Marinalva Barros



Poema de amor



Por todos os motivos,
não se findem
os vestígios da noite
e a luz de velas perfumadas.
Nada quero saber
da presença do dia
e suas coisas banais,
estou ocupadíssima
praticando a arte
de morrer em teus braços.




Imagem retirada da Internet: em teus braços

Brasigóis Felício - Ensaio Crítico



                                        vidas-b.jpg
                    Vidas Secas - Foto by Evandro Teixeira
Vidas secas


                                                                                                                            

Fabiano é um personagem do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos - e sobre seus ombros pesam séculos de miséria e servidão. Daí que tenha tremido diante do soldado amarelo, despótico e autoritário por tradição, ignorância e costume. Ainda que, não obstante sua rude e sertaneja autoridade, seja ele próprio um excluído da dignidade.

Sao tantos os Fabianos, Severinos do berço à sepultura, mesmo que tenham outros nomes de pia. Iguais na aridez e sofrimento da existência cabocla, vivida em meio à eterna necessidade.Ontem como hoje, mesmo com as bolsas e auxílios que dão suporte à sustentabilidade da pobreza.  Severinos iguais na pobreza da linguagem, não muito mais rica do que a de seus animais de estima e cria.

O cenário agreste, castigado pela seca - torrão esturricado de caatinga brava ainda é o mesmo, na paisagem nordestinada. E o ciclo da miséria permanece, eternizado, com pessoas pensantes que não pensam - apenas obedecem.Pode ser que, vivesse hoje, muitos dos Severinos não fossem tão magros, nem tão pobres quanto o seu Fabiano. Pobres de fato continuam a ser, mesmo que em suas casas existam aparelhos de televisão, ligados a antenas parabólicas - ou que já tenham cacife e ilustração para fazer uso de aparelhos de telefonia celular. A Bolsa Fomília faz que não falte na barriga.

Dá-se então que não seria vero parodiar Euclides da Cunha, dizendo que "O sertanejo é antes de tudo um forte". Talvez hoje seja até barrigudo, e até obeso, embora sofrendo anemia. Como prefeito quase imposto de Palmeira dos Índios foi probo, o que quase não se vê por estes páramos.

Graciliano(recebeu pouco mais de 400 votos e não teve opositor. Ao assumir recebeu uma terra arrasada, mas pouco pode fazer, além de moralizar (sem moralismo) os usos e costumes do longinquo e remoto lugar do sertão das Alagoas. Governou sem fazer distinção de partido ou parentesco, e nisto multou até o seu pai, por expor couro de animais em via pública: "Prefeito não tem pai", decretou. Pôs funcionários barnabés no trabalho, o que deixou muita gente contrariada. Seu exemplo não foi seguido, ao contrário, proliferou como praga o que o gestor reprovava. Sem falso moralismo, exigiu e praticou a moralidade.

O relatório que fez de sua gestão não concluída chamou a atenção para o escritor em potencial. Foi sorte para a literatura ter o velho Graça bandeado para o seu lado. Como político ele não teria prosperado. Não conseguiria ser reeleito, e seria até preso por sua honestidade - como de fato foi aprisionado pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, sem processo formal e sem saber do que era acusado. Não foi preso por ser comunista - que ele não era - mas por não ser corrupto, e por não renunciar à sua integridade. Cancro sócio-politico que sufocou o tempo dele, e continuar a sufocar o nosso.

Ronaldo Costa Fernandes - Poema




A visão dos teus quartos




O parlamento do corpo
na assembléia de membros,
tua bunda,
tuas duas luas nuas,
o sistema solar do assoalho,
os olhos chineses da persiana,
e, tu, na ventriloquia do telefone.

Tu, que és distúrbio,
multidão de uma só pessoa,
passeata de sopranos e bombardinos,
me lanças coquetéis molotovs
e me incendeias com a gasolina dos teus cheiros.

Os poros como ventosas,
os pelos se eriçam como línguas tremelicantes.
Cai a chuva amarela da luz dos postes.
Meus dedos têm memória:
tocam o espinho de carne do teu seio.
Teu biquinho do peito
como o segredo do cofre,
vou rodando até fazer clic
e aí teu coração – ou o tesão – se abre.



