Sinésio Dioliveira - Poema


Tessitura



Manoel
é barros
ventos
rios
chilreios
trovões
enxurradas...
É passarinho poeta –
manoel-de-barros –
construindo seu canto
de terra molhada.
Manoel
é manual de passarinho
homem que veio da entranha da terra.

Manuel Maria Barbosa du Bocage - Poema


Foto by Gustavo Ribeiro

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores:

Ponderei da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas, e amores,
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração dos seus favores:

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns, cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.



In. Sonetos e Outros Poemas. São Paulo: FTD, 1994, p.19.

Paulo Mendes Campos - Crônica


O cego de Ipanema



Há bastante tempo que não o vejo e me pergunto se terá morrido ou adoecido. É um homem moço e branco. Caminha depressa e ritmado, a cabeça balançando no ato, como um instrumento, a captar os ruídos, os perigos, as ameaças da Terra. Os cegos, habitantes do mundo esquemático, sabem aonde ir, desconhecendo nossas incertezas e perplexidades. Sua bengala bate na calçada, com um barulho seco e compassado, investigando o mundno geométrico. A cidade é um vasto diagrama, da qual ele conhece as distâncias, as curvas, os ângulos. Sua vida é uma série de operações matemáticas, enquanto a nossa costuma ser uma improvisação constante, uma tonteira, um desvairio. Sua sobrevivência é um cálculo.


Ele parava ali na esquina, inclinava sua abeça para o lado, de onde vêm ônibus monstruosos, automóveis traiçoeiros, animais violentos dessa selva de asfalto.Se da rua viesse o vago e inquieto ruído a que chamamos silêncio, ele a atravessava como um bicho assustado, sumia dentro da toca, que é um botequim sombrio. Às vezes, ao cruzar a rua, um automóvel encostado à calçada impedia-lhe a passagem.Ao chocar-se contra o obstáculo, seu crpo estremecia; ele disfarçava, como se tivesse apenas tropeçado, e permanecia por alguns momentos em plesna rua, como se a frustração o obrigasse a desafiar a morte.


Mora em uma garagem, deixou crescer uma barba espessa e preta, só anda de tamancos. Como profissão, por estranho que seja, faz chaves e conserta fechaduras, chaves perfeitas, chaves que só os cegos podem fazer. Vive (ou vivia) da garagem do botequim, onde bebe, conversa e escuta rádio. Os trabalhadores que almoçam lá o tratam afavelmente, os porteiros conversam com ele. Amigos meus que o viram a caminhar com agilidade e segurança não quiseram acreditar que fosse completamente cego.

- Já reparou como ele é elegante?

Seu rosto alçado, seu passo firme a disfarçar um temor quase imperceptível, seus olhos esvaziados de qualquer expressão familiar, suas roupas rotas compunham uma figura misteriosamente elegante, uma elegÂncia hostil, uma elegância que nossas limitações e hábitos mentais jamais conseguirão exprimir.

Às vezes, revolta-se perigosamente contra seu fado [Destino]. Há alguns anos, saíra do boteco e se postara em atitude estranha atrás de um carro encostado ao meio-fio. Esperei um pouco na esquina. Parecia estar à espreita de alguma coisa, uma espreita sem olhos, um pressentimento animal. A rua estava quieta, só um carro vinha descendo silenciosamente. O cego se contraía à medida que o automóvel se aproximava. Quando o carro chegou à altura do ponto onde se encontrava, ele saltou agilmente à sua frente. O motorista brecou a um palmo de seu corpo, enquato o cego vibrava sua bengala, gritando: "Está pensando que você é o dono da rua?"

Outra vez, eu o vi num mmento particular de mansidão e ternura. Um rapaz que limpava um Cadillac sobre o passeio deixou que ele apalpasse todo o carro. Suas mãos percorreram o para-lamas, o painel, os faróis e os frisos. Seu rosto se iluminou, deslumbrado, como se seus olhos vissem pela primeira vez uma grande cachoeira. o mar de econtro  aos rochedos, uma tempestade, uma bela mulher.

E não me esqueço também de um domingo quando ele esatava saindo do boteco. Sol morno e pesado. Meu amigo ego estava completamente b~ebado. Encostava-se à parede em uma tentativa improvável de equilibrar-se. Ao contrário de outros homens que se embriagavam aos domiingos, e cujos rostos ficaam irônicos e ferozes, ele mantinha uma expressão ostensiva de seriedade. A solidão de um cego rodeava a cena e a comentava. Era uma agonia magnífica. O cego de Ipanema representava, naquele momento, todas as alegorias da noite escura da alma, que é a nossa vida sobre a Terra. A Poesia servia-se dele para manifestar-se aos que passavam. Todos os cálculos do cego se desfaziam em meio à turbulência do álcool. Com esforço, despregava-se da parede, mas então já não encontrava o mundo. Tornava-se um homem trêmulo e desamparado, como qualquer um de nós. A agressividade, que lhe emprestava segurança, desaparecera. A cegueira não mais o iluminava com seu sol opaco e furioso. Naquele instante, ele era só um pobre cego. Seu corpo gingava para um lado, para o outro, sua bengala espetava o chão, evitando a queda. Voltaa assustado à certeza da parede, para recomeçar, momentos depois, a tentaiva desesperada de desprender-se da embriaguez e da Terra, que é um globo cego girando no Caos.


In. Para gostar de Ler 5: Crônica. São Paulo: Ática, 2008, p.74-76.
Imagem retirada da Internet: Paulo Mendes Campos.

Valdivino Braz - Poema


Da esquerda para direita: Valdivino Braz, Delermando Vieira e Chico Perna
Os Homens no Bar(co)


Os homens envelhecem no bar
bebendo as palavras salobras da noite
e cuspindo o azinabre corrosivo do tédio

E na longa travessia das horas
destiladas pelos copos
sabem o cansaço dos corpos
os vincos nas faces vulneráveis
e a vida moída pela mó
do inexorável

Sabem o íntimo silêncio
em que os gestos se anulam
os olhos no vazio vagam
e cada homem diz a si mesmo coisas
uns aos outros indizíveis

Sabem nesta hora a solidão sozinha
do lobo ferido no ermo do mundo
e os inevitáveis borrões vermelhos
da sangria própria do que é vivo
e dói

E morrem os homens à mesa do bar
barco de náufragos no mar de espuma
da última cerveja


In. A palavra por desígnio. Goiânia: UBE, 1983, p.22.




Gerardo Melo Mourão - Poema


SIBILA
(Último oráculo)



Perdido nas veredas das palavras
tapa os ouvidos - canto sibilino
não escuta: olha apenas estes olhos
apaga teus sentidos - só nos olhos
acharás o caminho; sem meus olhos,
somente os meus - redondos neste rosto -
morrerás entre ínvios labirintos.

