Célio Pedreira - Poema


Igreja De Pedra/ Natividade- Tocantins
Igreja de Pedra-Natividade - Tocantins. Foto by Eduardo Calheiros Bigeli


NOTÍCIA PARA OS DIAS
Aproximação ao Dia da Consciência Negra


Algumas mudas de pedras plantadas
para dar moradia a monumentos
e regadas de ontem
nunca floram.

Ao meu lado andam
vivas flores e perenes
que tempo nenhum
piedade nenhuma
nem leia
prendem.

Habitam-me séculos delas.

Francisco Perna Filho - Poema


Humanus



O sapo
coaxa
solto,
não sabe do salto,
nem porque salta,
mas salta.
O homem
preso
berra;
solto,
erra.
Sabe de tudo:
do salto,
do sapo,
da vida.
Mesmo assim,
assalta,
mata,
não se ressente:
caterva.


Imagem retirada da Internet: sapo

Francisco Perna Filho - Poema



MAÇÃ


A maçã de Gregor Sansa,
maçã lírica de Bandeira,
maçã na geladeira,
em cima da mesa,
no café da manhã.
A maçã amarelada,
maçã verde
encarnada.
Maçã do rosto,
do desgosto,
da sabedoria,
de Adão e Eva.
Maçã de ouro,
Pomo da discórdia,
da imortalidade
no Jardim das Haspérides.
Maçã do Canto dos Cânticos,
da fecundidade divina.
Maçã metálica,
poética,
maçã da vida,
sintética.
Robótica,
virtual.
Maçã inspirada
de Jobs,
fotográfica,
de jornal.
Maçã mordida,
cortada,
comida,
abusada.
Maça científica
mágica,
espiritual.
Maçãs azuis
dos meus sonhos,
todo bem,
todo mal.



Imagem retirada da Internet: Maçã

Machado de Assis - Conto


UMA CARTA



Celestina acabando de almoçar, voltou à alcova, e, indo casualmente à cesta de costura, achou uma cartinha de papel bordado. Não tinha sobrescrito, mas estava aberta. Celestina, depois de hesitar um pouco, desdobrou-a e leu:

Meu anjo adorado,
Perdoe-me esta audácia, mas não posso mais resistir ao desejo de lhe abrir o meu coração e dizer que a adoro com todas as forças da minha alma. Mais de uma vez tenho passado pela rua, sem que a senhora me dê a esmola de um olhar, e há muito tempo que suspiro por lhe dizer isto e pedir-lhe que me faça o ente mais feliz do mundo. Se não me ama, como eu a amo, creia que morrerei de desgosto. Os seus olhos lindos como as estrelas do céu são para mim as luzes da existência, e os seus lábios, semelhantes às pétalas da rosa, têm toda a frescura de um jardim de Deus...

Não copio o resto; era longa a carta, e no mesmo estilo composto de trivialidade e imaginação. Apesar de longa, Celestina leu-a duas vezes, e, em alguns lugares, três e quatro; naturalmente eram os que falavam da beleza dela, dos olhos, dos lábios, dos cabelos, das mãos. Estas pegavam trêmulas na carta, tão comovida ficara a dona, tão assombrada de um tal achado. Quem poria ali a carta? Provavelmente, a escrava — a única escrava da casa, peitada pelo autor. E quem seria este? Celestina não tinha a menor lembrança que pudesse ligar ao autor da carta; mas, como ele dizia que ela mesma não lhe dera a esmola de um olhar, estava explicado o caso, e só restava agora reparar bem nos homens da rua;

Celestina foi ao espelho, e lançou um olhar complacente sobre si. Não era bonita, mas a carta deu-lhe uma alta idéia de suas graças. Contava então trinta e nove anos, parece mesmo que mais um; mas este ponto não está averiguado de modo que possa entrar na história. Era simples opinião da mãe; esta senhora, porém, contando sessenta e quatro anos, podia confundir as coisas. Em todo o caso, qualquer que fosse o exato número, a própria dona dos anos não os discutiu, e limitava-se a parecer bem. Não parecia mal, nem fazia má figura, todas as tardes, à janela.

Esquecia-me dizer que isto acontecia aqui mesmo, no Rio de Janeiro, entre 1860 e 1862. Celestina era filha de um antigo comerciante, que morreu pobre, tendo apenas feito para a família um pequeno pecúlio. Era dele que esta vivia e mais de algumas costuras para fora.

A idéia de casar entrou na cabeça de Celestina, desde os treze anos, e ali se conservou até os trinta e sete, pode ser mesmo que até os trinta e oito; mas ultimamente ela a perdera de todo, e só se enfeitava para não desafiar o destino. Solteirona e pobre, não contava que ninguém se enamorasse dela. Era boa e laboriosa, e isto podia compensar o resto; mas ainda assim não lhe dava esperanças.

Foi neste ponto da vida que Celestina deu com a carta na cesta de costura. Compreende-se o alvoroço do pobre coração. Afinal, recebia o prêmio da demora; aí aparecia um namorado, por seu próprio pé, sem ela dar por ele, e dispunha-se a fazê-la feliz.

Já vimos que ela atribuía à escrava da casa a intervenção naquele negócio, e o primeiro impulso foi ir ter com ela; mas recuou. Era difícil tratar diretamente um tal assunto, não estando nos seus quinze anos estouvados que tudo explicassem; era arriscar a autoridade. Mas, por outro lado, se se calasse, arriscava o namorado, que, não tendo resposta, poderia desesperar e ir embora. Celestina vacilou muito no que faria, até que resolveu consultar a irmã. A irmã, Joaninha, tinha vinte anos, e era pessoa de muita gravidade; podia dar-lhe um conselho.

— O quê? Não ouço.
— Queria consultar você sobre uma coisa.
— Que coisa? Você hoje está assim esquisita, tão alegre, e tão acanhada. Que é que você quer, Titina? Diga. Já adivinhei.
— O que é?
— É sobre aquele vestido da baronesa.
Celestina fez um gesto de desgosto, e ia negar, mas não conseguindo abrir-se com a irmã, preferiu mentir, e foi buscar o vestido. Na verdade, podia ser mãe dela, viu-a nascer, ajudou-a a criar. Nunca entre ambas trocaram nenhuma confidência de namoro; e não é que ambas os não tivessem tido. Mas as relações eram de respeito e discrição.