(do livro Andarilho, Rio, 7Letras, 2000)
Imagem retirada da Internet: mulher

Manuel Bandeira - Poema


foto
Tragédia brasileira



Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade, conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo o que ela queria.
Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.
Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa.
Viveram três anos assim.
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...
Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.

In. BANDEIRA, Manuel. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 238
Imagem retirada da Internet: projétil

Raul Bopp - Poema



Urucungo


Pai-João, de tarde, no mocambo, fuma
E as sombras afundam-se no seu olhar.
Preto velho afaga no cachimbo a lembrança dos anos de trabalho que lhe gastaram os
músculos.

Perto dali, no largo pátio da fazenda,
umbigando e corpeando em redor da fogueira,
começa a dança nostálgica dos negros,
num soturno bate-bate de atabaque de batuque.

Erguem-se das solidões da memória
coisas que ficaram no outro lado do mar.

Preto velho nunca mais teve alegria.

às vezes pega no urucungo
e põe no longo tom das cordas vozes que ele escutou pelas florestas africanas.

Dói-lhe ainda no sangue uma bofetada de nhô-branco.
O feitor dava-lhe às vezes uma ração de sol para secar as feridas.

Perto dali, enchendo a tarde lúgubre e selvagem,
a toada dos negros continua:

Mamá Cumandá
Eh bumba.
Acubabá Cubebé
Eh Bumba.

In.Urucungo (1932)

Imagem retirada da Internet: Pai-João

Raul Bopp - Poema


Fórmula

- Vamos fazer um trato
numa conta corrente de interesses:

Eu te elogio.
Tu me elogias.
Seremos lembrados.
Seremos fortes.
Seremos gênios.

O povo pensa pelo que lê nos jornais.

Um dia
o Prefeito, lá na província telegráfica,
mandará levantar um bustinho em praça pública.

Imagem retirada da Internet: político

Raul Bopp - Poema (fragmentos)



Cobra Norato

I

Um dia
ainda eu hei de morar nas terras do Sem-Fim.


Vou andando, caminhando, caminhando;
me misturo rio ventre do mato, mordendo raízes.
Depois
faço puçanga de flor de tajá de lagoa
e mando chamar a Cobra Norato.


— Quero contar-te uma história:
Vamos passear naquelas ilhas decotadas?
Faz de conta que há luar.


A noite chega mansinho.
Estrelas conversam em voz baixa.


O mato já se vestiu.
Brinco então de amarrar uma fita no pescoço
e estrangulo a cobra.


Agora, sim,
me enfio nessa pele de seda elástica
e saio a correr mundo:


Vou visitar a rainha Luzia.
Quero me casar com sua filha.


— Então você tem que apagar os olhos primeiro.
O sono desceu devagar pelas pálpebras pesadas.
Um chão de lama rouba a força dos meus passos.



II

Começa agora a floresta cifrada.
A sombra escondeu as árvores.
Sapos beiçudos espiam no escuro.


Aqui um pedaço de mato está de castigo.
Árvorezinhas acocoram-se no charco.
Um fio de água atrasada lambe a lama.


— Eu quero é ver a filha da rainha Luzia!


Agora são os rios afogados,
bebendo o caminho.
A água vai chorando afundando afundando.


Lá adiante
a areia guardou os rastos da filha da rainha Luzia.


— Agora sim, vou ver a filha da rainha Luzia!


Mas antes tem que passar por sete portas
Ver sete mulheres brancas de ventres despovoados
guardadas por um jacaré.


— Eu só quero a filha da rainha Luzia.


Tem que entregar a sombra para o bicho do fundo
Tem que fazer mironga na lua nova.
Tem que beber três gotas de sangue.


— Ah, só se for da filha da rainha Luzia!


A selva imensa está com insônia.


Bocejam árvores sonolentas.
Ai, que a noite secou. A água do rio se quebrou.
Tenho que ir-me embora.


E me sumo sem rumo no fundo do mato
onde as velhas árvores grávidas cochilam.


De todos os lados me chamam:
— Onde vai, Cobra Norato?
Tenho aqui três árvorezinhas jovens, à tua espera.