Sibila sou - Sibila, a Sâmia, a Délfica*
poetas e pontífices me seguem
olha meus olhos - não te perderás
olha meus olhos e estarás perdido
perdido neles morrerá de amor
e os que morrem de amor não morrem nunca
olha meus olhos - me verás inteira
em teus olhos de morto estarei viva
e minha vida espantará da tua
a morte para sempre - e para sempre
em tua vida há de viver a minha.


12/12/99


*Nota do autor: A última Sibila grega, chamada Sibila Sâmia, e também Sibila Délfica, pois viera de Samos e profetizava em Delfos, teve um longo encontro com em Roma, outro em Veroli, com o Papa Júlio III. A bela cabeça da Sibila, com seus olhos impressionantes, está na Capela Sistina.


In. Algumas Partituras. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002, p.42.
Imagem retirada da Internet: Sibilia

Gerardo Melo Mourão - Poema


Foto by Francisco Javier Alcerreca - Pétala seca
PEQUENA ODE A UMA PÉTALA SECA OU
 A ESPERADA RESSURREIÇÃO DA ROSA




Entre folhas de versos de Propércio¹
jaz a pétala seca a flor enxuta;
a rosa úmida e inteira jaz na gruta
do amor e da memória do poeta.

O que era rosa agora é quase espinho
e na pétala seca o que se oculta
é uma rosa de sonhos insepulta
um pássaro do qual só resta o ninho.

Talvez um dia, amor, orvalho e aurora
à mão da musa que a colheu em flor
ressuscitem aroma e forma e cor
e rosa torne a ser o que foi rosa outrora.

Talvez um dia a flauta antiga sopre Orfeu
e à pétala fiel as que se foram, voltem
e da corola nunca mais se soltem
e o rouxinol torne a cantar no ninho seu.

                                             
  Copacabana, 29/11/97




1- Wikipédia: Sextus Aurelius Propertius (43 a. C. - 17 d. C.) foi um poeta elegíaco e mitógrafo romano nascido em Assis, Úmbria, Itália, representante da antiga escola de Calímaco e o mais característico da poesia elegíaca latina.


In. Algumas Partitura. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002, p.41.

Cida Almeida - Ensaio Curto


A travessia do sertão de Hugo de Carvalho Ramos





Há leituras que escavam a gente. E escavam desde o brejo do barro mais fundo. Fui procurar o meu avô e a sua saga tropeira no fundo do poço da memória de um Brasil perdido, a sua travessia em definitivo do rio Paranaíba (divisa natural de Minas e Goiás), as águas do grande rio dividindo as Minas Gerais de sua alma espraiando-se nos sertões calejados de Goiás – onde tantas almas nossas fecundaram. Da plaqueta vermelha que ostentou o carro de boi do meu avô no passo duro da estrada (Carro de boi 108, Araguari, 1944), levantando o poeirão contínuo do sertão de Minas e Goiás – e queria tanto saber o nome de seus bois, para pronunciá-los poeticamente como num mantra de tocar a raiz funda da árvore de nossa história familiar! – ao livro de Hugo de Carvalho Ramos, Tropas e Boiadas. Da história de meu avô a Hugo de Carvalho Ramos, uma jornada dura que tem me instigado e mexido muito com as emoções e a imaginação. Da história de meu avô a Hugo de Carvalho Ramos, um baque seco, como se eu tivesse caído do lombo de um cavalo indomável, daqueles que meu avô amansava e que só respeitavam a sua autoridade incontestável. 

E sigo justamente essa poeira vermelha da estrada do Brasil de dentro, poeira do sertão engolido pelo tempo, soterrado pelas máquinas que apagaram, não de todo, o rastro das boiadas. Ainda é uma cena comovente de se ver: a comitiva tangendo boiadas no concreto do asfalto.

Tempo desses, topei com duas comitivas de boiadeiros. Uma seguia rumo Norte, entre os municípios de Goianésia e Uruaçu. A outra, no Vale do Araguaia, próximo a Aruanã. Na paisagem, apenas uma mancha ou outra de cerrado preservado quebrando a monotonia das monoculturas de exportação a perder de vista, a soja e os canaviais num verde sem fim. 

E a ternura de olhar a inusitada miragem da boiada em seu lento arrastar pelo asfalto e os boiadeiros ponteando a manada... Ohhh! Puxo as rédeas do olhar e empaco. Deixo a saga de meu avô no fecundo poço da memória. E sigo a galope o sertão pintado por Hugo de Carvalho Ramos no começo do século passado, aqueles idos de 1914 a 1917. 

Acredito que, assim como eu na minha procura, Hugo foi dar no mesmo brejo fecundo do barro fundo, o da memória afetiva. No mundo do encantado sertão de Hugo de Carvalho encontro o sertão desbravado pelo meu avô. O mesmo além Paranaíba, histórias que ouvi, as trilhas abertas pelos cascos dos bois onde o traçado do caminho não beirava nem a intuição de estrada – as perdidas estradas do boi, a rota do comércio entre as gentes das bandas de cá e de lá, na mesma bacia das almas, pois é difícil encontrar um goiano que não tenha um pé remoto em Minas. Aqueles homens de sertão, no calejado das rédeas de domar animais, brabezas de gente e de bicho, um arcaico Brasil conduzido por fazendeiros que fundavam seus reinos com mãos de ferro, esticando cercas de arame farpado a perder de vista no cerradão goiano. 

O coronelismo falando grosso por esses rincões perdidos de Deus, sacramentando a defesa de interesses financeiros e políticos em alianças que asseguravam o domínio das terras, os privilégios de classe e o poder da aristocracia na província. E o falar grosso era o império da força bruta, do chicote, a lei do 38, das brutalidades que sacramentavam os domínios do latifúndio. Sem contar ainda das espúrias relações de compadrio entre os donos de terra e os agregados, mascarando a exploração com todos os componentes da servidão de nossa herança escravocrata. 

Fui procurar o meu avô no recorte literário daquele mundo por onde andou e desandou muito dos nossos genes em Tropas e Boiadas. Livro que vez ou outra entra na lista dos indicados para os vestibulares das universidades goianas, que (in) explicavelmente passou ao largo de minhas mãos e dos meus interesses nos tempos do colegial e da faculdade. 

Nascido em 21 de maio de 1895, na Vila Boa de Goiás, antiga Capital da Província e do Estado, Hugo de Carvalho estudou no Rio de Janeiro, formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais. Morreu jovem, aos 26 anos de idade, no dia 12 de maio de 1921. Mário de Andrade, num daqueles congressos de escritores, em 1942, reverenciou Tropas e Boiadas, única obra de Hugo, como leitura essencial para quem quisesse compreender o Brasil de dentro, o Brasil do Planalto Central, o Brasil que vive de costas para o mar.

Hugo de Carvalho e os nomes dos bois de meu avô, incógnitas que por esses dias duelam com a minha curiosidade, esgrimam com pensamentos seguindo fios de intuição, relampejos na memória, uma insistência querendo claridade, materialidade e entendimento. E a possibilidade de tocar o mundo nunca esteve tão fácil. Basta apenas um click. Abro a porteira do ciberespaço e com um click encontro no mundo virtual de tantas e confusas possibilidades as Tropas e Boiadas de Hugo de Carvalho Ramos, obra que este ano completou 70 anos e já é de domínio público. É uma obra referencial em matéria de regionalismo, muito citada em teses de mestrados e doutorados, mas pouco lida e estudada – penso eu.

