Joaquim Cardozo - Poema

 Constant Puyo-Émile Joachim (1857 – 1933) 

Menina


Os teus olhos de água,
Olhos frios e longos,
Esta noite penetraram.
Esta noite me envolveram.

Bem querida madrugada...

Olhos de sombra, olhos de tarde
Trazem miragens de meninas...
Bundas que parecem rosas.

Sob o caminho de muitas luas
O teu corpo floresceu.
 

Joaquim Cardozo - Poema


O Relógio

Quem é que sobe as escadas
Batendo o liso degrau?
Marcando o surdo compasso
Com uma perna de pau?

Quem é que tosse baixinho
Na penumbra da ante-sala?
Por que resmunga sozinho?
Por que não cospe e não fala?

Por que dois vermes sombrios
Passando na face morta?
E o mesmo sopro contínuo
Na frincha daquela porta?

Da velha parede triste
No musgo roçar macio:
São horas leves e tenras
Nascendo do solo frio.

Um punhal feriu o espaço...
E o alvo sangue a gotejar;
Deste sangue os meus cabelos
Pela vida hão de sangrar.

Todos os grilos calaram
Só o silêncio assobia;
Parece que o tempo passa
Com sua capa vazia.

O tempo enfim cristaliza
Em dimensão natural;
Mas há demônios que arpejam
Na aresta do seu cristal.
No tempo pulverizado
Há cinza também da morte:
Estão serrando no escuro
As tábuas da minha sorte.

Imagem retirada da Internet: relógio

Léa Madureira Lima - Poema



Vicente Celestino
RONDA


O bar fecha a porta varrendo o boêmio
No canto do sonho a mágoa deságua
Notívago oscila entregue ao relento
Fiel ao profano o copo quebrado

Primeiros apitos manhã clara e fria
À sombra do espólio das dores dissídios
Os passos encontram em busca do ofício
Escalam muralhas de tédio e conflito

O ébrio e o sóbrio fantasmas despertos
À ronda incessante de seus mamulengos
Na trama insuspeita às ruas conscritos
Encontram o verbo derrubam seus mitos

Fonte: O Trem

JJ. Leandro - Conto (um caso verídico)


A MORTE NÃO MANDA AVISOS 





Antes de sair ontem da fazenda para Araguaina um uivo comprido e fino de romper tímpanos espetou a madrugada. Da cama, protegido do frio do cerrado pelo cobertor, pus sentido nele. Não perdeu forças até findar de repente. Outros vieram depois lúgubres e prolongados como o primeiro. Percebi lá fora no pátio a inquietação dos cachorros, Tupã e Diana, guardiães da sede, desafiados.  Alvoroçaram-se em volta da casa latindo forte para os rumos do riacho e da mata da reserva legal quatrocentos metros além. Latidos intermitentes, como para coser a paz rompida da alvorada. No oitão esquerdo da casa o garanhão bateu cascos no chão do piquete endurecido pela estiagem. Também trotou nervoso na escuridão roçando o corpo ancho nos caniços secos do capim andropogon. Tudo ali pertinho de mim, o uivo parecendo brotar da escuridão do corredor da casa que leva aos quartos.

Quem desafiava assim a paz da madrugada?  Imediatamente, pelos latidos dos cachorros, elucidei o enigma de dias antes, na noite do desaparecimento do vaqueiro, encontrado morto na faixa de domínio da TO-080 dois dias depois de se acidentar com a própria moto, seis quilômetros distantes da fazenda.  Aqueles uivos não eram os primeiros. Na ocasião do desaparecimento do vaqueiro foram interpretados por minha sogra como presságios da Diana.

À mesa no café da manhã, ela me olhou com o véu da superstição ainda diante dos olhos. A claridade do sol fora incapaz de varrer-lhe da face os últimos vestígios da noite mal dormida pelo sumiço do funcionário.

— Você ouviu a Diana?
— Ouvi.
— Aquilo é mau agouro... o homem desaparecido. Isso não pode ser coisa boa.
Persignou-se em seguida.
Procurei aliviar a angústia dela.
— Pareceu-me que ela sentiu o frio da madrugada.
Sacudindo negativamente a cabeça, contra-atacou com certa razão:
— Mas há tempos faz frio.  Por que só agora com o desaparecimento do vaqueiro ela veio chorar assim tão feio?

Não desvendei o mistério antes porque os cachorros não latiram na noite do desaparecimento do vaqueiro. O uivo prolongado e triste não se repetiu naquela noite. Na madrugada de ontem foram ao menos três. Se a sogra não tivesse viajado antes de mim, com certeza tentaria impugnar meu retorno a Araguaina dirigindo o carro pela BR 153. Diria: “É mau agouro, não vá. Não viu o que aconteceu com o vaqueiro?”

Ainda na cama, evitando mudar de posição para não tocar a colcha fria fora do corpo, abri um sorriso: “Ah, não foi a Diana naquele dia. Foi o guará quem uivou”. Ladino, o lobo sondava uma vez mais o terreno. Queria constatar a vigilância frouxa ou a inexistência dela para abocanhar facilmente as galinhas no poleiro ou os leitões na pocilga.

