ARMILAVDA



Armilavda, ó doce Armilavda,
Lembras-te do tempo em que descobríamos o universo,
Em que ficávamos na varanda à espera da lua chegar,
Retendo a respiração diante do movimento das ondas?
Em que folheávamos grandes livros de gravuras,
Ou então nos debruçávamos sobre o mapa da terra.
Lembras-te quando te apontei um dia a Áustria,
A Índia com seus palácios e seus deuses,
A China da surpresa e das metamorfoses?

Armilavda,
Sei que te lembras do tempo
Em que íamos para o campo assistir à germinação da semente
(Corrias, solta a cabeleira ao vento,
Tuas pernas eram fortes e polidas
Como as da dançarina que eu vi no ginásio de dança,
E os laçarotes azuis do teu vestido
Se confundiam com as borboletas do mato).
Sei que te lembras do jogo de bilboquê no quarto ladrilhado,
Da noite em que surgiste de dominó para o baile de máscaras,
De nossas primas tocando piano a quatro mãos,
Das chuvas de pedra e do sinal de Deus na nuvem.
Que te lembras de tudo. Das nossas respirações em suspenso,
Das longas confidências no jardim de magnólias,
Do movimento das ondas, lá fora, despeteando a praia.
Sei que guardaste todas as imagens,
Que de vez em quando sobe-te às narinas o cheiro das magnólias
E que reconstituis o nosso tempo antigo.

Armilavda, Armilavda,
O tempo é o mesmo, germina nos campos a semente de outrora,
A lua chega esta noite entre nuvens e presságio,
As ondas lá fora despenteiam a praia.

Armilavda, Armilavda, o tempo é o mesmo:
As espadas dos tiranos retalham as partituras das sinfonias austríacas,
Nos palácios da Índia com seus deuses
Lutam tropas de párias e soldados nus,
Na china da surpresa e da metamorfose
Morrem crianças e velhos metralhados.
Consultáramos tantos mapas, lêramos tantos livros:
Mas não tínhamos lido a história de Abel e Caim.


In. As Metamorfoses.Rio de Janeiro: Record, 2002,p.53-54.
Imagem retirada da Internet: Murilo Mendes

Brasigóis Felício - Ensaio Crítico


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Angústia e aridez em Graciliano Ramos
                                                              
                                                               
Balzac, o grande romancista francês, que ambicionou, na criação de personagens, competir com o registro civil de seu país, afirmou que a humanidade sacrifica seus pensadores, para depois erigir-lhes estátuas. Parece ter sido este o caso do escritor brasileiro Graciliano Ramos. Mesmo após consagrar-se como um de nossos maiores romancistas, aplaudido por críticos do porte de Álvaro Lins, pela criação de obras imortais da literatura, como São Bernardo, Angústia e Vidas secas, continuou sendo ignorado por Alagoas, seu estado natal.

Em Maceió, onde residiu e foi diretor da Imprensa Oficial, não há nenhuma homenagem à sua pessoa, na forma de museu, casa onde tenha residido. Talvez leve seu nome algum remoto logradouro ou rua de periferia - ao contrário das expressivas homenagens a coronéis políticos de todos os tempos. Dizem os otimistas que o fato talvez seja reflexo da timidez e retraimento do autor, sempre a ocultar ou reprimir o fluxo das emoções, na secura de seu texto seco, despido de adiposidade ou da gordura dos adjetivos, reduzido quase a osso puro: Aludindo à estranha atmosfera de sonho ou delírio, presente nos romances São Bernardo, Angústia e Vidas Secas, Otto Maria Carpeaux assinala a presença, em sua ficção, de tentativas de autodestruição, ou de acabar com a memória: "Há nas minhas recordações estranhos hiatos", diz Luís da Silva, o pessimista personagem de Angústia: "Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente!Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento".