Nas minhas pesquisas pela Internet encontrei apenas um livro de análise da obra, A Narrativa de Hugo de Carvalho Ramos, da professora Albertina Vicentini. Também encontrei alguns artigos. E o bom é que o exemplar de Tropas e Boiadas que comprei num sebo de Goiânia veio com um bônus: anotações de algum aplicado estudante que esmiuçou, didaticamente, a obra, destacando personagens, foco narrativo e os significados de expressões e nomes de coisas do universo trabalhoso dos tropeiros. Vislumbrei atrás deste estudante um professor mais aplicado ainda em montar um roteiro de leitura, desses que de tão enfadonho afastaria ao mais interessado dos leitores. E pior ainda, embarcando para o matadouro a imaginação do leitor e as possibilidades de interação emocional com a obra. Agradeço não ter sido embarcada naquele lote e hoje sonho a galopes com o encantado da narrativa de Hugo de Carvalho e escavo o meu desejo de penetrá-la nas camadas fundas.

Meio que esquecida da saga do meu avô, a escrita, a pintura e os personagens de Hugo têm mexido e remexido fundo. E me vem umas imagens, uns clarões no breu desse desejo de arqueologia. Estou raspando camadas, aguçando a escuta, guardando pistas, um punhado de palavras e imagens que sorrateiramente coloco sob as mangas, como cartas de um jogo. Embrenho-me pelo sertão pré-rosiano de Hugo e, impressionismo do meu olhar (talvez), escuto uma voz que quase assovia na varanda de Riobaldo - ilusionismo do escorregadio sertão, inda mais esse eivado de vestígios da memória.

E o sertão de Hugo de Carvalho arde como as queimadas na secura do cerradão, seguindo o rastilho inflamável do capim seco. Arde no meu desejo de compreender, mais do que decifrar. Difícil atravessar a cortina de silêncio sobre o homem Hugo de Carvalho, fato que talvez se explique pelo que teria de inexplicável um suicídio na província (Hugo enforcou-se com a escápula da rede em que costumava se deitar, segundo informação no prefácio da 6ª edição de Tropas e Boiadas, 1984, de Victor de Carvalho Ramos - irmão de Hugo -, texto datado de 1964). Notícia veiculada no jornal da província, segundo o irmão: morreu um bacharel. 

E a figura de Hugo de Carvalho destoa completamente daquele mundo do sertão que pinta viva e detalhadamente em Tropas e Boiadas. E nunca vi tanta ternura na pintura de um mundo de incomensuráveis brutalidades. Histórias que percorro na firmeza de sua escrita, histórias que ainda ouço de memória nas narrativas do meu avô, como parte de uma trama do inconsciente coletivo. Histórias que se arrastaram sertão goiano adentro, tempo afora, desde as Minas Gerais. A inocência daquelas maldades, as forças hermogêneas, as grandes e definitivas travessias.

Há leituras, como disse, que escavam a gente. Definitivamente, sei que vou cavalgar com Hugo, o escritor que recria em mim a força norteadora do meu avô no coração do Planalto Central, um homem que também domava destinos. Cavalgar com Hugo, soltando as rédeas, sem as amarras das teorias literárias - na minha curiosidade inicial o que encontrei me encheu de insatisfação. Uns enveredam pela linguagem, trilha natural, mas não é por aí que Hugo me pegou. É que dentro do academicismo de sua escrita foram abrindo-se ao sabor da minha leitura em disparada umas clareiras, umas belezas indomáveis, uns êxtases espontâneos, e uns diabinhos dançando no meu peito, entre picadas de borrachudos. 

E mais do que aquela cobra enrodilhada no peito daquele peão (personagem incidental em Gente da Gleba, uma novela onde entrevejo esboço e fôlego de um romance) que dormia profundo e sentia o peso dos diabinhos pulando na quentura do corpo largado ao sono no meio do mato à visão aflitiva da serpente. Aqueles suores, aqueles focos narrativos negaceando como uma cobra cega. E Expedito (Dito)? E aqui me calo, reservando-me para a proximidade visceral do seu sertão, do meu sertão, em que rumino a esperança de ouvir os nomes dos bois secretos de sua criação. 

Vou cavalgar com Hugo por muito, mas muito tempo mesmo. Isso é certo. Tudo nele me impressionou, principalmente o que intui nas fotografias. Aquela figura de dândi, pele alvíssima, delicadíssimas mãos, silêncios prolongados no ver e no dizer, mas que têm se aninhado no meu peito como aquela serpente insidiosa no corpo de uma das suas personagens que trilham o sertão do nosso imaginário. E uma interlocução assim a gente não despreza, ainda mais vinda do fundo do poço, daquele barro fecundo viajando na perenidade do tempo, atualizando no meu interesse um desejo de ver além do que já vi. Uma interlocução assim não há como desprezar. Tem mais é que ir em frente. A ponte: a escuta. O guia: a voz. E não sou mais eu que segue o rastro da boiada da criação de Hugo. É ela que me escava, acordando uma necessidade de ver.

E vi de relampejo tanta coisa que pede metódica releitura. Que pinturas na paisagem do sertão de Hugo de Carvalho, o sertão de dentro e de fora do homem! Em alguns momentos chego a entrar na pintura, tamanha pulsação de cores e contrastes. Enquanto o sertão ainda estava sendo desbravado ele levanta sua voz contra o rastro de destruição. Ali, naquelas preciosas páginas de Tropas e Boiadas, uma voz de ecologista integra-se naturalmente à paisagem que percorre sem o estardalhaço do panfleto. E em tantos trechos a minuciosa e poética descrição da paisagem feita por Hugo acariciam os nossos sentidos como uma pintura em movimento, beirando cinema, um relicário com força de documentário da fauna, flora e gente do cerrado. Nunca mais esquecer a ternura do olhar de Hugo. 

Ele faz um desvio profundo na trilha seguida por outros regionalistas que levavam o homem ao fundo do poço da degradação. Entendi lendo Hugo o que me desagradava tanto na literatura de Bernardo Élis, o nosso imortal. Era justamente esse olhar degradante, a falta de saídas, nenhuma zona de repouso, nenhuma ternura que resgatasse a nossa precária humanidade. Até hoje a lembrança da leitura do conto A Enxada de Bernardo Élis me provoca um desconforto estranho. 

Em Hugo, não. A crueza mais visceral nos aprisiona o olhar pela ternura. É um escritor que não precisa do conjunto da obra ou mesmo da fórmula de um livro fechado em seu conceito para nos convencer do seu valor literário. Basta a leitura do mínimo e profundo conto Ninho de Periquitos para nos seqüestrar irremediavelmente a admiração pelo escritor. Ali, o amor de um pai que não quer aborrecer o filho adolescente justo no dia do aniversário e que mesmo contrário a mexer no curso da natureza, profana um ninho de periquitos. E há tantos símbolos, tantos arquétipos, tantas camadas e trilhas a percorrer nessa única e definitiva obra de Hugo...

