência põe de imediato o leitor em face de uma série de relações – com a lingüística, a mitologia, a religião, a filosofia, a retórica, a arte e, claro, com a literatura. Em todas as direções o termo se emprega para revelar, deixar transparecer uma imagem, um conceito, um conteúdo especial, que às vezes não se quer mostrar, quer ser ambíguo, dizendo e não dizendo e valendo pela sua própria obscuridade, quando não pela sua natureza autotélica. Tomando-o como tema de uma revista que tem o nome de Sigila, somos tentado a ver a Transparência como uma figura de linguagem que, se não é apenas uma antítese ou um paradoxo na revista, é pelo menos um bem pensado oxímoro, uma coisa assim como o Claro enigma ou a Paixão medida, títulos de dois belos livros da obra poética de Carlos Drummond de Andrade. A tensão criada entre o título e a figura só se deixa atenuar na compreensão maior do jogo entre os dois termos que se juntam à medida em que as raízes etimológicas se afloram e se explicam mutuamente.
O nome de Sigila, além de denotar na superfície uma revista de cultura filosófico-literária, aponta para um perfil de sentidos primitivos, oriundos de sǐgǐllǔm, ī,diminutivo de Sīgnŭm, ī., de onde o adjetivo sĭgīllatŭs, ă, ŭm, e a significação de “pequena marca, sinalzinho”, “estatuazinha, feita a cinzel”, obra de relevo ou vasos galo-românicos decorados com sinais cinzelados. Varro, no Codex Theodosianus, registra como “personagens representadas por agulhas”; no fundo, é aquilo que traz um selo (sǐgǐllǔm), uma marca, um segredo, digamos, de fabricação. Acontece que o título (em francês) mantém a forma latina do neutro plural e, assim, se deixa ler como “os sinais, as pegadas, os vestígios, os presságios” e até – por que não? – “as palavras”, enfim, tudo aquilo que revela, que deixa transparecer o plural de sentidos culturais que a revista agasalha nos seus vários números publicados.
Há por isso mesmo a necessidade de se cavar mais os sentidos etimológicos do vocábulo transparência, que designa o fenômeno pelo qual os raios luminosos se deixam perceber através de certas substâncias, qualidade que em grego se designava por διαφάνεια – diáfano, claro, evidente, visível, brilhante e ilustre, num fio semântico que vai do natural ao humano. O termo ou radical φαíνω (proveniente do indo-europeu, com o sentido de “esclarecer”, “brilhar”, “falar” e “manifestar”) empregava-se para indicar o “ato de se tornar visível, de dar a conhecer”, ou seja a “transparência”, palavra que, no entanto, só será conhecida no latim medieval (transparentia). Na época romana se conheceu o termo transpectus, us, ou seja, “aquilo que se vê através de”, que aparece por meio de outra coisa. A partir daí se formaram transparens e transparentia que motivou o francês transparence (1372). O curioso é que o vocábulo francês, formado a partir de transparaître, tem a ver com um antigo percer (da época da Chanson de Roland), que indicava o ato de “abrir um buraco, uma clareira para mostrar alguma coisa”, concreta ou não. Liga-se intelectualmente a percepção. O paralelismo dos dois significantes se relaciona com duas raízes indo-europeias que acabaram se juntando: a primeira, com o sentido de “torcer”, “esfregar”; a segunda com a idéia de “atravessar para atingir um objetivo”. A aproximação dos dois significados enriquece a palavratransparence, tanto em francês como na sua correspondente em português, onde se documenta no início do século XIX, com a invasão napoleônica a Portugal.
Assim, na língua portuguesa, transparência é a palavra para designar o fenômeno pelo qual os raios luminosos [visíveis] são percebidos “através” de algumas substâncias, ou seja, é a denominação para o que permite a passagem da luz, daquilo que se deixa atravessar pela luminosidade, que permite a visibilidade de objetos e de imagens (de figuras, tropos, como na linguagem literária). É sinônimo de diafaneidade cujo radical (δια-) enfatiza a “transparência”. Mas é possível estabelecer uma diferença, como se verá abaixo. No sentido moral, a transparência é o que revela uma qualidade (ou uma atividade criminosa) oculta, como se documenta abundantemente no discurso dos políticos brasileiros da atualidade... O fenômeno contrário – que mostra a absorção de um meio óptico determinado pela relação entre o raio luminoso que incide e o que salienta – é denominado opacidade. Neste sentido esses dois termos formam as faces de uma mesma realidade óptica, ora aberta à visibilidade das imagens alcançadas pela luz, ora fechada à intromissão dos raios luminosos.
É interessante notar que os dicionários nem sempre reservaram um verbete especial para o termo transparência, dado sempre como sinônimo de claridade ou diafaneidade, como no Dicionário poético, de Cândido Lusitano (1620), onde no verbete Claro se lê, em vez da definição, quatro séries de sinônimos, separadas por ponto e vírgula, de modo a permitir gradações de sentidos:
      Claro. Lúcido, luzente, nítido, fulgente, refulgente, brilhante, luminoso, resplandecente, coruscante, cintilante, radiante; Ou Diáfano, transparente; Ou Certo, evidente, perspícuo, manifesto, patente; Ou Nobre, ilustre, generoso, egrégio, exímio, célebre, ínclito, afamado, famoso, memorável, celebrado.1
Mas o Dicionário dos sinônimos poéticos e de epítetos da língua portuguesa, de J.-I. Roquete e José da Fonseca, de 1848, deixa a pura sinonímia e aprofunda a diferença de significação entre os termos tidos como sinônimos. Dedica, na sua primeira parte, vários verbetes para a distinção de palavras derivadas de Clareza, entre as quais os sinônimos claro, diáfano e transparente. Começa por distinguir clarão, claridade e esplendor:
      Clarão. Quando a luz sai de seu estado ordinário pode avivar-se por diferentes gradações que, segundo a sua intensidade, se diferençam [sic] da maneira seguinte. / Claridade é o efeito que causa a luz aclarando algum espaço. Clarão, pela força aumentativa da terminação, é grande claridade, e às vezes forte e rápida. Esplendor é a luz mui clara que despede o sol ou outro qualquer corpo luminoso. – O clarão quando é forte incomoda a vista, e às vezes apenas percebemos os objetos. A claridade é branda e mostra-os distintamente. O esplendor pode deslumbrar se é mui luminoso, mas apresenta-os em todo o seu luzimento.
Em seguida dedica-se a explicar retoricamente a diferença entre clareza e perspicuidade (lat. pērspĭcŭŭs, ă, ŭm), escrevendo que consiste a
      clareza em que nas cláusulas dum discurso, na ligação delas entre si, se evite com o maior cuidado toda a obscuridade ou ambiguidade no sentido. Depende pois a clarezanão só das ideias senão das expressões e da boa construção das cláusulas; porque ainda que as ideias fossem claras, sendo exprimidas com ambigüidade ou anfibologia perderiam sua clareza e seriam obscuras.
Acrescente-se que a raiz indo-europeia [spek-] que está em pērspĭcŭŭs introduz também a idéia de ver, olhar, observar, vigiar, fiscalizar, examinar, aprofundar o exame; aparece em todas as línguas românicas, às vezes com a significação de transparência, como registra a estilística do dicionário de Roquete ao tratar da perspicácia:
      Perspicuidade é como se disséssemos transparência [itálico nosso] no discurso, limpeza no estilo. É pois expressão mais valente, e denota não só a clareza na frase, senão uma escolha de termos que pintem as idéias com lúcidas cores.
Quanto aos vocábulos claridade e clareza, o dicionarista diz que os dois substantivos representam a idéia abstrata de claro, formada por dois sentidos: o físico e omoral. Para o primeiro, ele diz que o certo é empregar claridade (do sol, da lua, das estrelas, etc.); e para designar o sentido moral e figurado o certo é empregarclareza (do discurso, por exemplo).
É no entanto ao tratar de Claro, diáfano e transparente que o lexicólogo atinge os limites da filosofia e da metafísica, igualando-se aos filósofos que trataram da Transparência. Ele começa por definir o que entende por Claro [Vale a pena transcrever īpsĭs līttĕris as suas definições, ainda que às vezes em forma de dialelo]:
      Claro é o que tem claridade ou luz, que é limpo, puro, não turvo, e assim se diz manhã clara, dia claro, água clara, etc. Diáfano é palavra grega [...] fazer ver ou brilhar através), que diz o mesmo que Transparente, que é palavra latina, transparens, de transpareo, eu apareço além ou através; contudo o primeiro [diáfano] diz-se dos corpos através dos quais passa a luz, e o segundo [transparente] dos corpos além dos quais aparecem e se vêem os objetos.
O autor continua a sua explicação com alguns exemplos: a água reúne às vezes as três qualidades: “é clara, quando nenhum corpo estranho a turva; é diáfana, por que por ela passam os raios de luz; é transparente porque permite se apresentem à nossa vista os objetos que em si contém.” O espelho só pode ser claro, não é diáfano nem transparente. O tecido (cendal) com que Camões (Os Lusíadas, II, 37) “cobre” o corpo de Vênus é transparente e não diáfano:
C’um delgado cendal as partes cobre
De quem vergonha é natural reparo;
Porém nem tudo esconde, nem descobre
O véu, dos roxos lírios pouco avaro;
Mas, pêra que o desejo acenda e dobre,
Lhe põe diante aquele objeto raro.
Já se sentem no Céu, por toda a parte,
Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.
Conclui envolvendo os três termos na seguinte explicação que se quer científica:
      A diafaneidade dos corpos, diz Newton, resulta não da quantidade e reta direção dos poros senão da igual densidade de todas suas partes. Sua transparência é efeito ou da mesma causa ou da falta de aderência e de conexidade de suas entreabertas partes. – Diáfano é termo de física de que às vezes se faz uso em poesia; transparente é palavra mais vulgar e geralmente usada.
Dentro destas especulações de ordem lingüística, bastante controversas, não se pode esquecer da transparência como termo para designar, no século XX, odiapositivo, ou slide para retroprojetor. Um bom dicionário analógico reúne em torno do verbete Transparência as possíveis relações semânticas encontradas em substantivos como
      limpidez, nitidez, diafaneidade, translucidez, lucidez, clareza, serenidade, pureza, claridade, isocromia, vidro, cristal, linfa, água, atmosfera, corniola, cornalina, hialóide, telésia, cristal, e hialino.
Em verbos e expressões verbais do tipo
      vazar, deixar-se atravessar de luz, coar a luz, dar passagem à luz, reslumbrar, transluzir, transparecer, transparentar, desenturvar e translucidar.
E em adjetivos, expressões adjetivais mais ou menos conhecidas como
      transparente, pelúcido, limpo, límpido, translúcido, vítreo, lúcido, diáfano, pérvio à luz, cristalino, hialino, claro, puro, sereno, sem nuvens, sem jaça, claro como cristal, aerófano, pirófano, vaporoso, aeriforme, isotrópico, desvelado, desnubrado, desanuviado, especular, aclasto, da mais pura água e inúmeras outras nem sempre de fácil conotação.