— Não posso.
Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia.



IV

Esta é a floresta de hálito podre,
parindo cobras.


Rios magros obrigados a trabalhar.


A correnteza arrepiada junto às margens
descasca barrancos gosmentos.


Raízes desdentadas mastigam lodo.


A água chega cansada.
Resvala devagarinho na vasa mole
com medo de cair.


A lama se amontoa.


Num estirão alagado
o charco engole a água do igarapé.


Fede...


Vento mudou de lugar.


Juntam-se léguas de mato atrás dos pântanos de aninga.
Um assobio assusta as árvores.


Silêncio se machucou.


Cai lá adiante um pedaço de pau seco:
Pum


Um berro atravessa a floresta.


Correm cipós fazendo intrigas no alto dos galhos.
Amarram as árvorezinhas contrariadas.


Chegam vozes.


Dentro do mato
pia a jurucutu.


— Não posso.
Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia.



XXXII

— E agora, compadre,
eu vou de volta pro Sem-Fim.


Vou lá para as terras altas,
onde a serra se amontoa,
onde correm os rios de águas claras
em matos de molungu.


Quero levar minha noiva.
Quero estarzinho com ela
numa casa de morar,
com porta azul piquininha
pintada a lápis de cor.


Quero sentir a quentura
do seu corpo de vaivém.
Querzinho de ficar junto
quando a gente quer bem, bem;


Ficar à sombra do mato
ouvir a jurucutu,
águas que passam cantando
pra gente se espreguiçar,


E quando estivermos à espera
que a noite volte outra vez
eu hei de contar histórias
(histórias de não-dizer-nada)
escrever nomes na areia
pro vento brincar de apagar.

Raul Bopp - Poema


História do Brasil em quadrinhos





No meio do Brasil havia um rio
que não tinha margens.
Rio imenso.
A água corria, corria. Correu tanto
que um dia secou.


Apareceram, então, na crosta mole, à flor da terra,
montões de pedrarias de vivas rutilâncias.
O sol brincava com diamante.
Dos barrancos beiçudos,
sangrava ouro, em veios retorcidos.
O ferro relampeava nas jazidas,
que se estendiam em léguas intermináveis.


Deus pensou um pouco:
Será melhor que o ser humano não pegue logo essas riquezas!
Mandou o Anjo Número Um cobrir de terra isso.
Amontou montanhas. Espalhou mato em toda parte.
- Quem quiser essa opulência que a procure!
E escondeu o petróleo mais pro fundo.


Depois disse pro Anjo:
- Vou passar aqui as minhas férias.
Essa terra é mesmo tão graciosa,
sem tufões, sem vulcões, sem terremotos.


E ficou esperando pelos acontecimentos históricos.


                           II


Um dia,
viu uma naus portuguesas paradas no oceano,
por falta de vento.
Deu um assoprão nas velas murchas.
Vieram logo bater nas costas brasileiras.


Ué, exclamou Cabral, do alto da proa:
Essa terra não existe nos mapas!


Mas, mesmo assim, desembarcaram.


                          III


E foram chegando outras naus,
com hordas de homem ansiosos de aventuras.
Avançaram terra adentro, à procura de ouro.
Depois avançaram nas tapuias de pele dourada.
Avançaram nas negras de carnes reluzentes,
trazidas em navios negreiros.


                            IV


E o Brasil foi se fazendo desse jeito,
em grandes misturas,
com violência, estupros e adultérios.


As cortes de Lisboa estavam cada vez mais prósperas.
Enviavam feitores e governadores,
com Alvarás e novas Cartas Régias.


As caravelas voltavam
abarrotadas de açúcar, pau-brasil e ouro.
O Brasil era propriedade de El-Rey.


Mas a colônia desgostosa se agitava,
com revoltas, motins, inconfidências.


Um dia,
o povo oprimido deu um berro:
- Agora chega! Basta de exploração!
Foi um berro pra valer mesmo.


Valeu, tempos depois depois, a nossa independência.