E ainda falando de ternura, assim como Riobaldo se encantava com o canto dos pássaros, Hugo também afinava os ouvidos da gente. Ah, e alguém que nessa trilha encantatória do sertão escreve os “joões-conguinhos”, definitivamente, já imprimiu a poesia do seu olhar. 

Imagem retirada da Internet: tropeiro

Manuel Bandeira - Poema


oceano.jpg
OCEANO



Olho a praia. A treva é densa.
Ulula o mar, que não vejo,
Naquela voz sem consolo,
Naquela tristeza imensa
Que há na voz do meu desejo.

E nesse tom sem consolo
Ouço a voz do meu destino:
Má sina que desconheço,
Vem vindo desde eu menino,
Cresce quanto em anos cresço.

- Voz de oceano que não vejo
Da praia do meu desejo...

Célio Pedreira - Poema


Igreja De Pedra/ Natividade- Tocantins
Igreja de Pedra-Natividade - Tocantins. Foto by Eduardo Calheiros Bigeli


NOTÍCIA PARA OS DIAS
Aproximação ao Dia da Consciência Negra


Algumas mudas de pedras plantadas
para dar moradia a monumentos
e regadas de ontem
nunca floram.

Ao meu lado andam
vivas flores e perenes
que tempo nenhum
piedade nenhuma
nem leia
prendem.

Habitam-me séculos delas.

Francisco Perna Filho - Poema


Humanus



O sapo
coaxa
solto,
não sabe do salto,
nem porque salta,
mas salta.
O homem
preso
berra;
solto,
erra.
Sabe de tudo:
do salto,
do sapo,
da vida.
Mesmo assim,
assalta,
mata,
não se ressente:
caterva.


Imagem retirada da Internet: sapo

Francisco Perna Filho - Poema



MAÇÃ


A maçã de Gregor Sansa,
maçã lírica de Bandeira,
maçã na geladeira,
em cima da mesa,
no café da manhã.
A maçã amarelada,
maçã verde
encarnada.
Maçã do rosto,
do desgosto,
da sabedoria,
de Adão e Eva.
Maçã de ouro,
Pomo da discórdia,
da imortalidade
no Jardim das Haspérides.
Maçã do Canto dos Cânticos,
da fecundidade divina.
Maçã metálica,
poética,
maçã da vida,
sintética.
Robótica,
virtual.
Maçã inspirada
de Jobs,
fotográfica,
de jornal.
Maçã mordida,
cortada,
comida,
abusada.
Maça científica
mágica,
espiritual.
Maçãs azuis
dos meus sonhos,
todo bem,
todo mal.



Imagem retirada da Internet: Maçã

Machado de Assis - Conto


UMA CARTA



Celestina acabando de almoçar, voltou à alcova, e, indo casualmente à cesta de costura, achou uma cartinha de papel bordado. Não tinha sobrescrito, mas estava aberta. Celestina, depois de hesitar um pouco, desdobrou-a e leu:

Meu anjo adorado,
Perdoe-me esta audácia, mas não posso mais resistir ao desejo de lhe abrir o meu coração e dizer que a adoro com todas as forças da minha alma. Mais de uma vez tenho passado pela rua, sem que a senhora me dê a esmola de um olhar, e há muito tempo que suspiro por lhe dizer isto e pedir-lhe que me faça o ente mais feliz do mundo. Se não me ama, como eu a amo, creia que morrerei de desgosto. Os seus olhos lindos como as estrelas do céu são para mim as luzes da existência, e os seus lábios, semelhantes às pétalas da rosa, têm toda a frescura de um jardim de Deus...

Não copio o resto; era longa a carta, e no mesmo estilo composto de trivialidade e imaginação. Apesar de longa, Celestina leu-a duas vezes, e, em alguns lugares, três e quatro; naturalmente eram os que falavam da beleza dela, dos olhos, dos lábios, dos cabelos, das mãos. Estas pegavam trêmulas na carta, tão comovida ficara a dona, tão assombrada de um tal achado. Quem poria ali a carta? Provavelmente, a escrava — a única escrava da casa, peitada pelo autor. E quem seria este? Celestina não tinha a menor lembrança que pudesse ligar ao autor da carta; mas, como ele dizia que ela mesma não lhe dera a esmola de um olhar, estava explicado o caso, e só restava agora reparar bem nos homens da rua;

Celestina foi ao espelho, e lançou um olhar complacente sobre si. Não era bonita, mas a carta deu-lhe uma alta idéia de suas graças. Contava então trinta e nove anos, parece mesmo que mais um; mas este ponto não está averiguado de modo que possa entrar na história. Era simples opinião da mãe; esta senhora, porém, contando sessenta e quatro anos, podia confundir as coisas. Em todo o caso, qualquer que fosse o exato número, a própria dona dos anos não os discutiu, e limitava-se a parecer bem. Não parecia mal, nem fazia má figura, todas as tardes, à janela.

Esquecia-me dizer que isto acontecia aqui mesmo, no Rio de Janeiro, entre 1860 e 1862. Celestina era filha de um antigo comerciante, que morreu pobre, tendo apenas feito para a família um pequeno pecúlio. Era dele que esta vivia e mais de algumas costuras para fora.

A idéia de casar entrou na cabeça de Celestina, desde os treze anos, e ali se conservou até os trinta e sete, pode ser mesmo que até os trinta e oito; mas ultimamente ela a perdera de todo, e só se enfeitava para não desafiar o destino. Solteirona e pobre, não contava que ninguém se enamorasse dela. Era boa e laboriosa, e isto podia compensar o resto; mas ainda assim não lhe dava esperanças.

Foi neste ponto da vida que Celestina deu com a carta na cesta de costura. Compreende-se o alvoroço do pobre coração. Afinal, recebia o prêmio da demora; aí aparecia um namorado, por seu próprio pé, sem ela dar por ele, e dispunha-se a fazê-la feliz.

Já vimos que ela atribuía à escrava da casa a intervenção naquele negócio, e o primeiro impulso foi ir ter com ela; mas recuou. Era difícil tratar diretamente um tal assunto, não estando nos seus quinze anos estouvados que tudo explicassem; era arriscar a autoridade. Mas, por outro lado, se se calasse, arriscava o namorado, que, não tendo resposta, poderia desesperar e ir embora. Celestina vacilou muito no que faria, até que resolveu consultar a irmã. A irmã, Joaninha, tinha vinte anos, e era pessoa de muita gravidade; podia dar-lhe um conselho.