Deixando o plano sincrônico por onde se estende a sinonímia puramente linguística e, por isso mesmo, visível na “transparência” do discurso comum da língua, é possível pensar que as raízes etimológicas foram ramificando-se pelas várias regiões culturais, motivando as teofanias (θεοφάνειαι) mitológicas, ocultistas e religiosas, como nas incontáveis metamorfoses amorosas de Zeus na Grécia antiga; nos avatares de Vixenu na Índia; e nos Elfos das sagas germânicas, espécie de criaturas aéreas e luminosas, que têm medo da luz. Ditas ou não-ditas, a significação de transparência se faz presente nessas metamorfoses ou nas teofanias das culturas religiosas.
Assim o judaísmo, por força de sua crença na vida eterna, é pródigo em fenômenos teofânicos (de Deus, de anjos, demônio, sonhos e visões), como em Gen 35, 7; Num 6,25; Dt 33,2; Sl 31,17; 67,2; e 118,27; Jer. 29,14; Ez 39,28, por ex.). Termos como hierofania, , teofania, epifania e parusia (παρουςία = vinda, aparecimento do rei / do Senhor [Deus]) são comuns no vocabulário judaico-cristão, todos ligados à ambiguidade aparecimento / desaparecimento, nos limites datransparência. No Velho Testamento, sobretudo com Isaías, o jogo antitético de relação entre luz e escuridão adquire tons hiperbólicos de admoestações, dando-se a entender que a luz era às vezes “confundida” com a escuridão, como em 5,20:
Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal;
que fazem da escuridade luz, e da luz escuridade.
Mas em 45, 7, Isaias vai dizer que é o Senhor quem faz todas essas coisas, como se aludisse ao livre-arbítrio de que dotou o homem para escolher entre a luz (o bem) e as trevas (o mal): “Eu formo a luz, e crio as trevas”, separando os dois fenômenos unidos pela mesma criação. No Novo Testamento, entretanto (principalmente em João, 1,5), os dois conceitos estão em níveis diferentes de relação:
A luz resplandece nas trevas,
e as trevas não prevaleceram contra ela.
Percebe-se que o sentido mítico e religioso da transparência se manifesta ao mesmo tempo que se oculta no “resplandecer” de uma certeza religiosa no final dos tempos.
É por aí, que se chega naturalmente às especulações filosóficas. Acontece que os filósofos preferem cogitar sobre a claridade (a clareza), considerando-a, entretanto, como uma espécie de transparência. Para os escolásticos um conceito é claro quando permite distinguir uma coisa de outras coisas: se permite, o conceito é claro e distinto; se não, é obscuro e indistinto ou confuso. A distinção (a claridade ou a transparência do raciocínio) é a base do cartesianismo, tanto que a principal regra do discurso sobre o método (Discours II) é a de só admitir o que se chega à mente de maneira clara e distinta, sem deixar dúvidas, uma vez que a verdade é o que se concebe clara e distintamente. Clareza e distinção são os dois graus de evidência no sentido subjetivo, como foi vista a partir de Descartes: “a clara percepção, presente e manifesta no espírito daquele que lhe presta atenção, tal como são claras as coisas presentes em nossos olhos”. (Princ. Phil. I, 45). A distinção cartesiana se tornou mais precisa com Leibniz, que considera clara (ou transparente) a noção que permite distinguir a coisa representada; e obscura a que não permite. Como a evidência implica uma transparência, um mostrar-se do próprio ente, ela é o ato cognoscitivo da verdade e o meio de transcedência do supra-sensível e do inexperimentável.
Para Bergson (La pensée et le mouvant) há duas espécies de claridade: a das idéias que, já conhecidas, se apresentam numa nova ordem; e a da idéia radicalmente nova e simples, captada pela intuição. A primeira é absorvida logo pela inteligência; a segunda é negada por obscura. No entanto, diz o filósofo, “tal idéia, mesmo obscura, serve para dissipar obscuridades”. Daí porque ele distingue entre idéias que são luminosas por si mesmas e idéias que iluminam”.
Heidegger escreve que a transparência é a intuição que o Ser-aqui tem de si mesmo: “Existindo, o Ser-aqui só vê a si mesmo enquanto se tornou originariamente transparente no seu ser no mundo e no seu ser com os outros, como momentos constitutivos da sua existência” (Sein und Zeit, §31). O Ser é já um suceder, não mais apenas um parecer. E o ato de interpretar é saber ir além das aparências, é atravessar o que se deseja ao mesmo tempo opaco e transparente. Diz Heidegger que, “Sendo ao mesmo tempo Ser em geral e Ser em particular, o Ser lido pelo Dasein (isto é, pela existência) terá diferente sentido conforme tenha diferente iluminação”. Para ele, compreender é projetar: a projeção do Dasein é o lugar do desenvolvimento de uma potência efetiva própria de sua essência. Sendo o Dasein o mundo, também o será o logos, razão por que o logos, a linguagem, deve ser ouvido. O Dasein se refugia na cotidianidade: foge ou se escapa porque se angustia, uma vez que é o Ser-no-mundo que gera a angústia. Assim o Dasein chega a uma transparência que lhe deixa ver o Ser. Em conclusão: a revelação em que consiste em boa parte a ciência histórica não significa outra coisa: a re-presentação do passado: O que o Ser assimilou na sua essência e volta agora no novo suceder.
Em 1971, Jean Starobinski, publicou um livro magnífico, onde põe à mostra toda a riqueza de análise que já conhecíamos de La relation critique, quando fala de Psicanálise e literatura. Trata-se de Jean-Jacques Rousseau: la transparence et l’obstacle suivi de sept essais sur Rousseau. Partindo da descoberta de Rousseau, nas Confissões, de que as aparências o condenavam, o estudioso investiga a dolorosa reflexão do filósofo ao se dar conta de que perdeu a sua inocência e tem de encarar a perda de um mundo dominado pela aparência (a hipocrisia, a mentira) do que ele pensava pura transparência. Devido a um pequeno incidente (que ele narra nas suas Confissões), Rousseau percebe que “O malefício da aparência” o havia atingido e que a “sua verdade, a sua inocência e a sua boa-fé” não foram compreendidas pelos “outros”. Sente que o seu eu se distancia “em relação aos outros”. Starobinski então comenta que “Quando o coração do homem perdeu sua transparência [normal nosso] o a natureza se empana e se turva. A imagem do mundo depende da relação entre as consciências”. Logo a seguir, já agora no subcapítulo “O tempo dividido e o mito da transparência”, o crítico genebrino deixa claro o que foi esse momento de crise na vida de Rousseau:
      desce o “véu” da separação, em que o mundo se empana, em que as consciências se tornam opacas umas para as outras, em que a desconfiança torna para sempre a amizade impossível –, esse momento tem sua data e uma história: marca o começo de uma perturbação na felicidade infantil de Jean-Jacques. Então começa uma nova época, uma outra era de consciência. E essa nova era se define por uma descoberta essencial: pela primeira vez a consciência tem um passado. Mas, ao enriquecer-se com essa descoberta, a consciência descobre também uma pobreza, uma falta essencial. Com efeito, a dimensão temporal que se cava atrás do instante presente tornou-se perceptível pelo próprio fato de que se esquiva e se recusa. A consciência se volta para um mundo anterior, do qual percebe simultaneamente que ele lhe pertenceu e que está para sempre perdido. No momento em que a felicidade infantil lhe escapa, ela reconhece o valor infinito dessa felicidade proibida. Então não resta mais do que construir poeticamente o mito da época finda; outrora, antes que o véu se houvesse interposto ente nós e o mundo [...] nada alterava a transparência e a evidência das almas. [Itálico nosso.]
E mostra que Rousseau se valeu do mito religioso para descrever a sua história e, nela, o drama da sua queda – a sua tomada de consciência no espetáculo iluminista do século XVIII:
      Ora, se a queda é nossa obra, se é um acidente da história humana, é preciso admitir que o homem não está naturalmente condenado a viver na desconfiança, na opacidade e nos vícios que as escoltam. Estes são a obra do homem, ou da sociedade. Então não há nada aí que nos impeça de refazer ou de desfazer a história, tendo em vista redescobrir a transparência perdida. [itálico nosso]. Nenhuma proibição sobrenatural a isso se opõe.