Há uma afinidade temática visível, entre os romances Vidas secas, de Graciliano Ramos, e  e Ratos e homens, de Stenbeck. Só que o cenário nordestinado é destituído de toda esperança de haver água. É um Mundo rios sem água, de estranhos nomes, como Doido, Barriga, Fubá - como quem vive ao Deus-dará.Quando no tempo não existem horas, só alucinações e sonhos nevoentos, estamos imersos na dimensão do devaneio, ausentes de nós mesmos - situação de vida ou de sobrevivência em que quase não vibra a luz da consciência. E nesta transformação da existência em sonho se comprazem os que dedicam-se a tentar fugir à realidade, correndo freneticamente, no afã de escapar da visão da sua sombra. Empreitada impossível, visto que a sombra segue o vivente por toda parte onde ele vá. Se o fim  é o destino inevitável de tudo o que vive, viver com sabedoria é estar consciente de todas as fases do "vão das coisas", escolhendo o caminho a seguir, não sendo levado como perau, na correnteza dos acontecimentos.

Precipícios não têm princípios - em face da miséria auto-sustentada não se sabe se há fim, nem quando se deu o início. O mundo de angústia e das vidas secas de Graciliano Ramos parece ser um espelho a refletir a desolação de deserto presente nos versos de Thomas Hardy:"Negra copa a noite avança, mas a morte não apavora quem passou tudo e espera sem esperança".

Eça de Queirós - Conto


 
O Tesouro





Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guannes e Rostabal, eram então, em todo o Reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados.

Nos paços de Medranhos, a que o vento da serra levara vidraça e telha, passavam eles as tardes desse inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo as solas rotas sobre as lajes da cozinha, diante da vasta lareira negra, onde desde muito não estalava lume, nem fervia a panela de ferro. Ao escurecer devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho. Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a neve, iam dormir à estrebaria, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como eles, roíam as traves da manjedoura. E a miséria tornara esses senhores mais bravios que lobos.

Ora, na Primavera, por uma silenciosa manhã de domingo, andando todos os três na mata de Roquelanes a espiar pegadas de caça e a apanhar tortulhos entre os robles, enquanto as três éguas pastavam a relva nova de abril, - os irmãos de Medranhos encontraram, por trás de uma mouta de espinheiros, numa cova de rocha, um velho cofre de ferro. Como se o resguardasse uma torre segura, conservava as suas três chaves nas suas três fechaduras. Sobre a tampa, mal decifrável através da ferrugem, corria um dístico em letras árabes. E dentro, até às bordas, estava cheio de dobrões de ouro!

No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficaram mais lívidos do que círios. Depois, mergulhando furiosametne as mãos no ouro, estalaram a rir, num riso de tão larga rajada, que as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam... E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a flamejar, numa desconfiança tão desabrida que Guannes e Rostabal apalpavam nos cintos os cabos das grandes facas. Então Rui, que era gordo e ruivo, e o mais avisado, ergueu os braços, como um árbitro, e começou por decidir que o tesouro, ou viesse de Deus ou do demônio, pertencia aos três, e entre eles se repartiria, rigidamente, pesando-se o ouro em balanças. Mas como poderiam carregar para Medranhos, para os cimos da serra, aquele cofre tão cheio? Nem convinha que saíssem da mata com o seu bem, antes de cerrar a escuridão. Por isso ele entendia que o mano Guannes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho, levando já ouro na bolsinha, a comprar três alforges de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne e três botelhas de vinho. Vinho e carne eram para eles, que não comiam desde a véspera: a cevada era para as éguas. E assim refeitos, senhores e cavalgaduras, ensacariam o ouro nos alforges e subiriam para Medranhos, sob a segurança da noite sem Lua.

- Bem tramado! - gritou Rostabal, homem mais alto que um pinheiro, de longa guedelha e com uma barba que lhe caía desde os olhos raiados de sangue até à fivela do cinturão.