Não sabendo como sair da dificuldade, Celestina adotou um plano intermédio; procuraria primeiro descobrir a pessoa que lhe mandara a carta, e se a merecesse, como era de supor, à vista da linguagem da carta, abrir-se-ia com a escrava, e depois com a irmã. Nessa mesma tarde, ela foi mais cedo para a janela, e mais enfeitada, esteve menos distraída com outras coisas. Não tirou os olhos da rua, abaixo e acima; não apontava rapaz ao longe, que não o seguisse com curiosidade inquieta e esperançosa. Joaninha, ao pé dela, notava que a irmã não estava como de costume; e pode ser mesmo que lhe atribuísse algum princípio de namoro. A mãe é que não via nada. Sentada na outra janela (era uma casa assobradada), ora cochilava, ora perguntava às filhas quem era que ia passando.

— Celestina, aquele não é o dr. Norberto?
— Joaninha, parece que lá vai a família do Alvarenga.
Perto das ave-marias, viu Celestina surdir da esquina um rapaz, que, tão depressa entrara na rua, pôs os olhos na casa.

Passou pelo lado oposto, lento, evidentemente abalado, olhando ora para o chão, ora para a janela. Foi até o fim da rua, atravessou-a, e voltou pelo lado da casa. Já então era um pouco escuro, não tanto, porém, que encobrisse a gentileza do rapaz, que era positivamente um rapagão.

Celestina ficou realmente fora de si. A irmã não viu o que era, mas concluiu que alguém teria passado na rua, que enchera a alma de Celestina de uma vida desusada. Com efeito, durante a noite, esteve ela como nunca, alegre, e ao mesmo tempo pensativa, esquecendo-se de si e dos outros. Quase que não quis tomar chá, e só a muito custo se recolheu para dormir.

“Titina viu passarinho verde” pensou Joaninha ao deitar-se.

Celestina, recolhida ao quarto, meteu-se na cama, e releu a carta do rapaz, lentamente, saboreando as palavras de amor, e os elogios à beleza dela. Interrompia a leitura, para pensar nele, vê-lo surdir de uma esquina, ir pela rua fora do lado oposto, e tornar depois do lado dela. Via-lhe os olhos, o andar, a figura... Depois tornava à carta, e beijava-a muitas vezes, e numa delas, sentiu a pálpebra molhada. Não se vexou da lágrima; era das que se confessam. Quando cansou de ler a carta, meteu-a debaixo do travesseiro, e dispôs-se a dormir.

Mas qual dormir! Fechava os olhos, mas o sono andava pelas casas dos indiferentes, não queria nada com uma pessoa em quem as esperanças mortas reviviam com o vigor da adolescência. Celestina recorria a todos os estratagemas para dormir; mas o rapaz da carta fincava-lhe os olhos ardentes, e ia de um lado para outro; não tinha mais que contemplá-lo. Não era ele o namorado, o apaixonado, o noivo próximo? Que ela planeara tudo: no dia seguinte escreveria uma resposta ao rapaz, e dá-la-ia à escrava, para que a entregasse. Estava disposta a não perder tempo.

Era meia-noite, quando Celestina conseguiu adormecer; e antes o fizesse há mais tempo, porque sonhou ainda com o rapaz, e não perdeu nada.
Sonhou que ele tornara a passar, recebera a resposta e escrevera de novo. No fim de alguns dias, pediu-lhe autorização para solicitar a sua mão. Viu-se logo casada. Foi uma festa brilhante, concorrida, à qual todas as pessoas amigas foram, cerca de dezoito carros. Nada mais lindo que o vestido dela, de cetim branco, um ramalhete de flores de laranjeira, ao peito, algumas outras nos apanhados da saia. A grinalda era lindíssima. Toda a vizinhança nas janelas. Na rua gente, na igreja muita gente, e ela entrando por meio de alas, ao lado da madrinha... Quem seria a madrinha? D. Mariana Pinto ou a baronesa? A baronesa... A mãe talvez quisesse D. Mariana, mas a baronesa... Em sonhos mesmo discutiu isso, interrompendo a entrada triunfal no templo.

O padrinho do noiva era o próprio ministro da Justiça, que ia ao lado dele fardado, condecorado, brilhante, e que, no fim da cerimônia, veio cumprimentá-la com grande atenção. Celestina estava cheia de si, a mãe também, a irmã também, e ela prometia a esta um casamento igual.

— Daqui a três meses, você está também casada, dizia-lhe ao receber dela os parabéns.

Muitas rosas desfolhadas sobre ela. Eram caídas da tribuna. O noivo deu-lhe o braço, e ela saiu como se fosse entrando no céu. Os curiosos eram agora em maior número. Gente e mais gente. Chegam os carros; lacaios aprumados abrem as portinholas. Lá vai depois o cortejo devagar e brilhante, todos aqueles cavalos brancos pisando o chão com uma gravidade fidalga. E ela, ela, tão feliz! ao lado do noivo!

A fada branca dos sonhos continuou assim a fazer surdir do nada uma porção de coisas belas. Celestina descobriu, no fim de uma semana de casada, que o marido era príncipe. Celestina princesa! A prova é que aqui está um palácio, e todas as portas, louça, cadeiras, coches, tudo tem armas principescas, no escudo, uma águia ou leão, um animal qualquer, mas soberano.

— Vossa Alteza se quiser...
— Rogo a Vossa Alteza.
— Perdão, Alteza...

E tudo assim, até quase de manhã. Antes do sol acordou, esteve alguns minutos esperta, mas tornou a dormir para continuar o sonho, que então já não era de príncipe. O marido era um grande poeta, viviam ao pé de um lago, ao pôr-do-sol, cisnes nadando, um princípio da lua, e a felicidade entre eles. Foi esta a última fase do delírio.