Starobinski conclui que “Rousseau nos convoca a querer o retorno da transparência, para nós e em nossas vidas”. E lembramos, de passagem, que o grande escritor brasileiro, João Guimarães Rosa escreveu a seu tradutor alemão, Curt Meyer-Clason, a respeito de Corpo de baile, que a obscuridade às vezes é necessária:
      O Corpo de baile tem de ter passagens obscuras.Isto é indispensável. A excessiva iluminação, geral, só no nível do raso, da vulgaridade. Todos os meus livros são simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é chamada “realidade”, que é a gente mesmo, o mundo, a vida. Antes o óbvio, que o frouxo.Toda lógica contém inevitável dose de mistificação. Toda mistificação contém boa dose de inevitável verdade. Precisamos também do obscuro.
Nos capítulos 5 e10, o ensaísta de Trois fureurs volta ao termo transparêcia, usando-o, primeiro, ao tratar da música no canto uníssono das vindimas, falando que “a transparência da festa” despertava em Rousseau lembranças inocentes do passado e isto perturbava a sua reflexão; e, depois, já no fim do seu excelente ensaio usando a expressão “A transparência do cristal” de que Rousseau se valeu para várias vezes definir o seu coração, Starobinski o parafrasea para comentar que
      No limite, a transparência é a invisibilidade perfeita [a morte]. Os homens me vêem diferente do que sou: portanto, não me vêem, sou-lhes invisível, impõem-me uma opacidade que me é estranha, colam em meu rosto máscaras que não se parecem comigo.
Nos seus devaneios Rousseau chega a lamentar não possuir o anel de Giges para, invisível, poder fazer o bem sem as aparências e os obstáculos impostos pelos homens.
O sentido de transparência é o mesmo que já descrevemos no Dicionário de sinônimos poéticos, no exemplo com a água: “é clara, quando nenhum corpo estranho a turva; é diáfana, por que por ela passam os raios de luz; é transparente porque permite se apresentem à nossa vista os objetos que em si contém.” Deste modo, as imagens do passado, vindas com o canto, podem ser lidas como marcas pré-proustianas do tempo perdido, matéria de memória mas já conhecida e que, segundo o pensamento de Bergson, se apresentava numa nova ordem, numa idéia radicalmente nova e simples, captada pela intuição. Era, enfim, uma dupla Transparência: a do próprio passado de Rousseau e a de sua época, iluminada agora pela consciência que se formava entre luz e sombra, alastrando-se pela filosofia, pela política, pelas artes e pela literatura como um rastilho de pólvora. Na belíssima imagem que Starobinski vai buscar em Hölderlin, Rousseau é a “águia que voa ao encontro da tempestade”.
A tensão estabelecida entre a Reforma e a Contra-Reforma no século XVI fez com que a arte clássica pusesse todos os seus meios de representação a serviço da imagem clara, da forma nítida, transparente em si mesma, de tal maneira que o que não fosse claro era tido como não-canônico, errado ou defeituoso. Mas no final do século aparece outra concepção de arte, a de que, jogando com a luz e com as sombras, cria-se um sentido de obscuridade em meio à claridade absoluta. A representação já não coincide com a nítida aparência das coisas, quer as nuances, o sombreado, o indefinido das formas. A transparência clássica convive agora com outro conceito de “transparência”, a do simultaneamente claro e escuro, não inteiramente opaco, mas translúcido, assim como a forma começa a transitar do fechado para o aberto. Há portanto uma modificação na maneira de olhar e ver as formas da arte, principalmente na pintura, o que vai continuar pelo século XVII e por grande parte do XVIII. No entanto, no século XVIII, ela vai encontrar um sentido próprio, revolucionário, assim como, no final do século XIX, transformar-se-á em vanguarda nas manifestações de vários movimentos artísticos.
Desconhecida das civilizações pré-históricas, cuja expressão artística era puramente bidimensional, a técnica do claro-escuro foi a grande revolução da pintura barroca, onde o seu conceito se firmou como técnica de distribuição de luzes e sombras num quadro, dispostas de tal maneira que adquirem novo valor na relação de umas com as outras. O claro-escuro cria uma nova forma de transparência, atua na percepção do relevo e das distâncias, introduz a variedade e dá nova unidade às formas e cores da verdade pictórica, chegando-se hoje a ser tomada como a própria estrutura de uma tela. Aí o conceito de Transparência perde muito da sua diafaneidade do século XVIII, uma vez que as formas artísticas (pintura, escultura, arquitetura, música e literatura) se contentam agora com o seu autotelismo, num jogo de aparência e transparência.
Nos estudos sobre a arte no século XVIII, a palavra véu adquire função de termo, aparecendo como metonímia de transparência: está contígua a ela e, assim, se deixa tomar por ela, num processo de metáfora-metonímica. Em Le clair et l’obscur à l’âge classique (2001), Alain Faudemay analise a persistência paradoxal da obscuridade no século das “Luzes”. Assim, escreve que “Para muitos pensadores, no século XVII, existem duas ‘luzes’
nitidamente distintas: a que é ‘natural’ e iluminada pela razão, e a que é ‘revelada e concedida por Deus’. As duas viviam em equilíbrio, respeitando as suas funções e os seus limites, mas algumas vezes se confundiam, como nos casos da moral.
É aí que entra em cena o Véu, palavra de forte reiteração tanto no livro de Starobinski quanto no de Alain Faudemay. Este, por exemplo, a propósito do Emile, de Rousseau, fala sobre o jogo das “Luzes” como educação do gênero humano, mas fala também da “obscuridade divina” utilizada pelos filósofos que recomendam uma parte de obscuridade voluntária para se dirigir ao público:
      Ainsi, l’obscurité, dont les sprits religieux reconnaissaient la place dans la pensée chrétienne en vient à caractériser celle-ci, au point d’en exclure les lumières. [...] Ils [os ‘’filósofos’’) recommandent en effet une part d’obscurité volontaire, mieux adaptée que la pleine lumière au public de mal voyants auquel ils s’adressent.
Em relação ao véu, à obscuridade transparente”, Alain Faudemay cita a obra de Vivant Denon (Point de lendemain) que “associe d’un part une ‘nature’ omniprésente et comme divinisée, exaltant la nudité, e d’autre part des ‘voiles’ répétés, qui emblématisent ceux Rhétoriques, d’un langage plus chaste que ce qu’il désigne:
      La nuit était superbe; elle laissait entrevoir les objets, et semblait ne les voiler que pour donner plus d’essor à l’imagination ; [...] L’obscurité était trop grande pour laisser distinguer aucun objet ; mais à travers le crêpe transparent d’une belle nuit d’été, notre imagination faisait d’une île qui était devant notre pavillon un lieu enchanté.
Tratando da “volutuosidade do véu’’, cita Santo Agostinho (Da doutrina cristã), comentando que há uma face do desejo ligada à obscuridade e bem expressa pela metáfora do véu (na verdade, uma metonímia ou uma metonímia metafórica): “Porque o véu é ambíguo. Ele pode servir para esconder, aguça a vontade de o tirar, de o rasgar ou de o profanar: o véu que esconde dos olhos do amado a beleza de Doña Esvira a torna mais desejável aos olhos de D. Juan’’.
A partir de Quintiliano a retórica praticamente completou o processo de criação das figuras que a ideologia intelectual da época necessitava e permitia. As figuras exercem um notável efeito sobre o público, seja efeito “realista’’ (ou de credibilidade) ou “emotivo” (de afetividade). A maioria dessas figuras chegaram até nós e os tratados de retórica podem, hoje, beneficiar-se com vários termos provenientes da semiologia e da linguística modernas. Uma das figuras mais exigidas pela retórica antiga era a clāritas (e o seu cognato clārus). Através delas descobriram o vītium, contrário a percūrsiu e à evidēntia, que é afetiva, enquanto a percursiose conforma com o objetivo intelectual. É pela clāritas que se percebe o efeito estético da verossimilhança (similitūdo), ornato do paralelismo destinado a comprovar se a força poética está de acordo com a “realidade”. Para isso o ornātus há de ser claro: o conteúdo da imagem há de ter um grau de cognoscibilidade superior ao da coisa ilustrada pela comparação. O uso do ornato provém da necessidade que toda pessoa (falante ou ouvinte) tem de que “haja beleza nas expressões humanas da vida e na apresentação do próprio homem em geral. Deste modo, o ornātus, com a sua intenção criadora, atinge o domínio das artes elevadas”.