                                                                         1973



In. Poemas Brasileiros.
Imagem retirada da Internet: Rio Amazonas

JJ Leandro - Poema


 
                                                                                     Foto by Paulinho Ferrarini

EXAGERADO MARANHÃO


De onde eu vim,
Carolina —
não dos Estados Unidos
mas
do Maranhão, perto de Filadélfia,
não dos Estados Unidos mas do Tocantins,
bem ao sul, não do Brasil,
do Maranhão — tudo
é grande.
É grande a miséria do povo
e seus anos de servidão a senhores
que
não o honram.
É grande a palmeira adulta — o babaçu.
Perdem-se de vistas os domínios
quase feudais
dos grandes senhores de terras e seus
rebanhos
pascentes: gado bovino e gente sem dentes
sempre
com a cerviz abaixada.
É grande o rio que corre livre,
só ele
é livre do jugo de cinco séculos.
É grande a fé que incute a resignação
num destino
único que alia miséria e preces.
São grandes as ruas de minha cidade,
suas praças
e os homens pétreos que as habitam.
Estranhamente
também é
grande
a alegria do povo nos folguedos
e a certeza dos senhores
quase feudais
em seu mando
eterno: Luís XVI invejar-lhes-ia as belas Marias Antonietas
e seus pescoços de porcelana
que há cinco séculos
só conhecem beijos e colares.
De onde eu vim tudo é grande:
até a poesia e o inconformismo de seu poeta.


In. Quase Ave, 2002, p.119-120

Raul Bopp - Poema


Mãe Muiraquitã



Água soturna e morta...Erguem-se, à toa,
As velhas sombras dessa moradia.
É a alma tapuia a errar, no adeus do dia,
No ermo sem fim que a solidão povoa.


Quando a flor do luar desabotoa
Dentro da noite, na neblina fria,
A Mãe Muiraquitã paira, sombria,
Sobre a água encantada da lagoa.


Entre os juncais, um vulto verde treme...
Mas, nesta noite de pecado e glória,
As icamiabas nuas onde estão?


Dentro da selva imensa, a noite geme.
- É a alma da raça triste, sem história,
Que anda chorando pela solidão.


In.Versos Antigos
Imagem retirada da Internet: Mãe Muiraquitã

Raul Bopp - Poema


Casos da negra velha



A floresta inchou


Uma árvore disse:
- Quero virar elefante,
E saiu correndo no meio do mato


aratabá-becúm


Aquela noite foi muito comprida
Por isso é que os homens saíram pretos



In.Urucungo, 1932.
Imagem retirada da Internet: negra velha

Elizabeth Barrett Browning - Poesia



SUBSTITUIÇÃO



Se uma adorada voz, que fora em vossa vida,
suavidade e som, de repente se esvai,
e se logo um silêncio impenetrável cai,
qual súbito mal-estar ou dor desconhecida,

- que esperança há? Que auxílio? E que música ouvida,
o silêncio destrói? Nem da amizade o ai -
nem da razão sutil a conta; não se vai
ao som de violino ou de flauta gemida;

nem canções de poeta e nem de rouxinóis,
a voz que vai subindo através dos ciprestes
até à clara lua; e medo lhe não causa

das esferas, o canto - ou dos anjos, nos sóis,
a voz que sobe a Deus; ó não, nenhuma destas!
Fala só Tu, ó Cristo, e preenche esta pausa.


Tradução: Alexandre Herculano de Carvalho


©Elizabeth Barrett Browning

Fonte: A Voz da Poesia
Imagem retirada da Internet: hope










Elizabeth Barrett Browning - Poesia



COMO TE AMO?

Sonnets from the Portuguese, Sonnet XLIII


Amo-te quanto em largo, alto e profundo
Minh’alma alcança quando, transportada,
Sente, alongando os olhos deste mundo,
Os fins do Ser, a Graça entressonhada.

Amo-te em cada dia, hora e segundo:
À luz do Sol, na noite sossegada.
E é tão pura a paixão de que me inundo
Quanto o pudor dos que não pedem nada.

Amo-te com o doer das velhas penas;
Com sorrisos, com lágrimas de prece,
E a fé da minha infância, ingênua e forte.

Amo-te até nas coisas mais pequenas.
Por toda a vida. E, assim Deus o quiser,
Ainda mais te amarei depois da morte.