Celestina acordou tarde; ergueu-se ainda com o sabor das coisas imaginadas, e o pensamento no namorado, noivo próximo. Embebida na imagem dele, foi às suas abluções matinais. A escrava entrou-lhe na alcova.

— Nhã Titina...
— Que é?
A preta hesitou.
— Fala, fala.
— Nhã Titina achou na sua cesta uma carta?
— Achei.
— Vosmecê me perdoe, mas a carta era para nhã Joaninha...

Celestina empalideceu. Quando a preta a deixou só, Celestina deixou cair uma lágrima — e foi a última que o amor lhe arrancou.

FIM de Uma carta

Publicado originalmente em A Estação 1884

Imagem retirada da Internet:carta

Alberto Moravia - Conto

Fotogravura: Sentada de punho cerrado -1938 - Germany - By Willy Zielke
A MARCA DA OPERAÇÃO 



Marco soergueu-se, sentando-se na cama, e olhou através da penumbra o dorso da mulher, ainda adormecida. Era um dorso branco, demasiado branco, de uma brancura gorda e clara, como frequentemente acontece com mulheres louras e maduras. Ela dormia recolhida em si própria; as costas encurvadas davam uma impressão ao mesmo tempo de vigor e de esforço, como se fossem uma mola tensa no limite da sua resistência. Mas tratava-se, pensou ele ainda, de um corpo vencido e abatido, cujo sono parecia significar queda e ruína.

Desceu cuidadosamente da cama e, tal como estava, com as calças e o tronco nu, caminhando na ponta dos pés descalços, passou para o estúdio, sala grande de tecto oblíquo e grandes janelas envidraçadas. Havia uma luz precisa, de céu encoberto; ele começou a examinar com uma atenção escrupulosa e profissional os três quadros, pousados em três cavaletes, que andava a pintar simultaneamente nos últimos dias. Representavam os três a mesma coisa: um torso de mulher cortado a meio da coxa e um pouco acima do busto. O ventre era proeminente, cheio, duro como um tambor; o púbis, húmido e oblongo, com a forma de uma ameixa, surgia dividido pela fenda cor de rosa de ciclamen do sexo, e, em dois dos quadros, completamente depilado. No terceiro quadro, pelo contrário, os pêlos tinham sido pintados um a um, negros, crespos e nítidos, contra a brancura clara e como que de celulóide da pele. Os três ventres exibiam, do lado esquerdo, a marca branca da operação do apêndice. O exame dos três quadros deixou-o descontente. Gostaria de mudar alguma coisa no habitual torso feminino que vinha a pintar, sempre igual, havia anos: juntara, por isso, os pêlos do púbis no terceiro quadro, mas o resultado era decepcionante: aqueles pêlos, tão negros e tão hirsutos, introduziam uma nota de realismo num quadro que deveria, em absoluto, nada ter de realista. Bruscamente, o homem pegou numa lâmina de barba, que lhe servia para afiar os lápis, e traçou as telas de alto a baixo, duas vezes, produzindo dois cortes entrecruzados. Quanto dinheiro perdera destruindo aquele quadro já terminado? Não conseguia calcular, porque ignorava a sua cotação mais recente no mercado. Atirou fora raivosamente a lâmina e dirigiu-se para a sala de estar.

Aqui, a janela; em vez de dar para as dunas, como as do estúdio, dava directamente para a praia. Viam-se alguns arbustos rijos e amarelos que se agitavam ao vento; e mais adiante, o mar que, sob um céu nebuloso, desenrolava fatigadamente ondas verdes e brancas. No horizonte, em contrapartida, o mar era de um azul retinto, configurado por linhas paralelas que avançavam e se desfaziam umas nas outras. Marco olhou durante um momento o mar, tamborilando com os dedos na vidraça; enquanto olhava, perguntava-se porque o faria; depois foi sentar-se no divã e pôs-se a fixar, sem impaciência, mas com determinação, a porta fechada que estava à sua frente. Não pensava em nada; esperava e sabia com absoluta certeza o que ia suceder. Com efeito, passado pouco tempo, com significativa pontualidade, a porta abriu-se lentamente e a rapariguinha apareceu no limiar.

Perguntou com cautela: "Onde está a mamã", e Marco não pôde deixar de pensar que se tratava exactamente da mesma pergunta que teria podido fazer uma mulher desejosa de ficar sozinha com o seu amante. E respondeu: "A mamã está ainda a dormir. O que é que queres dela"

A resposta foi, como de costume, evasiva e ambígua: "não quero que me veja a comer o bolo - resposta onde o bolo podia significar o doce ou, pelo contrário, alguma coisa proibida e igualmente tentadora. Olha-a enquanto ela se dirige a passo miúdo até ao fundo da sala, na direcção da prateleira onde a mãe costuma guardar a caixa com os bolos; puxa um banco, sobe-lhe para cima e estende o braço, erguendo-se na ponta dos pés. Nessa posição, o vestido muito curto levanta-se-lhe no ventre, descobrindo as pernas altas e musculadas, quase desproporcionadas em relação ao resto do corpo. Marco perguntava-se se a rapariguinha faria de propósito para lhe mostrar as pernas, mas permaneceu incerto: talvez não fizesse de propósito para lhas mostrar, mas fazia de propósito para não evitar mostrar-lhas. Finalmente, decidiu tratar-se de uma provocação inconsciente. Mas que não seria inconsciente numa miúda daquela idade?

Agora que conseguira agarrar a grande caixa redonda e segurá-la contra o peito, tirava-lhe a tampa. Obtido o bolo, coloca-o entre os dentes, fecha de novo a caixa e, voltando a pôr-se na ponta dos pés, descobrindo assim uma vez mais as pernas, procura deixá-la no seu lugar. Marco adverte, paternalmente: "Cuidado, podes cair." A miúda responde novamente, não sem ambiguidade: "tu é que estás a olhar para mim; se cair a culpa é tua."

Acaba de colocar a caixa na prateleira, desce com um pulo leve e, com o bolo nos dentes, arrasta o banco para junto da mesa. É só então que trinca um pedaço do bolo, enquanto, sem pressa, se vem sentar à frente de Marco, dizendo: "então, vamos jogar"

Marco finge não compreender e pergunta: "Jogar a quê?" "Vamos lá, sabes muito bem ao que é, não estejas a fingir. O jogo da montanha russa."