Embora os retóricos não tenham diretamente percebido a transparência como uma figura de linguagem, ela pode ser vista na oratória e na literatura comoquālitas, isto é, como elemento importante para a expressão de certos conteúdos. Podemos vê-la hoje como um tropo situado entre o plano de expressão (o significante) e o do conteúdo (significado), funcionando ao mesmo tempo como metonímia e como metáfora. Neste sentido a transparência está contígua ao significante, é uma parte dele, a sua qualidade de ser permeável pela luz, pela razão, pela inteligência; e, ao mesmo tempo, está em lugar do significado, mostrando não como exatamente é, mas modificado pelo olhar penetrante do observador (cientista, crítico, leitor). Em A escrituração da escrita (1996), já havíamos falado datransparência e da opacidade como figuras que têm sido usadas para distinguir os discursos das linguagens comum e literária.
Chegamos a esta observação por intermédio de Tzvetan Todorov (Littérature et signification, 1967), para quem o discurso comum é transparente, é um discurso aparentemente sem figuras, que deixa apenas “transparecer” o conteúdo da mensagem, ficando "invisível" para o leitor. Nele só há praticamente uma referência, tanto para o ato de enunciação como para o da leitura do enunciado: a mensagem do emissor é descodificada quase totalmente (ou até totalmente) pelo receptor, pois os semas postos em circulação são os semas essenciais à comunicação da linguagem quotidiana. Já o discurso literário é um discurso opaco (ou translúcido), coberto de "desenhos", de figuras, um discurso que, em vez de mensagem, isto é, em vez de conteúdo, tem o privilégio de se mostrar ao leitor, alterando pela retórica o sentido do significante e do significado, ficando a cargo do leitor complementar as conotações. É que nesse tipo de linguagem se interferem os semas particulares que conotam as experiências do emissor e do receptor, semas que, conotando o real (a experiência de cada um), motivam o espaço da figura, os tropos que vão fazer o discurso ficar "visível" como na frase de Roland Barthes: "J'ai une maladie: je vois le langage".
Essa possibilidade de “ver” a linguagem, avaliar a sua transparência e opacidade, é que nos leva ao conhecimento poético, conforme escrevemos numa entrevista sobre poesia:
      é uma linguagem artisticamente construída, mas linguagem. A poesia é também um meio de comunicação, só que não lhe interessa comunicar o comunicável, os conteúdos comuns da linguagem comum. Ela se empenha em comunicar as marginalidades, no sentido de que, como uma “religião”, ela revela para os iniciados aspectos indizíveis, os fatos e as formas que, despidos de expressa utilidade pública, carecem de valores práticos e ficam desconhecidos, marginalizados na sociedade. Mas a poesia tangencia também o surreal, o mundo dos valores mágicos, sobrenaturais e põe de repente o homem diante da transparência de uma realidade maior, absoluta, que o envolve ao mesmo tempo no passado, no presente e no futuro, abolindo-lhe o tempo e lhe dando a condição de herói, herói da totalidade de seu cotidiano e de sua própria perplexidade.
E acrescentamos: “A poesia mostra ao homem outros sentidos da existência, integra-o na plenitude da sua cultura, dá ênfase ao visível e escancara as janelas do invisível, amplia portanto o seu universo e lhe restitui a ilusão de sua divindade, desde que lhe dá o poder da criação através da linguagem”.
Uma linguagem diáfana, porque é “através dela” que se “vai além”, à transparência do que se deixa ler como Poesia. É por isso que os tiranos de todos os tempos e lugares temem os poetas e a poesia: eles desvendam os sentidos subversivos da linguagem. Não é à toa, portanto, que, para Hölderlin, a linguagem, melhor, a linguagem poética, é ao mesmo tempo a mais inocente das ocupações e o mais perigoso dos bens.
À guisa de conclusão, veja-se a análise que José Fernandes fez do poema “Álibis”, que abre o livro Álibis (2000), em Hora aberta (2004), poemas reunidos de Gilberto Mendonça Teles:
ÁLIBIS
      Quando desejo fortemente
      uma mulher iniludível,
      ouço primeiro alguns conselhos
      do Opó-rapá-cupú-lopó.
      Depois invento um assobio
      sibilino,
      pio ou psiu:
      logo uma virgem me acompanha
      ao ponto extremo da linguagem.
      Do contrário não haveria
      outro lugar para os meus álibis,
      nem a mulher irresistível
      se deitaria assim num anagrama.
A primeira observação do ensaísta diz respeito ao ritmo octossilábico do poema que termina, entretanto com um decassílabo. Este tipo de verso, com acento na 4ª e 8ª sílabas predomina no poema (em 9 dos 12 versos) e dá-lhe – escreve José Fernandes:
      um ritmo de prosa, como se o poeta quisesse contar uma história e estivesse receoso de contá-la, precisando primeiro ouvir o conselho de alguém. Mas esse “alguém” estámascarado por um jogo de linguagem: primeiro pela simples transparência de palavras, esse lado diáfano do objeto verbal, que é o poema; depois, por uma Transparênciamaior e mais profunda, cujos níveis de significação se vão desdobrando pelo texto a dentro.
O crítico fala a seguir do desdobramento que se dá por meio de uma série de recursos retóricos, através do anagrama do título (álibis / Sibila); da evocação de uma mulher que não admite dúvida, mas que não aparece no texto (a profetisa de Delfos); da alusão literária a um poema de Manuel Bandeira, onde se fala da morte como a “Iniludível”; de um trava-língua que oculta a palavra “oráculo”; de associações fônicas (assobio / sibilino que chama a Sibila como se chamasse a atenção de uma mulher); de alusões mitológicas (referência à virgindade da Sibila); de concepções teóricas (considerar o poesia como “o ponto extremo da linguagem”; de alusão aos poemas amorosos do livro (“os meus álibis”); a repetição modificada do segundo verso e a permuta de “iniludível” por “irresistível” antes de deitar a Sibila no anagrama, calando o nome da pitonisa e todo o ato amoroso que se pode imaginar, além de uma autocrítica humorística ao verso decassílabo, censurado por um crítico que achava que não se devia mais usar esse tipo de verso. Todo o poema, afinal, deixa transparecer, por fragmentos, o corpo despedaçado, não de Osíris, mas da profetisa, cujo espírito o poeta convoca para ir recompondo e configurando o seu corpo no poema. A idéia geral deconvocação da Musa, da Sibila, de uma ajuda “sobrenatural” para o poema, assim como o fizeram Homero, Hesíodo, Virgílio, Camões e o próprio Gilberto na suaSaciologia goiana, não passa de estratégia para dar a ilusão de que o que se vai ler é de inspiração “divina”.
José Fernandes, como crítico perspicaz, soube ver na transparência um feixe de vários raios de luz atravessando o poema e deixando na travessia o sentido do claro-escuro do discurso literário. Na Nota” para a segunda edição de seu livro O poeta da linguagem (1983), dedicado ao estudo da poesia de Gilberto Mendonça Teles, agora reeditado em O selo do poeta (2005), o crítico escreve que:
      Tratando-se de arte literária, mormente da poesia de GMT, eu não poderia ter criado melhor símbolo para a sua obra, uma vez que a ação de selar implica fechar, lacrar, reservar, o que transforma o selo, segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, em símbolo do segredo. O que define um bom poema se não a capacidade de revelar escondendo e esconder revelando? [...] O enigma é a marca, o estigma da produção poética de Gilberto Mendonça Teles, não só nos poemas visuais, mas em todos os poemas, desde que lidos em profundidade.
BIBLIOGRAFIA
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Francisco Perna Filho - Poema Vencedor - 2º lugar - OFF FLIP - 2014 - Paraty - RJ