— O quê? Não ouço.
— Queria consultar você sobre uma coisa.
— Que coisa? Você hoje está assim esquisita, tão alegre, e tão acanhada. Que é que você quer, Titina? Diga. Já adivinhei.
— O que é?
— É sobre aquele vestido da baronesa.
Celestina fez um gesto de desgosto, e ia negar, mas não conseguindo abrir-se com a irmã, preferiu mentir, e foi buscar o vestido. Na verdade, podia ser mãe dela, viu-a nascer, ajudou-a a criar. Nunca entre ambas trocaram nenhuma confidência de namoro; e não é que ambas os não tivessem tido. Mas as relações eram de respeito e discrição.

Não sabendo como sair da dificuldade, Celestina adotou um plano intermédio; procuraria primeiro descobrir a pessoa que lhe mandara a carta, e se a merecesse, como era de supor, à vista da linguagem da carta, abrir-se-ia com a escrava, e depois com a irmã. Nessa mesma tarde, ela foi mais cedo para a janela, e mais enfeitada, esteve menos distraída com outras coisas. Não tirou os olhos da rua, abaixo e acima; não apontava rapaz ao longe, que não o seguisse com curiosidade inquieta e esperançosa. Joaninha, ao pé dela, notava que a irmã não estava como de costume; e pode ser mesmo que lhe atribuísse algum princípio de namoro. A mãe é que não via nada. Sentada na outra janela (era uma casa assobradada), ora cochilava, ora perguntava às filhas quem era que ia passando.

— Celestina, aquele não é o dr. Norberto?
— Joaninha, parece que lá vai a família do Alvarenga.
Perto das ave-marias, viu Celestina surdir da esquina um rapaz, que, tão depressa entrara na rua, pôs os olhos na casa.

Passou pelo lado oposto, lento, evidentemente abalado, olhando ora para o chão, ora para a janela. Foi até o fim da rua, atravessou-a, e voltou pelo lado da casa. Já então era um pouco escuro, não tanto, porém, que encobrisse a gentileza do rapaz, que era positivamente um rapagão.

Celestina ficou realmente fora de si. A irmã não viu o que era, mas concluiu que alguém teria passado na rua, que enchera a alma de Celestina de uma vida desusada. Com efeito, durante a noite, esteve ela como nunca, alegre, e ao mesmo tempo pensativa, esquecendo-se de si e dos outros. Quase que não quis tomar chá, e só a muito custo se recolheu para dormir.

“Titina viu passarinho verde” pensou Joaninha ao deitar-se.

Celestina, recolhida ao quarto, meteu-se na cama, e releu a carta do rapaz, lentamente, saboreando as palavras de amor, e os elogios à beleza dela. Interrompia a leitura, para pensar nele, vê-lo surdir de uma esquina, ir pela rua fora do lado oposto, e tornar depois do lado dela. Via-lhe os olhos, o andar, a figura... Depois tornava à carta, e beijava-a muitas vezes, e numa delas, sentiu a pálpebra molhada. Não se vexou da lágrima; era das que se confessam. Quando cansou de ler a carta, meteu-a debaixo do travesseiro, e dispôs-se a dormir.

Mas qual dormir! Fechava os olhos, mas o sono andava pelas casas dos indiferentes, não queria nada com uma pessoa em quem as esperanças mortas reviviam com o vigor da adolescência. Celestina recorria a todos os estratagemas para dormir; mas o rapaz da carta fincava-lhe os olhos ardentes, e ia de um lado para outro; não tinha mais que contemplá-lo. Não era ele o namorado, o apaixonado, o noivo próximo? Que ela planeara tudo: no dia seguinte escreveria uma resposta ao rapaz, e dá-la-ia à escrava, para que a entregasse. Estava disposta a não perder tempo.

Era meia-noite, quando Celestina conseguiu adormecer; e antes o fizesse há mais tempo, porque sonhou ainda com o rapaz, e não perdeu nada.
Sonhou que ele tornara a passar, recebera a resposta e escrevera de novo. No fim de alguns dias, pediu-lhe autorização para solicitar a sua mão. Viu-se logo casada. Foi uma festa brilhante, concorrida, à qual todas as pessoas amigas foram, cerca de dezoito carros. Nada mais lindo que o vestido dela, de cetim branco, um ramalhete de flores de laranjeira, ao peito, algumas outras nos apanhados da saia. A grinalda era lindíssima. Toda a vizinhança nas janelas. Na rua gente, na igreja muita gente, e ela entrando por meio de alas, ao lado da madrinha... Quem seria a madrinha? D. Mariana Pinto ou a baronesa? A baronesa... A mãe talvez quisesse D. Mariana, mas a baronesa... Em sonhos mesmo discutiu isso, interrompendo a entrada triunfal no templo.

O padrinho do noiva era o próprio ministro da Justiça, que ia ao lado dele fardado, condecorado, brilhante, e que, no fim da cerimônia, veio cumprimentá-la com grande atenção. Celestina estava cheia de si, a mãe também, a irmã também, e ela prometia a esta um casamento igual.

— Daqui a três meses, você está também casada, dizia-lhe ao receber dela os parabéns.

Muitas rosas desfolhadas sobre ela. Eram caídas da tribuna. O noivo deu-lhe o braço, e ela saiu como se fosse entrando no céu. Os curiosos eram agora em maior número. Gente e mais gente. Chegam os carros; lacaios aprumados abrem as portinholas. Lá vai depois o cortejo devagar e brilhante, todos aqueles cavalos brancos pisando o chão com uma gravidade fidalga. E ela, ela, tão feliz! ao lado do noivo!

A fada branca dos sonhos continuou assim a fazer surdir do nada uma porção de coisas belas. Celestina descobriu, no fim de uma semana de casada, que o marido era príncipe. Celestina princesa! A prova é que aqui está um palácio, e todas as portas, louça, cadeiras, coches, tudo tem armas principescas, no escudo, uma águia ou leão, um animal qualquer, mas soberano.

— Vossa Alteza se quiser...
— Rogo a Vossa Alteza.
— Perdão, Alteza...

E tudo assim, até quase de manhã. Antes do sol acordou, esteve alguns minutos esperta, mas tornou a dormir para continuar o sonho, que então já não era de príncipe. O marido era um grande poeta, viviam ao pé de um lago, ao pôr-do-sol, cisnes nadando, um princípio da lua, e a felicidade entre eles. Foi esta a última fase do delírio.

Celestina acordou tarde; ergueu-se ainda com o sabor das coisas imaginadas, e o pensamento no namorado, noivo próximo. Embebida na imagem dele, foi às suas abluções matinais. A escrava entrou-lhe na alcova.

— Nhã Titina...
— Que é?
A preta hesitou.
— Fala, fala.
— Nhã Titina achou na sua cesta uma carta?
— Achei.
— Vosmecê me perdoe, mas a carta era para nhã Joaninha...

Celestina empalideceu. Quando a preta a deixou só, Celestina deixou cair uma lágrima — e foi a última que o amor lhe arrancou.