A primeira coisa que fiz depois de levantar foi abrir a porta da varanda  e, como sempre, Diana e Tupã me recepcionarem com a esperteza de sempre, o rabo oscilando alto de felicidade por me verem, foi afagar-lhes a cabeça e deitar antecipadamente na vasilha a ração matinal dos dois.

Podem ter estranhado a recompensa antes da hora, mas com certeza ficaram felizes.  

Imagem: by JJ. Leandro

Lêdo Ivo - Poema



Descoberta Do Inefável

A Lêda


Sem o sublime, que é o poeta? Sem o inefável, 
como pode louvar, não traindo a si mesmo, 
a plena e estranha juventude da moça a quem ama? 
Que é o poeta, que imita as marés,
sem adquirir com o tempo uma serenidade de coisa sempre nua 
como se as estrelas estivessem caminhando governadas 
pelo seu riso 
e seus braços agitassem as árvores feridas pelo clarão da lua?

Sem que seu canto suba até os céus, sufocante música da terra, 
que é o poeta?
Libertado estou quando canto. E quero
que minha respiração oriente a vontade das nuvens 
e meu pensamento de amor se misture ao horizonte. 
Cantando, quero outubro, gosto de lágrima, salsugem, 
no instante anterior ao despertar, folha voando.

Sem o inefável, que dura sempre, sem permanecer, 
como conseguirei louvar essa moça a quem amo 
e que nasce em minha lembrança plena como a noite 
e triunfante como uma rosa que durasse eternamente 
e não se limitasse à glória de um dia?
Sem o inefável, que valoriza as mãos e faz o Amor voar, 
não poderei descer de repente 
ao inferno de seu corpo nu.

O sobrenatural ainda existe. E não seremos nós 
que alteraremos a indizível ordem das coisas 
com as nossas mãos que poderão ficar imóveis 
em pleno amor, diante do corpo amado.

É inútil pensar que os anjos morreram
ou se despaisaram, buscando outros lugares.
Eles ainda estão, unidade admirável do Dia e da Noite, 
entre as nuvens e as casas em que moramos.

Repentinamente, as vozes da infância nos chamam para a feérica viagem 
e lembram que podemos fugir para o longe guardado ainda 
no sempre. 
Então, nossas necessidades não se reduzem apenas a comer, 
dormir e amar. 
Temos necessidade de anjos, para ser homens.
Temos necessidade de anjos, para ser poetas.

Vem, incontável música, e anuncia
(ao poeta e ao homem, humilde unidade) 
a ressurreição diária dos anjos.
Restaura em mim a certeza de que a folha voando é seu indomável divertimento 
pois às vezes sinto que meu primeiro verso foi murmurado talvez 
sem que eu soubesse, por um anjo 
perturbado com o meu ar desesperado de papel em branco.

Não é a manhã, depositando a semente de alegria no coração 
dos homens. 
Não é a vida, cântico triunfal descendo sobre as almas. 
Não é o poeta, subindo pelos andaimes de carne da lembrança 
de uma mulher.

São os anjos, que vieram ligar-nos mais uma vez 
à ordem eterna e, à anunciação.
Não nos libertaremos jamais desses anjos 
feitos de terra e mar, celestes criaturas 
que deixam cair em nós o sol da harmonia. 

É inútil matar os anjos.
Eles são invisíveis e traiçoeiros.
De repente, quando nos sentimos seguros, já não somos 
os consumidores de instantes, e estamos 
entre o Dia e a Noite, no umbral 
de uma eternidade vigiada pelos anjos.

Lêdo Ivo - Poema



Os Morcegos 


Os morcegos se escondem entre as cornijas
da alfândega. Mas onde se escondem os homens,
que contudo voam a vida inteiro no escuro,
chocando-se contra as paredes brancas do amor?

A casa de nosso pai era cheia de morcegos
pendentes, como luminárias, dos velhos caibros
que sustentavam o telhado ameaçado pelas chuvas.
"Estes filhos chupam o nosso sangue", suspirava meu pai.

Que homem jogará a primeira pedra nesse mamífero
que, como ele, se nutre do sangue dos outros bichos
(meu irmão! meu irmão!) e, comunitário, exige
o suor do semelhante mesmo na escuridão?

No halo de um seio jovem como a noite
esconde-se o homem; na paina de seu travesseiro, na luz
do farol
o homem guarda as moedas douradas de seu amor.
Mas o morcego, dormindo como um pêndulo, só guarda
o dia ofendido.

Ao morrer, nosso pai nos deixou (a mim e a meus oito irmãos)
a sua casa onde à noite chovia pelas telhas quebradas.
Levantamos a hipoteca e conservamos os morcegos.
E entre os nossas paredes eles se debatem: cegos como nós.

Imagem retirada da Internet: Morcegos


Edson Guedes de Morais - Poema


Visual representation of statistical analysis: a double handful of smooth sand cascades through the fingers, separating itself into natural divisions.
TEMPO E CAUSALIDADE


Nenhum deus me fez ou sabe.
Houve um gesto; depois,
a involuntária duração do gesto
como um punhado de areia
que se atira para o alto cai.

O fado é não podermos ver,
a cavaleiro, nossos próprios passos,
esquecermos depressa a semeada
e esta germinar à nossa frente.

Muito antes de mim, depois,
a folha, o vento e o movimento
da folha sobre a estrada pelo vento.


Fonte: Antônio Miranda
Imagem retirada da Internet: handful of sand

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