Marco responde: "primeiro acaba de comer o bolo." Gostava que ela fosse levada a dizer-lhe porque tinha tanta pressa: devia existir uma razão. Mas a rapariguinha responde evasivamente:

"O bolo, só o como depois do jogo. "
"Porque é que não o comes já, antes do jogo?"
"Porque a mamã pode entrar de um momento para o outro." "Mais uma razão para comeres já
o bolo, não?"

A miúda olhou-o, espantada: "Mas não vês que estás a ser mau? É o jogo que a mamã não quer que eu jogue." Marco sentiu-se surpreendido com o realismo da resposta. E, no entanto, não podia ter a certeza de que ela soubesse o que estava a dizer. Insistiu:
 "mas a mamã também não quer que tu roubes os bolos."
"A mamã nunca quer nada."
Marco compreende que não poderá ir ao fundo do problema do que a mulher quer e não quer, e diz com indiferença:
 "como quiseres; vamos então jogar."

Vê a miúda levantar-se prontamente, pousar o bolo em cima da mesa, vir ter com ele. Mas, de repente, Vê-la parada, como se a tivesse tomado uma dúvida:

 "Tu tens uma maneira de jogar que não é muito boa para mim."
"Que maneira?"
 "este jogo chama-se o jogo da montanha russa porque eu me deixo escorregar pelas tuas pernas até ao fundo. Se tivesses, por exemplo, pernas com cem metros de comprimento, estava bem. Mas tens as pernas curtas, como toda a gente, e ainda por cima, pões uma mão à frente para me fazeres parar antes de eu chegar ao fim? A minha descida acaba logo e adeus montanha russa!"

Era verdade: ela subia para os joelhos de Marco, ele levantava-os o mais que podia, depois, com um grito de alegria, deixava-se escorregar depressa pelas pernas dele, até que o seu púbis chocava com o púbis do padrasto. Ora, ao choque, que era inevitável e de certo modo involuntário, seguia-se um segundo contacto diferente, que, pelo contrário, sendo evitável, era voluntário; ele sentia com toda a nitidez que a rapariga, durante o embate, tentava e conseguia prender-lhe o sexo com o dela. Não podia haver a mínima dúvida: os lábios fechavam-se à maneira de uma ventosa, apertando o membro dele e retendo-o por um segundo; a retenção era confirmada pelas contracções imprevistas e simultâneas que assaltavam os músculos das coxas dela. Depois, a miúda desmontava dos seus joelhos, como um cavaleiro da sela e puxando o vestido para ter os movimentos mais livres, dizia entusiasmada: "outra vez" Ele aceitava e tudo se repetia sem a menor alteração: o grito de triunfo durante a descida ao longo das pernas de Marco, a preensão dos lábios do sexo dela sobre o membro dele, a contracção dos músculos das coxas. O jogo continuava, uma e outra vez; acabava apenas quando a rapariga se declarava "cansada". E parecia, de facto, cansada, com dois vincos escuros de fadiga por baixo dos olhos azuis, estreitos e traiçoeiros como duas seteiras. O jogo prolongara-se assim durante alguns dias. Passada a primeira perturbação, ele habituara-se e tê-lo-ia certamente interrompido se não tivesse sentido curiosidade acerca da consciência e intencionalidade do comportamento da garota. Aquele contacto final dos dois sexos seria inconsciente, ou seja, originado apenas por um instinto obscuro, ou, pelo contrário, resultado já de uma decisão de hábil sedução? Essa dúvida, nem ele sabia porquê, assumira durante dias uma natureza obsessiva. Por isso, repetira várias vezes o jogo, sempre na esperança de alcançar resposta, mas sem jamais conseguir a certeza absoluta. A miúda escapava-se-Lhe, com uma volubilidade inconsciente de borboleta que voa no preciso momento em que a mão a vai agarrar. Por fim, compreendera que não teria resposta enquanto com tácita intencionalidade, fingisse estar a jogar o jogo, e que, por outro lado, a pergunta não poderia ser formulada a não ser que o jogo desse lugar a uma relação directa e irremediável. Por isso, no dia anterior, resolvera renunciar definitivamente a uma investigação que ameaçava tornar cada vez mais obscura a matéria investigada, e, justamente no momento do habitual embate, interpusera a mão entre o seu ventre e o da rapariga. E eis que ela agora lhe punha um dilema novo: ou jogar como ela queria, com preensão do membro dele entre os lábios do seu sexo, ou não jogar "" de todo. Marco, terminando a sua reflexão, disse para ver o que Lhe diria ela: ":Mas o jogo, daqui em diante, eu quero jogá-lo exactamente assim, com a mão entre mim e ti." A miúda responde, porém, prontamente e com decisão, como uma prostituta que discute com um cliente: "então não jogo mais." Marco retorquiu num tom razoável: "Ponho a mão, porque se não a puser, quando chocas comigo, fazes-me doer" Ela torna-se imediatamente séria e comenta, com a ambiguidade de "' sempre, a justificação dele: a Doer? Deve ser cá uma dor!..." "São partes delicadas", disse Marco. "não sabes isso? É preciso cuidado." Com uma sinceridade brutal e imprevista, a miúda disse de repente: "a verdade é que não tens coragem." Marco pensou: cá está, já caiu, vai desmascarar-se. E perguntou suavemente: "Diz lá porque é que eu, na tua opinião, não tenho coragem" Viu-a hesitar um instante e responder, em seguida, num sarcasmo evasivo: "por não te deixares magoar nem um bocadinho nesse sítio tão frágil." ;' Cala-se por um momento e depois diz, em voz de falsete, como se o imitasse: "cuidado, podes magoar-me nas partes delicadas." Cala-se de novo e, a seguir, inesperadamente, lança-lhe na cara: "Sabes o que é que tu és afinal?" "O quê?" "Um maníaco sexual." Era um insulto, pensou Marco, e, para mais, proferido com intenção ofensiva; contudo, detectava na voz da rapariguinha não sabia que incerteza. Por isso, perguntou logo a seguir, em tom de persuasão: "e o que é que achas que é um maníaco sexual?" A garota olhou-o confusa; era claro que não sabia como responder. Marco disse, então, muito calmo: "Estás a ver? Não sabes o que dizes." "É o que a mamã está sempre a chamar-te, eu sei lá o que é. Mas se a mamã diz, é porque é verdade." Marco compreendeu que não havia nada a fazer: a miúda era mais forte do que ele, escapar-se-Lhe-ia sempre. Disse, num tom conciliatório: "Está bem, vamos fazer o jogo como tu queres. Mas é a última vez. Depois, não volto a jogar." "Bom, assim está bem", disse ela, satisfeita. "vais ver que não te magoo." Puxou o vestido e escarranchou-se-Lhe nos joelhos, levantando primeiro uma perna e a seguir a outra, sem pudor, mas igualmente sem ostentação. Uma vez montada, apoiou-se com os flancos e disse por fim: "Então, estás pronto?" Marco respondeu: "Vem." A miúda soltou um grito de triunfo e deixou-se escorregar ao longo das pernas dele. Durante a fracção de segundo que demorou a descida, Marco teve tempo para ver, desdobrado à sua frente, como que o panorama que se olha de uma torre: todo o seu futuro até à velhice, com a rapariguinha sua amante, que cresceria a seu lado e a seu lado se faria mulher, havendo entre eles, definitivamente e sem remédio, o que estava para suceder agora. Compreendia que a verdade que perseguia há tantos dias consistia numa adulação e numa tentação, ambas sem fim, tão ilimitadas como irrealizáveis. Sim, talvez a miúda quisesse somente o jogo; mas este consistia no facto de ele dever comportar-se como se não fosse um jogo. Estas reflexões, ou melhor, iluminações, decidiram-no. No momento exacto em que o ventre dela ia tocar o seu, Marco interpõe a mão de través. A rapariga desmontou imediatamente, gritando: "não vale, não vale. Não jogo mais contigo" "E com quem vais jogar agora?" "Com a mamã." Era assim que ela continuava a escapar-se-Lhe, precisamente quando parecia que a tinha agarrado. Comentou com despeito: "Joga com quem te apetecer." "Pois jogo, mas tu és um medroso." "Porque tenho medo que tu me magoes, não é? Pois claro, é isso mesmo, tenho medo. E depois?"
Mas ela estava já a pensar noutra coisa. Disse bruscamente: "vamos jogar outro jogo."
"Que jogo?"