Foto by Francisco Perna Filho
















Metáfora



Agreste,
a flor de couro floresce
nas fendas do acaso.
O tempo a dedilhar-lhe as entradas,
as entranhas,
os vazios,
na secura do sertão.
Serena,
A flor de couro floresce
na relva esquecida,
no comprido lamento
dos chocalhos,
no guizo das serpentes
a espreitá-la.
Alheia,
a flor de couro floresce desencantada,
e na sua fome de cactos e pedras
desconhece outras fomes
que se avizinham.
Agreste,
a flor de couro floresce
para a colheita.

Marina Colasanti - Prosa Poética

Eu sei, mas não devia




Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. 

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.



In.Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro: Rocco,1996, p.9.
Foto by Francisco Perna Filho - Paris.

PRÊMIO OFF FLIP DE LITERATURA 2014


Professor da Católica do Tocantins receberá prêmio nacional OFF FLIP de Literatura

O Prêmio OFF FLIP de Literatura 2014 teve entre os três vencedores um escritor tocantinense. O segundo lugar foi conquistado pelo escritor  e   P​rofessor M​estre da Católica do Tocantins, Francisco Perna Filho com a poesia Metáfora, que teve como concorrentes 430 poetas do Brasil e do exterior. O professor também é membro da Academia Palmense de Letras (APL), ocupando a cadeira 28.
Esse não é o primeiro prêmio de literatura conquistado por um tocantinense como lembra o professor.  “Não é fácil furar esse bloqueio sul-sudeste, mas a nossa literatura têm nomes significativos capazes de compor o cenário literário brasileiro com distinção”, disse Perna.
O concurso faz parte da programação da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), considerado um dos mais significativos do País, e reúne a cada ano cerca de 120 escritores do Brasil e do exterior em saraus, lançamentos e mesas de debate. O prêmio tem por objetivo estimular a criação literária em língua portuguesa e também divulgar e viabilizar a vinda dos autores vencedores a Paraty.
O sarau de premiação acontecerá no dia 02 de agosto, na OFF FLIP das Letras, em Paraty, no Rio de Janeiro.

PRÊMIO OFF FLIP 2014 DIVULGA VENCEDORES



Prêmio Off Flip divulga vencedores


Estão definidos os vencedores da 9ª edição do Prêmio Off Flip de Literatura. Os contemplados receberão R$ 23 mil no total, além de estadia em Paraty, ingressos para mesas de debate da FLIP, passeio de escuna e cota de livros. Os primeiros colocados participarão da programação da Off Flip das Letras, da FLIMAR (AL) e da FLAP (AP). Os textos foram avaliados por Maurício Melo Júnior e Whisner Fraga (Conto), Claufe Rodrigues e Guiomar de Grammont (Poesia), Lucia Bettencourt e Ovídio Poli Junior (Literatura infantojuvenil). Os selecionados em conto e poesia serão publicados em coletânea e os vencedores em literatura infantojuvenil firmarão contrato de edição com o Selo Off Flip. O sarau de premiação acontecerá no Centro Cultural SESC Paraty, durante a Festa Literária Internacional de Paraty.

POESIA
1º lugar - O mundo visto pelo buraco da fechadura
Vinicius Rivas Alves (Botucatu/SP)
2º lugar – Metáfora
Francisco Perna Filho (Palmas/TO)
3º lugar - Natureza-morta com brócolis
Maria Luíza Mendes Furia (São Paulo/SP)
4º lugar - Medo da morte
Helton Timoteo da Silva (Rio de Janeiro/RJ)

CONTO
1º lugar - Imagens laribínticas do perder-se
Éder Rodrigues (Belo Horizonte/MG)
2º lugar - Bruno Schulz conduz um cavalo
Leda Cartum (São Paulo/SP)
3º lugar - Nó górdio, o dia em que enganamos a morte
Vanessa Regina Ribeiro Rodrigues (Porto/Portugal)
4º lugar - Sertão como(u)vido
Maria Beatriz del Peloso Ramos (Maricá/RJ)

LITERATURA INFANTOJUVENIL

1º lugar – Ajelasmicrim
Tereza Cristina Malcher Campitelli (Rio de Janeiro/RJ)

2º lugar – Andurá
Lucas de Oliveira Benetti (Osasco/SP)

3º lugar – Bordado de pirilampos
Hélen Queiroz (Rio de Janeiro/RJ)

3º lugar – Foi ele
Leila Gasperazzo Ignatius Grassi (São José dos Campos/SP)


Marja Perna - Conto

A ALMA DA MINHA MÁQUINA DE LAVAR






Quando a mulher se casa, ela traz consigo vários desejos, guardados a sete chaves, os quais lhe proporcionarão muitas felicidades, além da economia de seu tempo para usufruir das pequenas futilidades femininas.

Talvez não seja do conhecimento de todos, mas a mulher só adquiriu sua independência quando surgiu a máquina de lavar, e é nesse contexto que o fato se desenrola: a história de uma mulher de meia idade e sua máquina de lavar, que tinha alma.

Há alguns anos, mais ou menos cinco anos, uma jovem esposa, trabalhadora de instituição pública,  durante seis horas, e, no restante do dia, mãe, doméstica, lavadeira, amante, cozinheira, dentre várias outras profissões inerentes às mães, resolveu, para economizar tempo nas tarefas domésticas,  adquirir uma máquina de lavar, comprada via internet, em 10 prestações, com um prazo de vinte dias para entrega.

Finalmente, a grande aquisição chega ao domicílio. Um misto de alegria e tristeza  toma conta do ambiente. Alegria, por que tudo era lavado, sem muito esforço (só da máquina, claro!); tristeza, por que  a conta de água aumentou assustadoramente. Nem isso tirou a felicidade daquela mulher.

O tempo foi passando, um, dois, três, quatro...cinco anos,  quando a grande companheira começou a mostrar-se cansada, e, num belo dia, de repente, parou sem avisar à sua dona, deixando-a muito aflita, o que a fez, imediatamente, procura  um técnico, que deu o seguinte diagnóstico:

- O  coração da máquina queimou!
-Coração?
- Ah, desculpe-me,  a placa da máquina.
Após o diagnóstico, a facada:
-  Para eu consertá-la, a senhora terá de pagar R$ 120 reais!
- Nossa!, não faz mais barato?
- Infelizmente, não!

E assim foi feito, Cobrou cento e vinte reais, arrumou algumas peças, e a grande companheira voltou a funcionar, a passos bem mais lentos, mas sempre na ativa.

Após três meses de um relacionamento alegre, de confiança mútua, a estimada amiga, mais uma vez, deu sinal de cansaço. Mais uma vez, chama  o técnico. Diagnóstico? O mesmo, só que, desta vez, R$ 60 reais mais caro, com garantia de três meses.

Os meses se passaram, e a grande amiga continuava firme e forte, lavando tudo, desencardindo o mundo dos tecidos. Num dado momento, num dia como outro qualquer, fora tomada pelo desânimo,  vira o seu  ritmo diminuir, e já não mais respondia ao comando de sua dona, que impacientemente bradou:

- Da próxima vez,  não lhe mando mais para o conserto, vou comprar uma novinha, pelo menos terei certeza de que ela não me trará  surpresas desagradáveis.

Dito e feito, o grande dia chegou! A velha máquina, depois de bufar repetidas vezes, parou. Várias tentativas para reanimá-la, foram em vão. Por cinco dias as roupas  se  acumularam, ficaram encarunchadas, mas, mesmo assim,  a dona, sem querer trocá-la, insistia em ligá-la várias vezes por dia, até que, no quinto,  desistiu de vez, e saiu para comprar uma nova companheira. E isto realmente se concretizou. Comprou uma mais potente, 10 quilos, turbo, todo o sonho de uma dona de casa. Quando chegou em casa, com a nova aquisição, foi até à velha amiga, alisou o seu vidro, e falou:

- Minha velha amiga, tentei tantas vezes, pedi para você não parar e você me deixou na mão, com o cesto cheio de roupas sujas e uma conta bem salgadinha para pagar, tudo culpa sua; mas, agora, não tem mais jeito, você dançou, pois já adquiri uma nova companheira, linda e  branquinha. 

Neste momento,  num último gesto de amizade e gratidão, a dona, bem devagar, passa o dedo no botão “liga/desliga” e, num último sentimento de amor à velha companheira,  aperta o botão verde:  de repente,  acende-se uma luzinha, a morta renasce depois de cinco dias, começa a funcionar, jorrando água, com toda a força, com todo amor à sua companheira de velhos tempos.


A jovem senhora deixa cair uma lágrima, grita de felicidade, coloca a roupa suja na máquina, deixando-a trabalhar mais uma vez. A Máquina nova, na sua imponência, a tudo assistia, mas de nada adiantou, valeu a experiência da mais velha, a amizade devotada. A sua dona, com o coração apertado,  esqueceu a máquina nova em um canto, coberta, e continua com sua grande companheira, em uma estreita relação de amor:  homem e máquina. Toda vez que pensa em deixá-la, ou melhor, aposentá-la, o seu coração  dói. 