Mas Guannes não se arredava do cofre, enrugado, desconfiado, puxando entre os dedos a pele negra do seu pescoço de grou. Por fim, brutalmente:

- Manos! O cofre tem três chaves... Eu quero fechar a minha fechadura e levar a minha chave!

- Também eu quero a minha, mil raios! - rugiu logo Rostabal.

Rui sorriu. Decerto, decerto! A cada dono do ouro cabia uma das chaves que o guardavam. E cada um em silêncio, agachado ante o cofre, cerrou a sua fechadura com força. Imediatamente Guannes, desanuviado, saltou na égua, meteu pela vereda de olmos, a caminho de Retortilho, atirando aos ramos a sua cantiga costumada e dolente:


Olé! Olé!
Sale la cruz de la iglesia,
Vestida de negro luto...


Na clareira, em frente à mouta que encobria o tesouro (e que os três tinham desbastado a cutiladas), um fio de água, brotando entre rochas, caía sobre uma vasta laje encravada, onde fazia como um tanque, claro e quieto, antes de se escoar para as relvas altas. E ao lado, na sombra de uma faia, jazia um velho pilar de granito, tombado e musgoso. Ali vieram sentar-se Rui e Rostabal, com os seus tremendos espadões entre os joelhos. As duas éguas tosavam a boa erva pintalgada de papoilas e botões de ouro. Pela ramaria andava um melro a assobiar. Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso. E Rostabal, olhando o sol, bocejava com fome.

Então Rui, que tirara o sombrero e lhe cofiava as velhas plumas roxas, começou a considerar, na sua fala avisada e mansa, que Guannes, nessa manhã, não quisera descer com eles à mata de Roquelanes. E assim era a sorte ruim! Pois que se Guannes tivesse quedado em Medranhos, só eles dois teriam descoberto o cofre, e só entre eles dois se dividiria o ouro! Grande pena! Tanto mais que a parte de Guannes seria em breve dissipada, com rufiões, aos dados, pelas tavernas.

- Ah! Rostabal, Rostabal! Se Guannes, passando aqui sozinho, tivesse achado este ouro, não dividia conosco, Rostabal!

O outro rosnou surdamente e com furor, dando um puxão às barbas negras:

- Não, mil raios! Guannes é sôfrego... Quando o ano passado, se te lembras, ganhou os cem ducados ao espadeiro de Fresno, nem me quis emprestar três para eu comprar um gibão novo!

- Vês tu! - gritou Rui, resplandecendo.

Ambos se tinham erguido do pilar de granito, como levados pela mesma idéia, que os deslumbrava. E, através das suas largas passadas, as ervas altas silvavam.

- E para quê - prosseguia Rui. - Para que serve todo o ouro que nos leva! Tu não o ouves, de noite, como tosse! Ao redor da palha em que dorme, todo o chão está negro do sangue que escarra! Não dura até às outras neves, Rostabal! Mas até lá terá dissipado os bons dobrões que deviam ser nossos, para levantarmos a nossa casa, e para tu teres ginetes, e armas, e trajes nobres, e o teu terço de solarengos, como compete a quem é, como tu, o mais velho dos de Medranhos...

- Pois que morra, e morra hoje! - bradou Rostabal.

- Queres!

Vivamente, Rui agarrara o braço do irmão e apontava para a vereda de olmos, por onde Guannes partira cantando:

- Logo adiante, ao fim do trilho, há um sítio bom, nos silvados. E hás-de ser tu, Rostabal, que és o mais forte e o mais destro. Um golpe de ponta pelas costas. E é justiça de Deus que seja tu, que muitas vezes, nas tavernas, sem pudor, Guannes te tratava de cerdo e de torpe, por não saberes a letra nem os números.

- Malvado!
- Vem!