Vou esconder-me e tu vais à minha procura. Enquanto eu me escondo, tens que tapar os olhos com as mãos e não podes tirá-las da cara antes de eu te dizer." Marco respondeu com alívio: "Está bem, vamos jogar esse jogo." A garota afasta-se a correr gritando: "Vou-me esconder; não olhes!", e ele, pondo as duas mãos na cara, a tapar os olhos, fica à espera. Passou um lapso de tempo indefinível; tanto poderia ter sido um segundo como um minuto; depois, sentiu de repente dois lábios que Lhe tocavam a boca e um hálito leve que se misturava ao seu. Depois, enquanto mantinha ainda as mãos por cima dos olhos, os lábios começaram a roçar lentamente os dele, indo e voltando de modo gradual e calculado da direita para a esquerda e vice-versa, cada vez mais húmidos e abertos à medida que se iam deslocando. Ele pensou que daquela vez não podia haver dúvida: a miúda era um monstro de sensualidade precoce e perversa, e o envolvimento directo com ela parecia doravante tão ilegítimo como inevitável. Entretanto, os lábios iam e vinham, e agora a língua atacava-Lhe a boca como se procurasse uma passagem. Depois, eis que a língua abre facilmente passagem entre os seus dentes, penetrando inteira no interior da boca de Marco, cheia e aguçada, enquanto ele estende os braços para diante, mantendo os olhos fechados. E então sente nas suas mãos já não os ombros frágeis da rapariguita, mas as espáduas fartas e maciças da sua mulher. Abre os olhos, lançando-se para trás com vivacidade: a mulher estava de pé à sua frente, com o roupão aberto; o ventre saía de entre as pregas do tecido, um ventre em tudo semelhante ao que ele costumava pintar nos seus quadros: branco, túmido, duro, com o púbis depilado e a marca branca da operação do apêndice ao lado esquerdo. Marco ergueu os olhos e olhou para ' cima. Do alto, a mulher inclinava-se para ele, com um ar de benevolência, " uma fronte inchada de Apolo, cabelos louros e pendentes, nariz grande, boca murcha e caprichosa. Passado um momento de silêncio, interrogou-o com uma ponta de severidade: "que estavas a fazer com as duas mãos a tapar os olhos?"
"estava a jogar com a pequena" "Tinhas uma estranha expressão no rosto e foi isso que me fez vir aqui dar-te um beijo. Fiz mal" "Pelo contrário", disse Marco. Estende os braços e mergulha o seu rosto no ventre dela, beijando-a à altura do umbigo, com uma violência aplicada. Sente a mão da mulher na sua testa, que o acaricia docemente, e então afasta-se um pouco e recua. Ela fecha o roupão e pergunta: aOnde está ela?" Marco responde: "não sei ao certo. Foi esconder-se e eu tenho que ver É se a descubro." Quase no mesmo momento, um grito frouxo e distante, ressoou no apartamento. Marco fez menção de se levantar. Mas a mulher deteve-o: "Deixa-a estar onde está. O que é que vocês estavam a fazer há bocado? O jogo da montanha russa, não?"
Marco fica espantado: "como é que sabes?"
"Ouvía-vos, estava ali atrás da porta. Ora, fazes o favor, tens que prometer-me que não voltas
a fazer com ela esse jogo"
"Mas porquê?"
"Porque no jogo acontece inevitavelmente um certo contacto físico. Sabes o que é que a pequena me disse?" "Que foi?" "Disse-me: "Ele quer estar sempre a jogar à montanha russa. Eu não quero, porque ele toca-me quando jogamos. Mas o Marco insiste e eu depois aceito para lhe fazer a vontade., Marco esteve à beira de exclamar: "Mas que mentirosa?"; acabou, no entanto, por se conter, pensando que a mulher não acreditaria nele. Disse, por fim, zangado, apesar de não querer parecê-lo: "Está descansada, não volto a jogar nem esse nem nenhum outro jogo com ela." "Porquê? Devias jogar com ela outros jogos. Ela não tem pai. Tu devias ser um pai para ela." Marco respondeu, já controlado: "Tens razão, farei as vezes de pai." A mulher disse então, de súbito, pousando-lhe a mão nos cabelos: "Sabes que aquele beijo me deu vontade de fazer amor? Há já muito tempo que não me beijavas dessa maneira. Queres vir?" Ele pensou que não havia modo de furtar-se a semelhante convite. Disse: "sim." Ela pegou-Lhe na mão e guiou-o através da sala, em direcção à porta; daí, passou ao corredor escuro, introduzindo-o por fim no quarto, merguLhando na penumbra. Lá dentro, desfez-se do roupão, lançou-se de costas na cama desfeita, abriu sem delongas as pernas e esperou assim, com as pernas dobradas e abertas, que ele despisse as calças. Marco, entretanto, dizia para consigo que devia simular o ardor de um desejo que não sentia ou que, pelo menos, não sentia por ela; lançou-se com violência entre aquelas pernas, tão cheias e tão brancas. De repente, eis que a voz estridente da miúda rebentou muito próxima, dentro do quarto: "não me achaste, não me achaste" A mulher desembaraça-se com força de Marco, ergue-se toda nua, saindo da cama, e foge do quarto. Marco acendeu a luz e olhou para o canto de onde ouvira sair o grito. Havia um biombo; a miúda saiu de trás dele, imprevistamente, gritando: "Cucu!"
Marco perguntou: "mas onde é que tu estavas?"
" Aqui atrás. "
"E... que é que viste?"
"O que é que eu havia de ver! Nada, estava atrás do biombo." Ele fitou-a, inseguro. Depois, disse bruscamente: "Bem, vamos embora; anda, daqui para fora, a mamã ainda não se vestiu." Pegou-Lhe na mão, enquanto ela se deixava guiar suavemente para fora do quarto, através do corredor, até ao estúdio. Marco fecha a porta, aproxima-se do quadro que cortara com a lâmina. A miúda exclamou: "Olha, alguém te rasgou o quadro!" Marco disse com secura: "fui eu.
"E porquê?" " Porque não gostava dele." Então, ela disse, logo de seguida: "Porque é que não me fazes um retrato como fazes à mamã?
Marco respondeu: "não faço retratos. Isto pode ser o corpo de uma mulher qualquer.
A miúda indicou, apesar destas palavras, o quadro em frente: "mas a mamã tem uma ferida na
barriga, tal e qual como esta mulher. Já não gostas de fazer o retrato da mamã? Se já não gostas, porque não queres fazer o meu"
Ficou um momento calada; depois acrescentou: "eu também tenho essa ferida."
Marco sentiu-se tocado: como o esquecera?
Fora havia um ano; enquanto ele estava no estrangeiro, a miúda fora operada ao apêndice. Acabou por dizer, com esforço: Eu sei que tens." Loquaz, ela retorquiu de pronto: Quando me fizeram a operação, eu disse à mamã: agora já tenho uma ferida como tu. Então, não me fazes o retrato?