José Fernandes - Artigo Literário

IDENTIDADE ÔNTICA E ONTOLÓGICA DO SER HOMEM NA LINGUAGEM DE           GRANDE SERTÃO: VEREDAS



Escritório de João Guimarães Rosa - Foto: Acervo Familia Tess


INTRODUÇÃO

O estado de lançado do homem no mundo compreende a existência da identidade ôntica, social, e da identidade ontológica. A primeira ocorre, quase sempre, de forma inconsciente, pois se realiza, à medida que o homem, obrigatoriamente, tem de se relacionar com o outro e com o sistema, para sobreviver. A segunda, entretanto, exige que o ser tenha plena consciência de seu estado de lançado e da conseqüente necessidade de conquistar sua essência, a substância do humano. A identidade ontológica, mormente dentro do texto artístico, materializa-se em linguagem, que pode assumir diversas faces e funções, à proporção que a personagem de ficção se pensa e dispõe da consciência do ser e do estar no mundo. No caso de Grande sertão: veredas, o protagonista, ao pôr-se em viagem física e metafísica, sob a perspectiva do bem, em que tem de acreditar, e do mal, a que tem de vencer, para ascender ao humano, converte-se em linguagem, por-quanto é através dela que ele revela sua existência em narrativa. Mas, ao mesmo tempo que ele se erige e empreende a viagem metafísica, também elabora uma linguagem e uma língua individual e original, e que é regional e universal, porque imagem de seu ser e de seu estar no mundo e no sertão, que é o de dentro dele.  É exatamente essa perspectiva metafísica da linguagem que pretendemos perscrutar nesse estudo, uma vez que a linguagem da narrativa de Grande sertão: veredas transubstancia-se, também, em lin-guagem de nação e, portanto, de falantes da Língua Portuguesa, porque reflexo de um falar típico do sertão, que ainda conserva resquícios verbais e fonológicos do português falado à época do Brasil colônia, recriado em bases estéticas e ontológicas.


1 – IDENTIDADE ÔNTICA E ONTOLÓGICA


João Guimarães Rosa e os vaqueiros, na viagem, em 1952.Foto: Eugênio Silva - O Cruzeiro


A identidade, entendida sob uma ótica filosófica, compreende o ser e o estar do homem no mundo. Quando ela se prende ao estar, temos a chamada identidade ôntica, relacionada ao ente, ensentis, referente ao homem que não ascende à essência, vez que não empreende aquela busca e, consequentemente, não luta para conquistar a substância do humano. Essa identidade diz respeito à vida social do indivíduo, em sua relação direta com o outro, entendido como ser social, que pode lhe complementar, à medi-da que o conjuga ao todo, como ocorre com Riobaldo, ainda jovem, ao conhecer o me-nino. Diadorim chamou-lhe tanto a atenção pelo saber e pelo comportamento, que Rio-baldo queria-o sempre junto de si, pois constituiu verdadeira lição de sociabilidade, co-mo constatamos nesse excerto do romance:

Mas eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sobejo de esforço, fazia de conversar uma conversazinha adulta e antiga. (1970, 81)

Embora Riobaldo não fale de outras amizades de infância, a descoberta desse ser revela-lhe a verdadeira identidade ôntica, identidade da persona, sobretudo por se sentir completo como ser social. Não sem motivo, esse mesmo menino vai iniciá-lo em outra faceta da identidade, a relativa ao ser, esse, identidade ontológica, que compreende a busca da substância do humano de forma consciente, a fim de o homem ultrapassar os próprios limites, mormente aqueles relacionados à condição humana. Identidade entendida como processo, porquanto envolve a existência em toda a sua extensão metafísica. No caso de Grande sertão: veredas, Riobaldo, como soe acontecer no comum dos ho-mens que ascendem à transcendência do existir, passa pelos dois momentos, porquanto a conquista da identidade ôntica ocorre, quase toda, em conjunto com a identidade ontológica. Assim, ainda em estado de ente, marcado pelo medo, pela desconfiança e pela ingenuidade, empreende a travessia do Rio São Francisco, juntamente com o menino. Essa travessia marca o início das transformações que o processo imposto pela passagem do estado de ente ao estado de ser lhe impõe, porquanto, ao retornar, Riobaldo não será mais o mesmo. Dispõe, agora, de uma qualidade indispensável ao enfrentamento dos percalços indispensáveis à conquista da essência: a coragem, a ousadia.
O resultado da travessia implicou forte modificação na essência de Riobaldo, a ponto de ele, que era chamado simplesmente de Baldo, uma vez que houvera a síncope da sílaba Rio, passa a chamar-se Riobaldo. Ora, conforme já postulara Platão, no Crátilo, o nome confere essência ao ser nomeado. Exatamente por isso, aquele que era Baldo, desprovido, carente, ou a partir do alemão, bald, que significa em breve, mudou rapidamente para Riobaldo, Ribald, ainda do alemão, o irreverente, ou o rio audacioso. Não o fosse, e fortes relações não se estabeleceriam entre Riobaldo, protagonista de Grande sertão: veredas, e Ribaldo, personagem da novela El caballeroZifar, do início do século XIV, em que, certamente, Guimarães Rosa se inspirou para criar a personagem. Mas, a prova maior de que ele realmente assumiu outra faceta metafisica de sua identidade é constatada nas reflexões metafísicas e teosóficas que marcarão sua existên-cia ao longo da narrativa, uma vez que se converte, também, em rio irreverente, cristalizado em um relato que segue o percurso do rio, em seu constante distanciar-se e tangenciar-se, e em seu perpétuo ir-e-vir:
A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data.

Não sem motivo, o processo de formação da identidade de Riobaldo obedece a verdadeiros rituais que implicam passagens para outro estágio do ser em relação direta com sua essência. Assim, após a travessia do rio, aprende as lições de que é filho de um paidrinho e foge de casa, começando de fato o seu êxodo físico e, sobretudo, o êxodo metafísico. Mas, ao aprendizado do rio acresceu-se-lhe, também, a lição de mestre Lucas que lhe propicia tornar-se professor, marca de sua ascensão ôntica e a consequente preparação para o ingresso na jagunçagem, vez que já se formara no manuseio das armas, sob orientação de Selorico Mendes. Além disso, o fato de ser professor, mesmo sem relatar o que realmente aprendera, possibilita-lhe ingressar em conhecimentos de ordem metafísica e teosófica, necessários à conquista da identidade ontológica.

A conquista integral da identidade, no entanto, impõe-lhe percorrer um longo caminho pelo sertão, a fim de ser tão ele mesmo. Assim, passa por verdadeiros ritos de passagem que implicarão acúmulo de experiências e transformações metafísicas mani-festas em faces diversas de sua essência. Assim, ao revelar suas qualidades de atirador, conforme ele mesmo relata, Hermógenes lhe confere o codinome de Tatarana, lagarta de fogo:
Por jeito? Com o que se deu, que eu não contava. O Hermógenes me chamou. Aí ─ as cintas e cartucheiras, mochilão, rede passada e  um cobertor por tudo cobrir ─ ele estava parecendo até um homem gordo. ─ "Riobaldo, Tatarana, tu vem. Lugar nosso vai ser o mais perigoso; Careço de três homens bons, no próximo de meu cochicho." Para que vou mentir ao senhor? Com ele me apartar assim, me conferindo valia, um certo aprazimento me deu. Natureza da gente bebe de águas pretas, agarra gosma. Quem sabe? Eu gostei. Mesmo com a aversão, que digo, que foi, que forte era, como um escrúpulo. (155)

Sintomaticamente, Tatarana, do tupi, tatá, fogo; rana, semelhante, parecido, tra-duz a essência mesma de Riobaldo, à medida que, ao ligar-se à lagarta que queima, re-vela o seu lado ambíguo, correlacionado tanto ao bem quanto ao mal, além da capacidade de minar os adversários. Já a semântica de fogo, além de revelar sua instabilidade, materializa as certezas que lhe permitem partir de um ponto fixo e imóvel ─ "Deus existe mesmo quando não há." ─ para minorar as dúvidas que o atormentam durante todo o existir. Por outro lado, considerando o veneno que o animal inocula, através de suas cerdas, ao ser  tocado, Tatarana se conecta também ao sentido duplo de bem e  mal, que afligem o protagonista do romance, além, é claro, de constituir uma de suas qualidades, sobretudo ao verificarmos que esse epíteto lhe foi outorgado em decorrência de suas habilidades no manuseio das armas. Não fosse isso suficiente, o veneno da tatarana ainda lhe serve de defesa, numa tradução perfeita do duplo Riobaldo, aquele que se defende, como na prevenção revelada contra Hermógenes e Ricardão, e que ataca, quando a ocasião o requer, como ocorrera quando liquidara o próprio Ricardão, em defesa de Diadorim.

Ao atribuir-lhe o epíteto de Tatarana, não sabia Hermógenes que estava confirmando a essência de bom atirador, pois, conforme Wupes já afirmara, Riobaldo atirava com o espírito:  

Mas estava lá o Vupes, Alemão Vupes, que eu disse - seo Emílio Wusp, que o senhor diz. Das vezes que viera a passar pelo Curralinho, ele ia era meu conhecido. Tresdobrado homem. Sendo que entendia tudo de manejar com ar mas, mas viajava sem cano nenhum; dizia: -"Níquites! Desarmado eu completo, eu assim, eles todos mesmo vão muito mais me respeitar, oh, no sertão". Ele me viu afinar mira, uma vez, e me louvou, por eu, de nascença, saber tão bem, na horinha, segurar de não respirar. Mesmo dizia: -"Senhor atira bem, porque atira com o espírito. Sempre o espírito é que acerta..." (1998, 86)

Nas circunstâncias do discurso roseano, o espírito, consoante a perspectiva meta-física que perpassa a narrativa, se confunde com a essência e revela o lado verdadeira-mente humano do homem. Não sem razão essa afirmação é pronunciada por uma personagem experimentada em armas, capaz de ver além da ação de atirar e além da prática do tiro, uma vez que Sempre o espírito é que acerta..., como se o ser físico fosse guiado pelo metafísico, o ôntico, pelo ontológico. Não o fosse, e o atirador Riobaldo não seguraria o ar, como se aprisionasse o espírito no momento do atirar, pois é exatamente o ar, o sopro, que lhe confere a substância, a essência do fogo que dispara não somente da arma, mas, sobretudo, dele mesmo.