Tradução de Manuel Bandeira

Fonte: A Voz da Poesia
Sob licença do Creative Commons

Marinalva Barros - Poema


Convite

 
Convido você a saltar paredões
e atravessar redemoinhos.
O susto da queda não deverá nos matar
se a sua mão segurar a minha.

Em breves instantes
o seu corpo e o meu se reconhecerão
no leito úmido e quente
do fundo das águas,

voltar à tona será tão somente
uma peripécia de amor.
Estaremos de volta
antes do por-do-sol.
Prometo.

Imagem retirada da Internet: mãos dadas

Adélia Prado - Poema


O Homem Humano


Não fosse a esperança de que me aguardas com a mesa posta
O que seria de mim eu não sei.
Sem o Teu nome
A claridade do mundo não me hospeda,
É crua luz crestante sobre ais.
Eu necessito por detrás do sol
Do calor que não se põe e tem gerado meus sonhos,
Na mais fechada noite, fulgurantes lâmpadas.
Porque acima e abaixo e ao redor do que existe Permaneces,
Eu repouso meu rosto nesta areia
Contemplando as formigas,
Envelhecendo em paz
Como envelhece o que é de amoroso dono.
O mar é tão pequenino diante do que eu choraria se não fosses meu Pai.
Ó Deus, ainda assim não é sem temor que Te amo,
Nem sem medo.

Cassiano Ricardo - Poema



Espaço lírico


Não amo o espaço que o meu corpo ocupa 
Num jardim público, num estribo de bonde. 
Mas o espaço que mora em mim, luz interior. 
Um espaço que é meu como uma flor 


Que me nasceu por dentro, entre paredes. 
Nutrido à custa de secretas sedes. 
Que é a forma? Não o simples adorno. 
Não o corpo habitando o espaço, mas o espaço 


Dentro do meu perfil, do meu contorno. 
Que haja em mim um chão vivo em cada passo 
(mesmo nas horas mais obscuras) para 


Que eu possa amar a todas as criaturas. 
Morte: retorno ao incriado. Espaço: 
Virgindade do tempo em campo verde.


Imagem retirada da Internet: ego

Carlos Drummond de Andrade - Poema



Foto by Nobuyoshi Araki
Em face dos últimos
acontecimentos



Oh! Sejamos pornográficos
(docemente pornográficos).
Por que seremos mais castos
Que o nosso avô português?

Oh ! sejamos navegantes
Bandeirantes e guerreiros
Sejamos tudo que quiserem
Sobretudo pornográficos.

A tarde pode ser triste
E as mulheres podem doer
Como dói um soco no olho
(pornográficos, pornográficos).

Teus amigos estão sorrindo
De tua última resolução.
Pensavam que o suicídio
Fosse a última resolução.
Não compreendem, coitados,
Que o melhor é ser pornográfico.
Propõe isso a teu vizinho,
Ao condutor do teu bonde,
A todas as criaturas
Que são inúteis e existem,
Propõe ao homem de óculos
E à mulher da trouxa de roupa.
Dize a todos: Meus irmãos,
Não quereis ser pornográficos?

Cássia Fernandes - Poema

Cássia Fernandes
Os dias




Quatro dias de sono na roça.
A pele descansada,
porque não peguei no cabo da caneta
nem me pegaram para enxada.
Apenas capinei os ares.
Apartei-me cedo do gado.
Preparei silos
para os dias de estio
que se seguirão.
Dei de beber aos cavalos,
curando as feridas dos cascos
e desfazendo os nós das crinas,
e assim pretendendo temporariamente
persuadi-los
a não dispararem estúpidos
pelos pastos,
atrás de capim verde
e miragens de vacas e meninas.
Tudo isso me descansou o corpo,
mas ainda assim a alma,
essa não tem repouso,
nem com sono, nem com feriado.
Talvez um dia, quem sabe,
ou mais tarde,
num Pouso Mais Alto.