Fonte: scribd. In.Alberto Moravia Contos-Eroticos

Hélio Pólvora - Conto



MISS BABY

As mulheres começaram a entrar na vida de Galileu numa tarde de domingo, no jardim público. Quem tinha dinheiro pegava o bonde à porta do internato e ia ao cinema; quem não tinha, caminhava até o parque, olhava os lagos, ouvia o sussurrar das árvores, contava os dias que faltavam para as férias e a volta a casa no interior, sobretudo olhava as meninas; outros, cujos nomes apareciam na lista negra de Mr. Keith, denunciados pelos bedéis, nem mudavam de roupa: metidos na farda, tomavam café, ouviam o serviço religioso, almoçavam e erravam a tarde inteira entre os muros do velho casarão. Não era preciso ler a lista para saber o nome dos condenados; bastava ver se estavam de farda ou se vestiam o terno domingueiro. 

Galileu era de Pilão Arcado; o pai o despachara no trem, com mala e tudo, e passara um telegrama a Mr. Keith, o diretor, pedindo a fineza de recolhê-lo. Quando o trem parou na estação da Calçada, em Salvador, Galileu viu e ouviu um gringo de cara vermelha e cabelos louros entoar em voz reboante de Paul Robeson: 

— Oh! Oh! Quem é aí o menino Galilu? 

Galileu ergueu o dedo, como o pai lhe mandara fazer, e se identificou: 

— Eu, Mr. Keith. 

Os primeiros dias foram difíceis. Puseram Galileu no dormitório dos médios, porque ele, apesar dos treze anos, era desenvolvido. Na rouparia, o bedel, que tinha atrás da orelha um caroço de carne e era chamado às escondidas de Catapulta (nome que alguns veteranos afoitos abreviavam, com o sacrifício de uma consoante), mandou-o escolher um escaninho e deu-lhe um cadeado. Galileu esvaziou a mala e procurava um lugar seguro para o vidro de perfume que a mãe lhe dera quando o vidro despencou e se fez em pedaços. Aí ele se lembrou da mãe, se lembrou de Pilão Arcado, das vadiagens gostosas, pensou nos dias incertos que o aguardavam e chorou com abandono e desconsolo, o corpo sacudido pelos soluços. Os médios que estavam no dormitório foram dar-lhe tapinhas nos ombros. Às seis horas o sino tocou e o bedel tangeu todo mundo para o banheiro, onde os corpos nus se organizaram em fila, porque havia apenas dois chuveiros. Entre dois veteranos inteiramente à vontade, e que penduravam a toalha mos membros intumescidos, Galileu se encolhia, se esticava na ponta dos pés, tentava evitar contatos abdominais, fricção de protuberâncias. Dormiu mal —as camas eram separadas por um pequeno espaço — e despertou no dia seguinte com a descrição que um vizinho de voz melíflua fazia da arte de beijar, aprendida, sem dúvida, na última sessão do Jandaia, em filme de Clark Gable. 