Foram. Ambos se emboscaram por trás dum silvado, que dominava o atalho, estreito e pedregoso, como um leito de torrente. Rostabal, assolapado na vala, tinha já a espada nua. Um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos - e sentiram o repique leve dos sinos de Retortilho. Rui, coçando a barba, calculava as horas pelo sol, que já se inclinava para as serras. Um bando de corvos passou sobre eles, grasnando. E Rostabal, que lhes seguira o voo, recomeçou a bocejar, com fome, pensando nos empadões e no vinho que o outro trazia nos alforges.

Enfim! Alerta! Era, na vereda, a cantiga dolente e rouca, atirada aos ramos:


Olé! Olé!
Sale la cruz de la iglesia
Toda vestida de negro...

Rui murmurou:
 - “Na ilharga! Mal que passe!” O chouto da égua bateu o cascalho, uma pluma num sombrero vermelhejou por sobre a ponta das silvas.

Rostabal rompeu de entre a sarça por uma brecha, atirou o braço, a longa espada; - e toda a lâmina se embebeu molemente na ilharga de Guannes, quando ao rumor, bruscamente, ele se virara na sela. Com um surdo arranco, tombou de lado, sobre as pedras. Já Rui se arremessava aos freios da égua: - Rostabal, caindo sobre Guannes, que arquejava, de novo lhe mergulhou a espada, agarrada pela folha como um punhal, no peito e na garganta.

- A chave! - gritou Rui.

E arrancada a chave do cofre ao seio do morto, ambos largaram pela vereda - Rostabal adiante, fugindo, com a pluma do sombrero quebrada e torta, a espada ainda nua entalada sob o braço, todo encolhido, arrepiado com o sabor de sangue que lhe espirrara para a boca; Rui, atrás, puxando desesperadamente os freios da égua, que, de patas fincadas no chão pedregoso, arreganhando a longa dentuça amarela, não queria deixar o seu amo assim estirado, abandonado, ao comprido das sebes.

Teve de lhe espicaçar as ancas lazarentas com a ponta da espada: - e foi correndo sobre ela, de lâmina alta, como se perseguisse um mouro, que desembocou na clareira onde o sol já não dourava as folhas. Rostabal arremessara para a relva o sombrero e a espada; e debruçado sobre a laje escavada em tanque, de mangas arregaçadas, lavava, ruidosamente, a face e as barbas.

A égua, quieta, recomeçou a pastar, carregada com os alforjes novos que Guannes comprara em Retortilho. Do mais largo, abarrotado, surdiam dois gargalos de garrafas. Então Rui tirou, lentamente, do cinto, a sua larga navalha. Sem um rumor na selva espessa, deslizou até Rostabal, que resfolgava, com as longas barbas pingando. E serenamente, como se pregasse uma estaca num canteiro, enterrou a folha toda no largo dorso dobrado, certeira sobre o coração.

Rostabal caiu sobre o tanque, sem um gemido, com a face na água, os longos cabelos flutuando na água. A sua velha escarcela de couro ficara entalada sob a coxa. Para tirar de dentro a terceira chave do cofre, Rui solevou o corpo - e um sangue mais grosso jorrou, escorreu pela borda do tanque, fumegando.


AGORA eram dele, só dele, as três chaves do cofre!... e Rui, alargando os braços, respirou deliciosamente. Mal a noite descesse, com o ouro metido nos alforges, guiando a fila das éguas pelos trilhos da serra, subiria a Medranhos e enterraria na adega o seu tesouro! E quando ali na fonte, e além rente aos silvados, só restassem, sob as neves de dezembro, alguns ossos sem nome, ele seria o magnífico senhor de Medranhos, e na capela nova do solar renascido mandaria dizer missas ricas pelos seus dois irmãos mortos... Mortos, como? Como devem morrer os Medranhos - a pelejar contra o Turco!