William Butler Yeats - Poema



Portrait sketch of William Butler Yeats in 1908
by John Singer Sargeant


As Vozes Eternas


(1899)


Oh, doces e perenes Vozes, permaneçam;
Vão até aos guardiões das hostes celestiais
E os ordene que vagueem obedecendo à Tua vontade, 
Chamas sob chamas, até o Tempo deixar de existir;
Não tem você ouvido que nossos corações estão cansados,
Que você tem chamado por eles nos pássaros, 
no vento sobre as colinas, 
Em balançantes galhos nas árvores,
nas marés pela beira-mar? 
Oh, doces e perenes Vozes, permaneçam.


Tradução de Izabella Drumond 

Valdivino Braz - Conto

Os lírios do brejo




           Grilos e sapos nos brejos, e ele a estortegar-se todo, no leito de palha, entre gemidos e bufos de bicho agoniado. Do outro lado da parede de taipa, a voz rouquenha de Sinhana:

           — Que é isso, Menino?

          Silêncio como resposta, o rosto afundado no travesseiro de paina, abafando a agonia. A noite. Os grilos. Os sapos. E novamente Sinhana:

           — Sossega, Menino. Dorme.

          Menino era como a velha Sinhana chamava a um homem já feito, de nome Benedito, abrutalhado e meio palerma, filho bastardo de Quim Borba. No papel de avó, e num senso de caridade, ela tomara a criança sob seus cuidados, porque morrera-lhe a mãe, de nome Olívia, que o parira a susto de má hora, de forma traumática, donde a falácia de que o menino, cabeçudo e horroroso, era fruto de parto maldito, por vias adúlteras. Olívia era irmã de Jovina, mulher de Quim Borba, e finou-se em conseqüência da quebra de resguardo. Ressentida com a traição do marido, Jovina não quis saber do sobrinho-enteado, “o amaldiçoado”, dizia ela, que nunca tivera filhos porque abortava toda vez que o Quim lhe botava um feto no útero. Além do mais, agora também já não era deste mundo, a Jovina: caiu do cavalo, quebrou o pescoço, morreu.

          Custava a dormir, o Menino. Noite adentro no seu desassossego, enquanto lá consigo mesmo não se aliviasse. Só então lograva adormecer, só então a avó também dormia, que antes ficava escutando tudo e pensando na linha torta que fora a vida de Quim Borba. Os bens que ele possuía — as terras, o gado, o engenho de açúcar mascavo, com os tachos pro melado e fabrico de rapadura —, perdeu tudo no jogo e nas farras de puteiro do povoado ou nos distantes cassinos e cabarés por onde passava. Perdeu-se a conta das mulheres que ele botava por sua conta. Contando, ninguém acredita, mas até dois dentes de ouro que tinha na boca ele arrancou pra vender e apostar na mesa de carteado. Pra ela, Sinhana, ficou só a casa em ruínas, numa nesga de terra que sobrou, e ali o neto abobalhado.

          De manhãzinha, mal os galos abrissem o bico nos poleiros, aquele meninão desajeitado se levantava, retirava os paus roliços da porta da sala, saía lá fora e urinava. Quedava-se, depois, a contemplar, atoleimado, a bruma da manhã e os vultos cinzentos das imbaúbas ao redor; a mão distraída nas virilhas, fuçando uma virilidade meio descomunal. Bruscamente, chutava um troço qualquer e resbunava com o seu jeito de bicho.

          Nas tardes, ao pôr-do-sol, costumava trepar num tronco caído e ali demorar-se viajando os olhos pela soturna solidão sertaneja, contemplando o horizonte longínquo, esbraseado pelos matizes do crepúsculo. E quando a sombra da noite precedia a melancólica melopéia dos charcos, ele descia do tronco e, cabisbaixo, recurvo tamanduá, voltava pra casa. Quase sempre colhia lírios do brejo, como por ali chamavam a flor-de-são-josé, e oferecia-os a Sinhana, que os recebia calada, já meio maquinalmente, e colocava numa vasilha com água.