FIM de Uma carta

Publicado originalmente em A Estação 1884

Imagem retirada da Internet:carta

Alberto Moravia - Conto

Fotogravura: Sentada de punho cerrado -1938 - Germany - By Willy Zielke
A MARCA DA OPERAÇÃO 



Marco soergueu-se, sentando-se na cama, e olhou através da penumbra o dorso da mulher, ainda adormecida. Era um dorso branco, demasiado branco, de uma brancura gorda e clara, como frequentemente acontece com mulheres louras e maduras. Ela dormia recolhida em si própria; as costas encurvadas davam uma impressão ao mesmo tempo de vigor e de esforço, como se fossem uma mola tensa no limite da sua resistência. Mas tratava-se, pensou ele ainda, de um corpo vencido e abatido, cujo sono parecia significar queda e ruína.

Desceu cuidadosamente da cama e, tal como estava, com as calças e o tronco nu, caminhando na ponta dos pés descalços, passou para o estúdio, sala grande de tecto oblíquo e grandes janelas envidraçadas. Havia uma luz precisa, de céu encoberto; ele começou a examinar com uma atenção escrupulosa e profissional os três quadros, pousados em três cavaletes, que andava a pintar simultaneamente nos últimos dias. Representavam os três a mesma coisa: um torso de mulher cortado a meio da coxa e um pouco acima do busto. O ventre era proeminente, cheio, duro como um tambor; o púbis, húmido e oblongo, com a forma de uma ameixa, surgia dividido pela fenda cor de rosa de ciclamen do sexo, e, em dois dos quadros, completamente depilado. No terceiro quadro, pelo contrário, os pêlos tinham sido pintados um a um, negros, crespos e nítidos, contra a brancura clara e como que de celulóide da pele. Os três ventres exibiam, do lado esquerdo, a marca branca da operação do apêndice. O exame dos três quadros deixou-o descontente. Gostaria de mudar alguma coisa no habitual torso feminino que vinha a pintar, sempre igual, havia anos: juntara, por isso, os pêlos do púbis no terceiro quadro, mas o resultado era decepcionante: aqueles pêlos, tão negros e tão hirsutos, introduziam uma nota de realismo num quadro que deveria, em absoluto, nada ter de realista. Bruscamente, o homem pegou numa lâmina de barba, que lhe servia para afiar os lápis, e traçou as telas de alto a baixo, duas vezes, produzindo dois cortes entrecruzados. Quanto dinheiro perdera destruindo aquele quadro já terminado? Não conseguia calcular, porque ignorava a sua cotação mais recente no mercado. Atirou fora raivosamente a lâmina e dirigiu-se para a sala de estar.

Aqui, a janela; em vez de dar para as dunas, como as do estúdio, dava directamente para a praia. Viam-se alguns arbustos rijos e amarelos que se agitavam ao vento; e mais adiante, o mar que, sob um céu nebuloso, desenrolava fatigadamente ondas verdes e brancas. No horizonte, em contrapartida, o mar era de um azul retinto, configurado por linhas paralelas que avançavam e se desfaziam umas nas outras. Marco olhou durante um momento o mar, tamborilando com os dedos na vidraça; enquanto olhava, perguntava-se porque o faria; depois foi sentar-se no divã e pôs-se a fixar, sem impaciência, mas com determinação, a porta fechada que estava à sua frente. Não pensava em nada; esperava e sabia com absoluta certeza o que ia suceder. Com efeito, passado pouco tempo, com significativa pontualidade, a porta abriu-se lentamente e a rapariguinha apareceu no limiar.

Perguntou com cautela: "Onde está a mamã", e Marco não pôde deixar de pensar que se tratava exactamente da mesma pergunta que teria podido fazer uma mulher desejosa de ficar sozinha com o seu amante. E respondeu: "A mamã está ainda a dormir. O que é que queres dela"

A resposta foi, como de costume, evasiva e ambígua: "não quero que me veja a comer o bolo - resposta onde o bolo podia significar o doce ou, pelo contrário, alguma coisa proibida e igualmente tentadora. Olha-a enquanto ela se dirige a passo miúdo até ao fundo da sala, na direcção da prateleira onde a mãe costuma guardar a caixa com os bolos; puxa um banco, sobe-lhe para cima e estende o braço, erguendo-se na ponta dos pés. Nessa posição, o vestido muito curto levanta-se-lhe no ventre, descobrindo as pernas altas e musculadas, quase desproporcionadas em relação ao resto do corpo. Marco perguntava-se se a rapariguinha faria de propósito para lhe mostrar as pernas, mas permaneceu incerto: talvez não fizesse de propósito para lhas mostrar, mas fazia de propósito para não evitar mostrar-lhas. Finalmente, decidiu tratar-se de uma provocação inconsciente. Mas que não seria inconsciente numa miúda daquela idade?

Agora que conseguira agarrar a grande caixa redonda e segurá-la contra o peito, tirava-lhe a tampa. Obtido o bolo, coloca-o entre os dentes, fecha de novo a caixa e, voltando a pôr-se na ponta dos pés, descobrindo assim uma vez mais as pernas, procura deixá-la no seu lugar. Marco adverte, paternalmente: "Cuidado, podes cair." A miúda responde novamente, não sem ambiguidade: "tu é que estás a olhar para mim; se cair a culpa é tua."

Acaba de colocar a caixa na prateleira, desce com um pulo leve e, com o bolo nos dentes, arrasta o banco para junto da mesa. É só então que trinca um pedaço do bolo, enquanto, sem pressa, se vem sentar à frente de Marco, dizendo: "então, vamos jogar"

Marco finge não compreender e pergunta: "Jogar a quê?" "Vamos lá, sabes muito bem ao que é, não estejas a fingir. O jogo da montanha russa."

Marco responde: "primeiro acaba de comer o bolo." Gostava que ela fosse levada a dizer-lhe porque tinha tanta pressa: devia existir uma razão. Mas a rapariguinha responde evasivamente:

"O bolo, só o como depois do jogo. "
"Porque é que não o comes já, antes do jogo?"
"Porque a mamã pode entrar de um momento para o outro." "Mais uma razão para comeres já
o bolo, não?"

A miúda olhou-o, espantada: "Mas não vês que estás a ser mau? É o jogo que a mamã não quer que eu jogue." Marco sentiu-se surpreendido com o realismo da resposta. E, no entanto, não podia ter a certeza de que ela soubesse o que estava a dizer. Insistiu:
 "mas a mamã também não quer que tu roubes os bolos."
"A mamã nunca quer nada."
Marco compreende que não poderá ir ao fundo do problema do que a mulher quer e não quer, e diz com indiferença:
 "como quiseres; vamos então jogar."

Vê a miúda levantar-se prontamente, pousar o bolo em cima da mesa, vir ter com ele. Mas, de repente, Vê-la parada, como se a tivesse tomado uma dúvida:

 "Tu tens uma maneira de jogar que não é muito boa para mim."
"Que maneira?"
 "este jogo chama-se o jogo da montanha russa porque eu me deixo escorregar pelas tuas pernas até ao fundo. Se tivesses, por exemplo, pernas com cem metros de comprimento, estava bem. Mas tens as pernas curtas, como toda a gente, e ainda por cima, pões uma mão à frente para me fazeres parar antes de eu chegar ao fim? A minha descida acaba logo e adeus montanha russa!"