Abriu as três fechaduras, apanhou um punhado de dobrões, que fez retinir sobre as pedras. Que puro ouro, de fino quilate! E era o seu ouro! Depois de examinar a capacidade dos alforges - e encontrando as duas garrafas de vinho, e um gordo capão assado, sentiu uma imensa fome. Desde a véspera só comera uma lasca de peixe seco. E há quanto tempo não provava capão!

Com que delícia se sentou na relva, com as penas abertas, e entre elas a ave loura, que rescendia, e o vinho cor de âmbar! Ah! Guannes fora bom mordomo - nem esquecera azeitonas. Mas por que trouxera ele, para três convivas, só duas garrafas? Rasgou uma asa do capão: devorava a grandes dentadas. A tarde descia, pensativa e doce, com nuvenzinhas cor-de-rosa. Para além, na vereda, um bando de corvos grasnava. As éguas fartas dormitavam, com o focinho pendido. E a fonte cantava, lavando o morto.

Rui ergueu à luz a garrafa de vinho. Com aquela cor velha e quente, não teria custado menos de três maravedis. E pondo o gargalo à boca, bebeu em sorvos lentos, que lhe faziam ondular o pescoço peludo. Oh vinho bendito, que tão prontamente aquecia o sangue! Atirou a garrafa vazia - destapou outra. Mas, como era avisado, não bebeu porque a jornada para a serra, com o tesouro, requeria firmeza e acerto. Estendido sobre o cotovelo, descansando, pensava em Medranhos coberto de telha nova, nas altas chamas da lareira por noites de neve, e o seu leito com brocados, onde teria sempre mulheres.

De repente, tomado de uma ansiedade, teve pressa de carregar os alforges. Já entre os troncos a sombra se adensava. Puxou uma das éguas para junto do cofre, ergueu a tampa, tomou um punhado de ouro... mas oscilou, largando os dobrões que retilintaram no chão, e levou as duas mãos aflitas ao peito. Que é, D. Rui! Raios de Deus! era um lume, um lume vivo, que se lhe acendera dentro, lhe subia até às goelas. Já rasgara o gibão, atirava os passos incertos e, a arquejar, com a língua pendente, limpava as grossas bagas dum suor horrendo que o regelava como neve. Oh Virgem Mãe! Outra vez o lume, mais forte, que alastrava, o roía! Gritou:

- Socorro! Além! Guannes! Rostabal!

Os seus braços torcidos batiam o ar desesperadamente. E a chama dentro galgava - sentia os ossos a estalarem como as traves duma casa em fogo.

Cambaleou até à fonte para apagar aquela labareda, tropeçou sobre Rostabal; e foi com o joelho fincado no morto, arranhando a rocha, que ele, entre uivos, procurava o fio de água, que recebia sobre os olhos, pelos cabelos. Mas a água mais o queimava, como se fosse um metal derretido. Recuou, caiu para cima da relva que arrancava aos punhados, e que mordia, mordendo os dedos, para lhe sugar a frescura. Ainda se ergueu, com uma baba densa a escorrer-lhe nas barbas: e de repente, esbugalhando pavorosamente os olhos, berrou como se compreendesse enfim a traição, todo o horror:

- É veneno!

Oh! D. Rui, o avisado, era veneno! Porque Guannes, apenas chegara a Retortilho, mesmo antes de comprar os alforges, correra cantando a uma viela, por detrás da catedral, a comprar ao velho droguista judeu o veneno que, misturado ao vinho, o tornaria a ele, a ele somente, dono de todo o tesouro.

Anoiteceu. Dois corvos de entre o bando que grasnava, além nos silvados, já tinham pousado sobre o corpo de Guannes. A fonte, cantando, lavava o outro morto. Meio enterrada na erva, toda a face de Rui se tornara negra. Uma estrelinha tremeluzia no céu.

O tesouro ainda lá está, na mata de Roquelanes.