— A gente abarca a cintura da moça com o braço esquerdo — disse o tal, agarrando Galileu estremunhado, e semicerrando os olhos. — Alisa-se com esta outra mão o seu cabelo cheiroso — e alisou o cabelo revolto de Galileu. — Depois, une-se o corpo dela ao nosso...

A essa altura, Galileu deu-lhe um pontapé. O outro era mais forte e apertou-o. Galileu tentou soltar-se à custa de cotoveladas, movimentos de ombros, cabeçadas, novos pontapés. Rolaram no chão. O outro tentava pôr-se por cima de Galileu, que ia perdendo as forças e começava a chorar de raiva ao ver os pés dos médios que os cercavam e açulavam o veterano de voz melíflua. 

— Largue o calouro! 

Era a voz autoritária de Catapulta. O círculo rompeu-se, o aperto diminuiu e cessou, Galileu se levantou e quis brigar. O bedel ameaçou pôr os dois na lista negra — e como Galileu não soubesse ainda o que ela significava, imaginou um castigo duro, talvez uma expulsão, se encolheu e enxugou as lágrimas..Desde então passou a ser respeitado. E dentro de quinze dias já se sentia.ambientado, embora sem imitar aquele modo acintoso de carregar toalhas para o banheiro. No futebol ganhou o apelido de Cueca, porque vestia o calção sobre a cueca de algodãozinho. Já não voltava ao internato, nas tardes de domingo, gabando-se de só haver pago o bonde três vezes. Ao contrário, fingia-se alheio ou sustentava o olhar desconfiado do cobrador que sacudia diante dele a mão cheia de moedas: "Faz favor! " 
Numa tarde de domingo em que perambulava com outros pelo Campo Grande, Galileu arriscou o primeiro galanteio de sua vida. Sentado num banco de madeira, à sombra de uma amendoeira de folhas enferrujadas, viu passar uma menina que lambia um sorvete com a língua cor-de-rosa, chamou-a: 

— Princesinha! 

— Merda! 

Era a palavra mais doce que já ouvira de uma mulher, fora do círculo familiar de Pilão Arcado. A princípio, escandalizou-se: as meninas bem educadas não diziam palavras feias. Depois, riu-se da resposta em cima da bucha, da coragem da resposta e do modo tranqüilo com que ela fora dita, assim como quem repete um cumprimento habitual, como quem dá boa-tarde. Seguiu a menina a distância conveniente e viu que morava na casa ajardinada da esquina. Menina estabanada, ainda inconsciente dos encantos do corpo, afastava pretendentes com uma palavra que em outra boca soaria áspera, mas na sua se revestia-se de insuspeitada doçura. 

Já Eugênia agia como mulher. Na sala de aula, sentada ao lado da irmã, gorducha, Galileu admirava-lhe a curva macia da saia azul-marinho no baixo-ventre. Estudiosas e aplicadas, traziam a lição decorada, erguiam-se e declamavam, de faces rosadas, definições difíceis, mas se uma pergunta quebrava o ritmo da exposição trazida na ponta da língua, elas se atrapalhavam, gaguejavam, emudeciam. As blusas eram brancas, com ligeiros debruns de azul na gola e nas mangas curtas, e os botões, também azuis, escalavam a saliência do busto. O internato feminino ficava um quarteirão adiante, e era possível ver-lhe o jardim, do muro do internato dos homens. Trepado no muro, Galileu acenou uma tarde para Eugênia — e a.mão gorducha, que costumava segurar a caneta bem rente à pena e sujar-se de tinta, respondeu ao aceno. Na segunda-feira, no intervalo entre a aula de inglês e a de geografia, introduziu um bilhete no caderno dela, perguntando-lhe se queria namorar com ele. Eugênia folheou o caderno à procura das últimas anotações, deu com o bilhete, espantou-se, desdobrou-o e tingiu-se de encarnado. A irmã quis tomar-lhe o papel, mas ela, num movimento rápido, enfiou-o na blusa. Afogueada, esqueceu a lição decorada com perseverança, trocou o nome de rios, misturou os períodos arqueológicos, pôs um vulcão ativo da Polinésia em plena América Central, e começou a enviesar-se na carteira. Queria olhar Galileu, sentado meio de banda, dar a esse reconhecimento um ar de casualidade, de fortuito encontro de olhos: inclinava-se para a direita, ganhava alguns centímetros no assento estreito, torcia o pescoço, que parecia duro; afinal a perna bateu no suporte da cadeira, imobilizou-se; desesperada, Eugênia acabou de girar o pescoço, encontrou Galileu, um sorriso confuso banhou-lhe o rosto cheio, os lábios tremeram. Iniciara-se entre eles um romance sem palavras, alimentado por bilhetinhos, sonetos, acenos de muro a muro, olhares esquivos na sala de aula, no culto de domingo à noite, que terminava sonolento com um apelo do Dr. Godinho: "Façamos a oração". Romance que se esbraseava nas tardes de quarta-feira, quando os internos eram obrigados pelos bedéis a evacuar o pátio onde as internas, vestindo calções de boca de elástico que lhes desnudavam as coxas, na ginástica, curvavam-se segurando arcos, mexiam os quadris, sacudiam os seios. Galileu saltava pela janela da sala de aula do quarto ano ginasial, colava os olhos a um orifício, distinguia pedaços do pátio. As coxas de Eugênia"eram grossas e brancas como roscas, quando ela corria as seios tremiam e os lábios se abriam em rachaduras de romã sobre dentes pequenos e alvos. Nos intervalos das aulas, pela manhã, a aproximação que parecia fácil e natural esbarrava na vermelhidão de Eugênia, na zombaria dos colegas. O namoro mudo espalhara-se, chegara ao conhecimento dos professores. Despeitado, Galileu entrou a imitar-lhe a voz gaguejante nas lições, o corpo pesado, o rosto manso que só se encrespava na hora da argüição. Pensava já em mancar bilhete idêntico a outra moça quando caiu doente, atravessou febril uma manhã solitária no dormitório, até que o Dr. Godinho, alto, sério e pálido, superintendente da Escola Dominical, examinou-o e diagnosticou : 

— Papeira.