Era verdade: ela subia para os joelhos de Marco, ele levantava-os o mais que podia, depois, com um grito de alegria, deixava-se escorregar depressa pelas pernas dele, até que o seu púbis chocava com o púbis do padrasto. Ora, ao choque, que era inevitável e de certo modo involuntário, seguia-se um segundo contacto diferente, que, pelo contrário, sendo evitável, era voluntário; ele sentia com toda a nitidez que a rapariga, durante o embate, tentava e conseguia prender-lhe o sexo com o dela. Não podia haver a mínima dúvida: os lábios fechavam-se à maneira de uma ventosa, apertando o membro dele e retendo-o por um segundo; a retenção era confirmada pelas contracções imprevistas e simultâneas que assaltavam os músculos das coxas dela. Depois, a miúda desmontava dos seus joelhos, como um cavaleiro da sela e puxando o vestido para ter os movimentos mais livres, dizia entusiasmada: "outra vez" Ele aceitava e tudo se repetia sem a menor alteração: o grito de triunfo durante a descida ao longo das pernas de Marco, a preensão dos lábios do sexo dela sobre o membro dele, a contracção dos músculos das coxas. O jogo continuava, uma e outra vez; acabava apenas quando a rapariga se declarava "cansada". E parecia, de facto, cansada, com dois vincos escuros de fadiga por baixo dos olhos azuis, estreitos e traiçoeiros como duas seteiras. O jogo prolongara-se assim durante alguns dias. Passada a primeira perturbação, ele habituara-se e tê-lo-ia certamente interrompido se não tivesse sentido curiosidade acerca da consciência e intencionalidade do comportamento da garota. Aquele contacto final dos dois sexos seria inconsciente, ou seja, originado apenas por um instinto obscuro, ou, pelo contrário, resultado já de uma decisão de hábil sedução? Essa dúvida, nem ele sabia porquê, assumira durante dias uma natureza obsessiva. Por isso, repetira várias vezes o jogo, sempre na esperança de alcançar resposta, mas sem jamais conseguir a certeza absoluta. A miúda escapava-se-Lhe, com uma volubilidade inconsciente de borboleta que voa no preciso momento em que a mão a vai agarrar. Por fim, compreendera que não teria resposta enquanto com tácita intencionalidade, fingisse estar a jogar o jogo, e que, por outro lado, a pergunta não poderia ser formulada a não ser que o jogo desse lugar a uma relação directa e irremediável. Por isso, no dia anterior, resolvera renunciar definitivamente a uma investigação que ameaçava tornar cada vez mais obscura a matéria investigada, e, justamente no momento do habitual embate, interpusera a mão entre o seu ventre e o da rapariga. E eis que ela agora lhe punha um dilema novo: ou jogar como ela queria, com preensão do membro dele entre os lábios do seu sexo, ou não jogar "" de todo. Marco, terminando a sua reflexão, disse para ver o que Lhe diria ela: ":Mas o jogo, daqui em diante, eu quero jogá-lo exactamente assim, com a mão entre mim e ti." A miúda responde, porém, prontamente e com decisão, como uma prostituta que discute com um cliente: "então não jogo mais." Marco retorquiu num tom razoável: "Ponho a mão, porque se não a puser, quando chocas comigo, fazes-me doer" Ela torna-se imediatamente séria e comenta, com a ambiguidade de "' sempre, a justificação dele: a Doer? Deve ser cá uma dor!..." "São partes delicadas", disse Marco. "não sabes isso? É preciso cuidado." Com uma sinceridade brutal e imprevista, a miúda disse de repente: "a verdade é que não tens coragem." Marco pensou: cá está, já caiu, vai desmascarar-se. E perguntou suavemente: "Diz lá porque é que eu, na tua opinião, não tenho coragem" Viu-a hesitar um instante e responder, em seguida, num sarcasmo evasivo: "por não te deixares magoar nem um bocadinho nesse sítio tão frágil." ;' Cala-se por um momento e depois diz, em voz de falsete, como se o imitasse: "cuidado, podes magoar-me nas partes delicadas." Cala-se de novo e, a seguir, inesperadamente, lança-lhe na cara: "Sabes o que é que tu és afinal?" "O quê?" "Um maníaco sexual." Era um insulto, pensou Marco, e, para mais, proferido com intenção ofensiva; contudo, detectava na voz da rapariguinha não sabia que incerteza. Por isso, perguntou logo a seguir, em tom de persuasão: "e o que é que achas que é um maníaco sexual?" A garota olhou-o confusa; era claro que não sabia como responder. Marco disse, então, muito calmo: "Estás a ver? Não sabes o que dizes." "É o que a mamã está sempre a chamar-te, eu sei lá o que é. Mas se a mamã diz, é porque é verdade." Marco compreendeu que não havia nada a fazer: a miúda era mais forte do que ele, escapar-se-Lhe-ia sempre. Disse, num tom conciliatório: "Está bem, vamos fazer o jogo como tu queres. Mas é a última vez. Depois, não volto a jogar." "Bom, assim está bem", disse ela, satisfeita. "vais ver que não te magoo." Puxou o vestido e escarranchou-se-Lhe nos joelhos, levantando primeiro uma perna e a seguir a outra, sem pudor, mas igualmente sem ostentação. Uma vez montada, apoiou-se com os flancos e disse por fim: "Então, estás pronto?" Marco respondeu: "Vem." A miúda soltou um grito de triunfo e deixou-se escorregar ao longo das pernas dele. Durante a fracção de segundo que demorou a descida, Marco teve tempo para ver, desdobrado à sua frente, como que o panorama que se olha de uma torre: todo o seu futuro até à velhice, com a rapariguinha sua amante, que cresceria a seu lado e a seu lado se faria mulher, havendo entre eles, definitivamente e sem remédio, o que estava para suceder agora. Compreendia que a verdade que perseguia há tantos dias consistia numa adulação e numa tentação, ambas sem fim, tão ilimitadas como irrealizáveis. Sim, talvez a miúda quisesse somente o jogo; mas este consistia no facto de ele dever comportar-se como se não fosse um jogo. Estas reflexões, ou melhor, iluminações, decidiram-no. No momento exacto em que o ventre dela ia tocar o seu, Marco interpõe a mão de través. A rapariga desmontou imediatamente, gritando: "não vale, não vale. Não jogo mais contigo" "E com quem vais jogar agora?" "Com a mamã." Era assim que ela continuava a escapar-se-Lhe, precisamente quando parecia que a tinha agarrado. Comentou com despeito: "Joga com quem te apetecer." "Pois jogo, mas tu és um medroso." "Porque tenho medo que tu me magoes, não é? Pois claro, é isso mesmo, tenho medo. E depois?"
Mas ela estava já a pensar noutra coisa. Disse bruscamente: "vamos jogar outro jogo."
"Que jogo?"