In. A Palavra é Portugal. São Paulo: Spicione, 1990, p.84-93.
Imagem retirada da Internet: tesouro

Thiago de Mello - Poema


Os astros íntimos


Consulto a luz dos meus astros, 
cada qual de cada vez. 
Primeiro olho o do meu peito: 
um sol turvo é o meu defeito. 
A minha amada adormece 
desgostosa do que sou: 
a estrela da minha fronte 
de descuidos se apagou. 

Ela sonha mal do rumo 
que minha galáxia tomou. 
Não sabe que uma esmeralda 
se esconde na dor que dou. 

A cara consigo ver, 
sem tremor e sem temor, 
da treva engolindo a flor. 
Percorre a mata um espanto. 

A constelação que outrora 
ardente cruzava o campo 
da vida, hoje mal demora 
no fulgor de um pirilampo. 

Mas vale ver que perdura 
serena em seu resplendor, 
mesmo de luz esgarçada, 
a nebulosa do amor.




Barreirinha, Ponta da Gaivota, 97
Imagem retirada da Internet: sistema solar

Olavo Bilac - Poema Infantil


A PRIMAVERA




Coro das quatro estações


Cantemos! Fora a tristeza!
Saudemos a luz do dia:
Saudemos a Natureza!
Já nos voltou a alegria!


A Primavera

Eu sou a Primavera!
Está limpa a atmosfera,
E o sol brilha sem véu!
Todos os passarinhos
Já saem dos seus ninhos,
Voando pelo céu.
Há risos na cascata,

Nos lagos e na mata,
Na serra e no vergel:
Andam os beija-flores
Pousando sobre as flores,
Sugando-lhes o mel.
Dou vida aos verdes ramos,
Dou voz aos gaturamos
E paz aos corações;
Cubro as paredes de hera;
Eu sou a Primavera,
A flor das estações!

Coro das quatro estações

Cantemos! Fora a tristeza!
Saudemos a luz do dia:
Saudemos a Natureza!
Já nos voltou a alegria!



In. Poesias Infantis. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1949.
Imagem retirada da Internet: Primavera

José Geraldo Neres - Poema



UMA SEMENTE



corpo de lábios líricos
a se enterrar na carne do meu canto 
a criar a sede do abismo
& a queda desenfreada
a linguagem despe a morte
silêncio a se mover num cardume de sonhos
a se abrir num par de olhos
caminho a ser nomeado
a mergulhar os relógios nos lábios das horas noturnas
o outro
lâmina a respirar meus passos
& a morder a cauda da madrugada
& sentir nesses lábios as vozes das cores
a língua do horizonte um grito assassino
enterra-se na carne do meu canto



josé geraldo neres, do livro "Outros silêncios" (Escrituras, 2009).

Imagem retirada da Internet: IPlay.com.br 

Thiago de Mello - Poema


 

Canto do meu canto


Escrevi no chão do outrora
e agora me reconheço:
pelas minhas cercanias
passeio, mal me freqüento.
Mas pelo pouco que sei
de mim, de tudo que fiz,
posso me ter por contente,
cheguei a servir à vida,
me valendo das palavras.
Mas dito seja, de uma vez por todas,
que nada faço por literatura,
que nada tenho a ver com a história,
mesmo concisa, das letras brasileiras.
Meu compromisso é com a vida do homem,
a quem trato de servir
com a arte do poema. Sei que a poesia
é um dom, nasceu comigo.
Assim trabalho o meu verso,
com buril, plaina, sintaxe.
Não basta ser bom de ofício.
Sem amor não se faz arte.

Trabalho que nem um mouro,
estou sempre começando.
Tudo dou, de ombros e braços,
e muito de coração,
na sombra da antemanhã,
empurrando o batelão
para o destino das águas.
(O barco vai no banzeiro,
meu destino no porão.)

Nada criei de novo.
Nada acrescentei às forma
tradicionais do verso.
Quem sou eu para criar coisas novas,
pôr no meu verso, Deus me livre, uma
                 invenção.


Imagem retirada da Internet: escrita na areia

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