É consoante essa substância inerente ao narrador-personagem que a verdadeira transformação de Riobaldo se opera a partir do suposto pacto, quando o ritual a que se submeteu, permitiu-lhe incorporar o nome de Urutu Branco, com todo caráter viperino que a serpente assim denominada encerra. Se Riobaldo já carregava em si o espírito do mal, impresso na capacidade incomum de atirar e de expelir chamas, como o faz a tatu-rana, agora, o fogo, a necessidade de queimar a quem lhe contrariasse, advém de sua interação com as artes do Sujo que, mesmo não tendo aparecido nas veredas mortas, pareceu-lhe incorporar e, portanto, a fazer parte integrante de sua essência. Não o fosse, e não teria se transformado em um ser sanguinário, como o requer o comportamento e o espírito de um verdadeiro jagunço.

Mas, se observarmos bem, a incorporação do mal por Riobaldo, a despeito de constituir um processo, não tem como finalidade absoluta tornar-se mau, mas provar que ele não se encontra em uma entidade fora do homem, mas é inerente ao homem. Exatamente por isso, a personagem se submete a vários rituais, a várias viagens que o transformam não somente em sentido ôntico, físico; mas, sobretudo, em sentido ontológico, à medida que as viagens repercutem, antes de tudo, no conhecimento de si mesmo, em seu espírito. É justamente o espírito, o sopro, que lhe imprime, sem dúvida, o nome mais importante, Cerzidor, que, na conjuntura do romance, não apenas intertextualiza inúmeras narrativas, como El caballero Zifar e Le roman de silence, remendando histórias, mas cose a narrativa, emendando fatos em linguagem. A despeito de fazê-lo somente no crepúsculo da existência, esse apelido é que lhe confere a verdadeira substância de homem, à medida que é a linguagem que lhe permite revelar-se enquanto ser e, notadamente, concluir-se humano.

A percepção do narrar, na perspectiva do Cerzidor, daquele que permeia, inter-cala, mistura e conforma acontecimentos, tal como o vemos no discurso de Riobaldo, imprime à linguagem uma dimensão ontológica que eleva o nome e o substantivo à es-fera do metafísico, a fim de revelar o espírito, a substância do ser que fala e que, em decorrência, utiliza a linguagem autêntica do ser, entendido como aquele que é, que possui a consciência de que está se revelando enquanto ser.

   
2 – IDENTIDADE ONTOLÓGICA NA LINGUAGEM 

Foto: Eugênio Silva - revista O Cruzeiro


O processo de identidade ontológica de Riobaldo passa, sem dúvida, pela linguagem, sobretudo se a entendermos, com Heidegger, como a manifestação do ser. Em seu caso, certamente em decorrência de sua experiência do mistério que envolve a existência, marcada intrinsecamente pelo mal, além do nome em si, a sua transformação em linguagem converte essa personagem em um ser singular. Assim, a peregrinação a que o protagonista se submete, a fim de descobrir-se humano, obedece a um processo profundo, impossível de ser desvelado sem a participação da linguagem e, sobretudo, sem a submissão a um ritual, em que o simbólico e o metafísico se imbricam para a per-feita materialização de um estado de ser, revelado de forma substancial pelo próprio narrador-personagem.

Assim entendido, os rituais de passagem, a que Riobaldo se submeteu, implicaram mudanças metafísicas profundas em sua essência, a ponto de, a cada etapa de sua existência, atribuírem-lhe um novo nome, expressão de um novo ser preparado para exercer funções sociais impossíveis de desempenhar sem que passasse por esse processo. Mas, no momento que Riobaldo se propõe cristalizar a existência em linguagem, além de reviver os ritos por que passou, assume a perfeita acepção ontológica de ser, porque passa por verdadeira logofania, uma vez que a linguagem, para ele, torna-se instrumento de existência e de essência, de substância de homem e de humano.

Aqui impõe-nos observar que se Riobaldo se mantivesse apenas no nível ôntico do existir, ele se revelaria apenas como homem pertencente à humanidade e, portanto, situado no nível do ente. Mas, como foi além e se instituiu como humano, à medida que empreendeu viagem ao interior de si mesmo e elevou-se à condição de ser, conquistou aquele substância responsável pela definição de um estado ontologicamente diferencia-do de quem apenas vive em humanidade. Essa situação de ser, entendido como essência do humano, requer, para se revelar, uma linguagem igualmente diferenciada, a ponto de também assumir feições metafísicas.  

Assim, de nada lhe adiantaria partir de um princípio filosófico-teológico profundo que envolve a existência do bem e do mal para chegar à conclusão de que o mal é inerente ao homem, se não houvesse se convertido em linguagem. É exatamente essa consciência de estar se transformando em linguagem que faz de Riobaldo uma persona-gem singular. Exatamente por isso, sabe que narrar a profundidade da existência requer, também, uma linguagem original, como se fosse a palavra primeira do ser, pois, como ele mesmo o diz,

A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros, acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância.

Esse narrar desalinhavado, fragmentário, constitui uma imposição do discurso de um narrador que se sabe perquirindo as razões do existir e, sobretudo, erigindo a identidade de um ser em busca da substância do humano. Sobremodo, essa forma de narrar caótica materializa o estado de angústia por ele vivido, pois, como diz Heidegger, A angústia nos corta a palavra. Pelo fato de o ente em sua totalidade fugir, e assim, justamente, nos acossa o nada, em sua presença, emudece qualquer dicção do “é”. No caso específico de Riobaldo, em decorrência de narrar o vivido, esse corte da palavra implica cortar a seqüência dos acontecimentos, porquanto se encontra em o real estado de ente. A dicção do ser, do é, da personagem, muito significativamente, só ocorre ao final da narrativa. Justamente por isso, ele, enquanto narrador, confirma outra assertiva de Heidegger, quando diz que O fato de nós procurarmos muitas vezes, na estranheza da angústia, romper o vazio silêncio com palavras sem nexo é apenas o testemunho da presença do nada. Que a angústia revela o nada é confirmado imediatamente pelo próprio homem quando a angústia se afastou. Na posse da claridade do olhar, a lembrança recente nos leva a dizer: Diante de que e por que nós nos angustiávamos era “propriamente” – nada. Efetivamente: o nada mesmo – enquanto tal – estava aí.

Em Grande sertão: veredas, entretanto, não são as palavras que estão sem nexo, como ocorre com a linguagem caótica e, sobretudo, com a bestialógica, verificadas no romance Ulysses, de Joyce, e na peça A cantora careca, de Ionesco, mas a própria narrativa é que se mostra desconexa, como se cada seguimento se compusesse de grandes palavras que materializam estados de ser, em que o narrador tem como meta ultrapassar o próprio nada. Esse procedimento narrativo, além de constituir a identidade de Riobaldo, à medida que ele se converte em linguagem, ainda eleva o discurso à uma dimensão metafísica, resultando da conjunção direta com o ser do narrador-protagonista.

Para revelar-se na inteireza do ser, Riobaldo não se contenta em transformar-se em linguagem, mas a explora, desde dentro, à medida que sua narrativa, além de constituir-se relato de ser humano, é, também, reflexão sobre a própria linguagem, pois ela tem de encerrar a essência do ser e desvelá-la ao suposto ouvinte, ao leitor e, sobretudo, ao próprio narrador que sente a necessidade de mostrar-se para si mesmo. À angústia do existir se ajunta, nesse caso, a angústia de revelar as coisas importantes de uma existência que se fez sob a ótica de um ente que se queria ser, como verificamos nesse excerto:  
Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria en tender do medo e a coragem, e a gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe! (1995, 68-69)

As intenções de Riobaldo são claras: narrar a vida de sertanejo, seja se for ja-gunço não tem importância, somo se isso fosse o natural da existência; mas a matéria vertente, ou seja, aquilo que sai de dentro e desde dentro, a substância do humano, na mais profunda concepção metafísica. Não é sem razão que o narrador empreende um viagem, uma travessia, naquele sentido hebraico de nasa', (sn, mergulho dentro de si mesmo, pois sua linguagem que, em essência, é ele mesmo, é a matéria vertente do ser. E essa matéria constitui-se exatamente daqueles elementos inerentes à condição humana, como o medo e a coragem. A coragem aqui não se refere apenas à disposição de enfrentar as adversidades da vida jagunça, mas a pertinácia imprescindível para ele ul-trapassar a condição de ente e inserir-se na esfera do ser, a que se acessa apenas median-te a conquista da substância do humano.