Vou esconder-me e tu vais à minha procura. Enquanto eu me escondo, tens que tapar os olhos com as mãos e não podes tirá-las da cara antes de eu te dizer." Marco respondeu com alívio: "Está bem, vamos jogar esse jogo." A garota afasta-se a correr gritando: "Vou-me esconder; não olhes!", e ele, pondo as duas mãos na cara, a tapar os olhos, fica à espera. Passou um lapso de tempo indefinível; tanto poderia ter sido um segundo como um minuto; depois, sentiu de repente dois lábios que Lhe tocavam a boca e um hálito leve que se misturava ao seu. Depois, enquanto mantinha ainda as mãos por cima dos olhos, os lábios começaram a roçar lentamente os dele, indo e voltando de modo gradual e calculado da direita para a esquerda e vice-versa, cada vez mais húmidos e abertos à medida que se iam deslocando. Ele pensou que daquela vez não podia haver dúvida: a miúda era um monstro de sensualidade precoce e perversa, e o envolvimento directo com ela parecia doravante tão ilegítimo como inevitável. Entretanto, os lábios iam e vinham, e agora a língua atacava-Lhe a boca como se procurasse uma passagem. Depois, eis que a língua abre facilmente passagem entre os seus dentes, penetrando inteira no interior da boca de Marco, cheia e aguçada, enquanto ele estende os braços para diante, mantendo os olhos fechados. E então sente nas suas mãos já não os ombros frágeis da rapariguita, mas as espáduas fartas e maciças da sua mulher. Abre os olhos, lançando-se para trás com vivacidade: a mulher estava de pé à sua frente, com o roupão aberto; o ventre saía de entre as pregas do tecido, um ventre em tudo semelhante ao que ele costumava pintar nos seus quadros: branco, túmido, duro, com o púbis depilado e a marca branca da operação do apêndice ao lado esquerdo. Marco ergueu os olhos e olhou para ' cima. Do alto, a mulher inclinava-se para ele, com um ar de benevolência, " uma fronte inchada de Apolo, cabelos louros e pendentes, nariz grande, boca murcha e caprichosa. Passado um momento de silêncio, interrogou-o com uma ponta de severidade: "que estavas a fazer com as duas mãos a tapar os olhos?"
"estava a jogar com a pequena" "Tinhas uma estranha expressão no rosto e foi isso que me fez vir aqui dar-te um beijo. Fiz mal" "Pelo contrário", disse Marco. Estende os braços e mergulha o seu rosto no ventre dela, beijando-a à altura do umbigo, com uma violência aplicada. Sente a mão da mulher na sua testa, que o acaricia docemente, e então afasta-se um pouco e recua. Ela fecha o roupão e pergunta: aOnde está ela?" Marco responde: "não sei ao certo. Foi esconder-se e eu tenho que ver É se a descubro." Quase no mesmo momento, um grito frouxo e distante, ressoou no apartamento. Marco fez menção de se levantar. Mas a mulher deteve-o: "Deixa-a estar onde está. O que é que vocês estavam a fazer há bocado? O jogo da montanha russa, não?"
Marco fica espantado: "como é que sabes?"
"Ouvía-vos, estava ali atrás da porta. Ora, fazes o favor, tens que prometer-me que não voltas
a fazer com ela esse jogo"
"Mas porquê?"
"Porque no jogo acontece inevitavelmente um certo contacto físico. Sabes o que é que a pequena me disse?" "Que foi?" "Disse-me: "Ele quer estar sempre a jogar à montanha russa. Eu não quero, porque ele toca-me quando jogamos. Mas o Marco insiste e eu depois aceito para lhe fazer a vontade., Marco esteve à beira de exclamar: "Mas que mentirosa?"; acabou, no entanto, por se conter, pensando que a mulher não acreditaria nele. Disse, por fim, zangado, apesar de não querer parecê-lo: "Está descansada, não volto a jogar nem esse nem nenhum outro jogo com ela." "Porquê? Devias jogar com ela outros jogos. Ela não tem pai. Tu devias ser um pai para ela." Marco respondeu, já controlado: "Tens razão, farei as vezes de pai." A mulher disse então, de súbito, pousando-lhe a mão nos cabelos: "Sabes que aquele beijo me deu vontade de fazer amor? Há já muito tempo que não me beijavas dessa maneira. Queres vir?" Ele pensou que não havia modo de furtar-se a semelhante convite. Disse: "sim." Ela pegou-Lhe na mão e guiou-o através da sala, em direcção à porta; daí, passou ao corredor escuro, introduzindo-o por fim no quarto, merguLhando na penumbra. Lá dentro, desfez-se do roupão, lançou-se de costas na cama desfeita, abriu sem delongas as pernas e esperou assim, com as pernas dobradas e abertas, que ele despisse as calças. Marco, entretanto, dizia para consigo que devia simular o ardor de um desejo que não sentia ou que, pelo menos, não sentia por ela; lançou-se com violência entre aquelas pernas, tão cheias e tão brancas. De repente, eis que a voz estridente da miúda rebentou muito próxima, dentro do quarto: "não me achaste, não me achaste" A mulher desembaraça-se com força de Marco, ergue-se toda nua, saindo da cama, e foge do quarto. Marco acendeu a luz e olhou para o canto de onde ouvira sair o grito. Havia um biombo; a miúda saiu de trás dele, imprevistamente, gritando: "Cucu!"
Marco perguntou: "mas onde é que tu estavas?"
" Aqui atrás. "
"E... que é que viste?"
"O que é que eu havia de ver! Nada, estava atrás do biombo." Ele fitou-a, inseguro. Depois, disse bruscamente: "Bem, vamos embora; anda, daqui para fora, a mamã ainda não se vestiu." Pegou-Lhe na mão, enquanto ela se deixava guiar suavemente para fora do quarto, através do corredor, até ao estúdio. Marco fecha a porta, aproxima-se do quadro que cortara com a lâmina. A miúda exclamou: "Olha, alguém te rasgou o quadro!" Marco disse com secura: "fui eu.
"E porquê?" " Porque não gostava dele." Então, ela disse, logo de seguida: "Porque é que não me fazes um retrato como fazes à mamã?
Marco respondeu: "não faço retratos. Isto pode ser o corpo de uma mulher qualquer.
A miúda indicou, apesar destas palavras, o quadro em frente: "mas a mamã tem uma ferida na
barriga, tal e qual como esta mulher. Já não gostas de fazer o retrato da mamã? Se já não gostas, porque não queres fazer o meu"
Ficou um momento calada; depois acrescentou: "eu também tenho essa ferida."
Marco sentiu-se tocado: como o esquecera?
Fora havia um ano; enquanto ele estava no estrangeiro, a miúda fora operada ao apêndice. Acabou por dizer, com esforço: Eu sei que tens." Loquaz, ela retorquiu de pronto: Quando me fizeram a operação, eu disse à mamã: agora já tenho uma ferida como tu. Então, não me fazes o retrato?


Fonte: scribd. In.Alberto Moravia Contos-Eroticos

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