          Por vezes, plantava-se o Menino no meio do terreiro, a botar sentido nas manobras dos galos, assediando as galinhas, e não foi uma nem duas vezes que a avó se deparou com algumas delas mortas atrás das moitas, a princípio supondo tratar-se de peste ou cobra venenosa (!), até percebê-las estrompadas, com a cloaca em petição de miséria. Então chamou o bastardo pra uma conversa ao pé da letra, inclusive aplicando-lhe uns croques na cabeça deformada, anormalmente avantajada e assim no feitio de careta-de-caju, como se diz da castanha desse fruto. Depois dos croques foi que ele mudou o rumo de seus instintos.

          Uma tarde, Sinhana tomando banho na bacia, no quarto, e o mondrongo vai lá e arranca o ensebado trapo de linhaça que serve de cortina. Sobressalto e as mãos encarquilhadas cobrindo as partes de baixo, a avó meio se curvando para isso e as mamas murchas penduradas feito mamões-de-corda. Os gritos indignados, que ele saia dali, que a respeite! O murro no queixo, como um coice de cavalo; Sinhana caída no chão batido, a besta já em cima dela, entrando nela com tamanho ímpeto, e cravando-lhe os dentes na muxiba dos peitos, raivoso morcego, ou fome de menino desmamado muito cedo.


*

          Três dias ele andou fugido, bicho do mato, comendo raízes e frutos que encontrasse. Sinhana a esperá-lo, o tempo todo a vigiar os arredores, perscrutando moitas e vultos de paus cinzentos. Varrendo a casa ou cuidando das panelas, não se descuidava nunca. Rastejar de réptil, voejar de pássaro ou mero farfalhar de folhas e a mão saltava para o porrete ali no jeito. Caso o engano, a velha tornava aos afazeres, mas sempre vigilante.

          Tardezinha do terceiro dia, olhe ele lá, furtivo, se esgueirando entre as árvores. Ligeira, Sinhana pegou o porrete, colou-se à parede junto à porta da cozinha e, os olhos metidos numa fresta do reboco, esperou.

          Benedito deixou, afinal, a proteção do arvoredo, e avançou, ressabiado, a terreno descoberto. Então Sinhana avistou, na mão pendente do neto, o molhe de lírios-do-brejo. Também reparou no aspecto andrajoso e abatido com que ele vinha, meio trôpego, e seu coração vacilou, penalizado: a pobre criatura de Deus, que era o Menino. Mas, não! Não podia fraquejar. Condoer-se de um tarado? O que lhe fizera o motreco, não merecia clemência. Abusar de uma velha sofrida que nem ela, já se viu? Bisca ruim é cobra criada, que a gente mata sem dó nem piedade, Quim Borba já dizia. Mas Sinhana agora ponderava que ali era o seu neto, o filho de seu filho, embora fosse um jumento sem juízo.

          Intensa luta íntima, o coração em dúvida, dividido, ora impiedoso, ora amolecido; bambas e trêmulas as pernas da pobre mulher. Benedito já quase no limiar da porta. Não, não tinha coragem!, Sinhana ainda em conflito, justo quando o neto transpõe o umbral, e uma só a porretada que o derruba, confusa a reação da própria avó, de joelhos agora, em desespero, chamando o Menino desfalecido; as mãos dela querendo mas não completando o gesto de pegar a cabeça ensangüentada, pegando, porém, os lírios espalhados no chão, e, no átimo do momento, mordendo-os um a um, ganindo e estraçalhando as flores com os dentes, como se possuída por uma fúria canina. Uma coisa de doido, ainda por explicar-se. Dizendo as más línguas que a velha teria reacendido o fogo morto no vão das pernas e tomado gosto pelo neto em cima dela.

          Depois do acontecido, amiúde Sinhana era vista nos seus trapos, mexendo com barrela no terreiro e cantando antigas modinhas de amor. Ou então ali sentada num banco, tendo o neto Benedito — que não morrera com a paulada —, ajoelhado no chão e com a cabeçorra em seu colo, enquanto ela se punha a catar-lhe gordos piolhos; dela o prazer de ouvir cada estalo ao esmagá-los com as unhas. E assim foram levando a vida por ali. Os lírios perduram nos brejos. Por menor que seja, também uma florzinha do campo conduz o sentido de sua existência. “Uma florzinha é o labor dos séculos”, como diz o poeta William Blake ao escrever os Provérbios do Inferno.

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