Nesse afã de narrar o que realmente importa, o de dentro do ser, o vocábulo gã assume uma semântica singular, à medida que se refere tanto à multiplicidade dos im-pulsos por que o ser é movido, quanto ao ímpeto, à gana que impulsionam o narrador à prática de atos, às vezes, maus, para poder descobrir o verdadeiro sentido do existir e, sobretudo, do ser. Gã é, portanto, uma força incontrolável que tende para o mal e para o bem, dependendo do sentido que se queira imprimir à existência, notadamente aquele que leva a pensá-la em profundidade, pois, como o próprio narrador o revela, são elas as coisas que formaram o passado para mim com mais pertença: 

Sendo isto. Ao dôido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas -e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção. (1994, 69)

Essa mais pertença constitui exatamente o sertão que assume, nesse momento, a acepção de ser-tão, entendido como a parte essencial do ser, que tem de ser pensada e repensada, porque razão fulcral do existir sendo. Exatamente por isso, é que Riobaldo vai falar do que ainda não sabe, como se ainda não tivesse pensado e nem sido. Mas que, ao ser pensado, permitir-lhe-á falar de um grande sertão, porque entendido não na dimensão geográfica de espaço e de viagem física, mas na esfera do ontológico, em que o ser é.

Assim, a reiteração do verbo falar, considerando o aspecto teosófico que o en-volve, assume uma conotação especial, à medida que falar implica soprar e, portanto, repetir a fala primeira dos deuses, em que sopraram as coisas. Assim, ato de falar é a prova maior de o homem ser, porque, nele, extravasa a sua essência e, em decorrência, afirma a própria identidade existindo e sendo. Justamente por isso, Riobaldo fala do sertão, ou seja, do espaço em que ele vive e, sobretudo, do espaço em que ele é, median-te um mergulho dentro de si mesmo, já que se conforma à perspectiva do homo viator, ou seja, daquele que viaja dentro de si mesmo e, em decorrência, dentro da fala, dentro da linguagem.

Para empreender essa viagem, entretanto, é necessário conhecer-se. Por isso, poucos se colocam em viagem, porque ainda não se sabem, e esse viajar é um ato, im-plica a plena consciência de se estar sendo. Por isso, Só umas raríssimas pessoas − e só essas poucas veredas, veredazinhas o sabem. A imagem das veredas traduz bem esse pouco saber-se do ser sendo de que fala o narrador, pois elas representam um momento de sertão em que o verde predomina, ou seja, um momento em que o ser se diferencia do ente, das coisas. Como poucos chegam a diferenciar-se, porque a maioria apenas passa pela existência, mantendo-se somente no nível do existir, também o uso da palavra no diminutivo, para colocar o ser no estado de matéria e, não, na dimensão metafísica.

Além disso, veredas significa trilhos, caminhos estreitos por que se anda pelo sertão e pelo ser tão. Ora, considerando que o caminhar dentro de si mesmo é um cami-nhar estreito, difícil e raro, elas representam esse estado de ser tão, em que mostram as dificuldades e a raridade de ser em essência. Assim entendido, o diminutivo veredazi-nhas, ao diminuir o espaço físico, sugere também a precariedade do espaço metafísico do ser e a raridade de o ser ascender à essência.
  
Não sem motivo, o narrador fala. Emprega a primeira pessoa do singular, do presente do indicativo, porque possui consciência plena de seu narrar, de estar regis-trando uma história, não como alguém que apenas fala do outro, mas como alguém que  exerce a função de sujeito, de ser sendo. Nesse caso, o eu que fala, ao contrário, por exemplo, do eu de Mersault, é um eu que se afirma, que se mostra em uma dimensão ontológica, pois se sabe em transformação e em conformação de linguagem. Essa dife-rença de ser e de ente, ou seja, de revelar-se e de ser revelado, de ser fala de si mesmo e de ser fala do outro, mesmo falando de si mesmo, como ocorre em O estrangeiro, de Camus, ou como se verifica com o eu do narrador de A terceira margem do rio,  perce-bemo-la, também, nesse trecho, em que o narrador diz claramente que as pessoas não estão sempre iguais, porque em constante construção ou em constante não se fazer, por-que destituídas da consciência de sua historicidade e, em conseqüência, da necessidade de ser linguagem:  

O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam.

Portanto, as pessoas que ainda não foram terminadas são aquelas que estão sempre em vir a ser, como o requer o estar no mundo para o ser, ou aquelas que nunca estarão terminadas, porque sempre em estado de ente, de objeto, posto que incapazes de empreender a luta necessária para a conquista da essência. São aquelas que mudam, mas sempre para menos, aquelas que desafinam. O desafinar-se implica, durante o narrar, não assumir a linguagem e, em decorrência, ser fala e linguagem de outro, como ocorre, necessariamente, nas narrativas de terceira pessoa, ou de narrador demiúrgico.

Por outro lado, as pessoas que afinam, são aquelas que, como o faz Riobaldo, lutam para ser, para conquistar a substância do humano, e, por isso, registram-se na his-tória mediante o cristalizar-se em linguagem, assumindo a subjetividade da narrativa, a fim de afirmar-se na existência e na essência. São os narradores que, como Riobaldo, falam o ser tão de si mesmos. Não sem razão que ele repete, à exaustão, que Viver é muito perigoso, porque, quem não se converte em linguagem não cristaliza o seu ser.

É consoante essa visão ontológica da linguagem, do revelar-se, que Riobaldo teme o ato de falar, o ato de converter-se em palavra, mesmo sabendo da necessidade de desvelar-se, pois entende bem que falar para si mesmo é o mesmo que não falar, porque o monólogo, nestas circunstâncias, converte-se em uma espécie de autofagia, como se ele engolisse a si mesmo, enquanto que falar para o outro transforma-se em revelação do ser, em epifania:

Não sei, não sei. Não devia de estar relembrando isto, contando assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga! Não devia de. O senhor é de fora, meu amigo mas meu estanho. Mas, talvez por isso mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o mundo se fala?

A verdadeira presença do outro, real ou fingida, como percebemos pela trecho acima, é imprescindível, pois, mesmo parecendo  que se esteja falando para si mesmo, uma vez que o ouvinte logo longe de se via embora, está se mostrando, como o requer a própria essência da linguagem. O falar para alguém, além disso, constitui uma forma de arredar mais de si aquilo que não presta e que faz parte da essência mesma do ser, mas que o falar possibilita anular, mesmo que seja de forma fingida, pois que o que interessa é o revelar-se, o converter-se em linguagem e, não, o esconder-se, o emudecer-se, possível quando não se está vivendo o humano em plenitude. Justamente por isso, narrar não é fácil, uma vez que, nas circunstâncias de uma narrativa existencialista, de cunho metafísico, é preciso achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve. A colocação da palavra rumo no diminutivo, no caso, em vez que de diminuir-lhe a importância, avulta-a, uma vez que resulta do ato de remexer o vivido longe alto, com pouco caroço, querendo esquentar, demear, de feito, mue coração, naquelas lembranças:

O senhor sabe?: não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco caroço, querendo esquentar, demear, de feito, meu cora- ção, naquelas lembranças. Ou quero enfiar a idéia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve. Às vezes não é fácil. Fé que não é.
     
Não se trata, porém, de um vivido qualquer, a despeito de possuir pouco caroço, mas de pensar a existência e enfiar-lhe a idéia, ou seja, o pensamento de si mesmo sendo e existindo, transposto para a linguagem.

Mas, a maior evidência de que a personagem-narradora se transformou em lin-guagem, vemo-la no momento em que se descobre humano, em decorrência de o mal fazer parte da essência mesma da humanidade. Nesse instante, todas as suas dúvidas se dissipam, porque o mal é intrínseco ao ser humano e, não, algo que existe fora dele, personificado na figura do Diabo, como ele mesmo o diz:

  Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem hu-mano. Travessia.

A assunção da linguagem e da certeza de sua identidade de humano se materiali-za na afirmação peremptória: É o que eu digo, se for..., uma vez que mesmo aquela forma inusitada de narrar, indo-voltando-indo, agora se torna incisiva, confirmando tudo que fora narrado em profundidade de forma desalinhavada, como se o narrador, imitan-do o fecho de um discurso, dissesse: Ait, Disse, ou seja, nada mais resta a se dizer, se for... Não o fosse, e o romance não encerraria com um símbolo, que transfere a lingua-gem para um nível cósmico, porque substantivada em infinito. A linguagem semiótica, no caso, constitui a essência de tudo que Riobaldo narrou e, em decorrência, a manifes-tação de sua essência, de sua substância de humano, convertendo-se em palavra de ver-dade e da verdade, de identidade ôntica e ontológica do narrador-personagem.

BIBLIOGRAFIA


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───── O poema visual. Petrópolis: Vozes, 1996.
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YANNARAS, Christos. Philofophie sans rupture. Genève: Labor et Fides, 1986. 

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