Uma bola inchava na garganta, em forma de papo. Alguns pândegos imitavam o taco de bilhar, cutucavam a excrescência: 

— Bola sete na caçapa. 

Outros davam-lhe conselhos: tivesse cuidado para que a inchação não descesse a partes mais delicadas do corpo e o impedisse de andar. Galileu foi removido para o sótão. Emiliano, o servente, conduziu-o por uma escada em caracol, de onde ele avistou por uma porta aberta, ao subir os primeiros degraus, um velho esqueleto quase desconjuntado, boiões e frascos em prateleiras, e identificou um odor penetrante de éter. A escada findava num cômodo baixo e amplo, com três camas, telhado poeirento e uma janela. Era noite, a luz acesa penetrava-lhe nos olhos. As outras camas estavam ocupadas: a papeira já fizera antes dele duas vítimas. 

Despertou de manhã com o toque do sino e julgou-se no dormitório, onde se acordava com um jeito mole no corpo; acordava-se só nos olhos abertos, não se avançava logo a mão na coberta para desvendar o corpo quente. Ficava-se estirado, de olhos fixos nas traves do teto, sem pensamentos, restos de sono grudados nos membros que renasciam. Era preciso que Catapulta avançasse até o meio do dormitório e batesse palmas. Não pronunciava urna só palavra: cabeça quadrada, lábios abertos a formão, inspecionava os quatro cantos, as mãos estalavam, compassadas. No sótão o torpor podia prolongar-se, unir dia e noite. Galileu começou a contar o tempo: alguns internos já estariam aglomerados no portão para ver as meninas entrar, comboiadas por dois contratorpedeiros, a diretora e a vice-diretora do internato feminino. Os vasos de guerra, pesados, ferro-velho a pedir estaleiro, marchavam ao lado; Os internos marcavam a cadência um-dois, um-dois, as meninas sorriam, Eugênia bamboleava o corpo gorducho.

À luz do dia Galileu viu que o telhado caía para os lados até morrer rente ao forro, em recantos escuros e sujos; viu que os companheiros de sótão eram do dormitório dos maiores, deviam andar no terceiro ou quarto ano ginasial, estudar física e química, provavelmente já conheciam mulher. Quando a sineta das aulas bateu pela segunda vez — deviam ser nove horas — eles ficaram nervosos; saíram da cama e arrastaram-se para o canto sombrio da direita. 

— Você não vem? — perguntaram. 

— Ver o quê? 

— As moças no toalete. 

E deram-lhe instruções: teria de andar de quatro pés, só por cima dos caibros, pois o forro era velho, não agüentaria o peso do corpo. Avançaram arfantes sobre o madeirame carcomido, por entre teias de aranha, deitaram-se e colaram os olhos às frestas. Embaixo surgiu, como um alçapão, o ladrilho do toalete, mas os vasos sanitários estavam fora de vista. Moças entravam, ajeitavam o cabelo ao espelho ovalado, apertavam a saia nos quadris, mexiam por baixo das saias em peças íntimas. Algumas alisavam a blusa — e era tudo: as portas vedavam o mais interessante. O forro estalava, a madeira podre dos caibros parecia afundar. Galileu imaginou o estrondo como um pedaço de céu que se rasga, depois a queda entre as saias azuis, aos pés de Eugênia surpreendida no ato de empalmar os seios; cabelo despenteado, rosto chupado de doente, uma inchação gorda e brilhante na garganta, ele seria de meter medo; as moças correriam aos gritos, era bem provável que Eugênia desmaiasse. Mr. Keith o arrastaria então pela gola do pijama, dando-lhe pontapés e cachações, talvez alguns socos, porque ele lutara boxe em Princeton; no dia seguinte seria expulso. Galileu arrastou-se de volta à cama, estava na hora do Dr°. Godinho aparecer e tornar-lhe o pulso. O suor pingava no forro corno goteiras ácidas, corrosivas. 

De tarde, imerso na febre que o acalentava, ouviu pedaços de conversa, gravou um nome que ia e vinha na boca dos companheiros de doença: Miss Baby. Vasculhou a memória e não encontrou nenhuma Miss Baby do seu conhecimento. O nome era engraçado: Senhorita Bebê. Urna filha de Mr.Keith que houvesse chegado dos Estados Unidos? O apelido da secretária de Mr. Keith, que não bulia com os quadris ao andar? Alguma mulher descrita em livro? Arrastou-se para a beira da cama, sustentou com o cotovelo a cabeça que lhe parecia oca que nem cabaça. 

—- Quem é essa Miss Baby? 

Os veteranos riram. 

— Quantos anos você tem? 

— Treze. 

— Nada feito. 

— Sou do dormitório dos médios. 

Eles então lhe contaram. Disseram-lhe que entre os passageiros do bonde que passava em frente ao internato havia urna insuspeitada contorcionista, que não o apanhava no meio do percurso, e, ao contrário dos outros passageiros, preferia o banco de trás, o último, de onde via deslizar pedaços cinzentos, espelhantes ou lívidos, da cidade. Mulher miúda, já idosa, porém esgalga, de pele tensa esticada sobre os ossos corno fios de arame. Uma pele quase diáfana, quase rósea, apesar de certas manchas de ferrugem. 

Os movimentos dessa mulherzinha são oblíquos, de réptil cuidadoso apanhado a descoberto em amplas clareiras, e quando ela se senta às vezes finca os cotovelos nas coxas e escora a cabeça nos punhos cerradas; parece então um sapo de atalaia no banhado, seduzido pelo encantamento de uma serpente — ou à beira da fonte, hibernando na longa friagem. Deve morar nos contornos da cidade, nesses lugares onde a vida talvez escorra mansa, quem sabe no Rio Vermelho, talvez em Amaralina; e é possível que tenha filhos, quem sabe terá um homem; um homem que lhe admira ainda o corpo desempenado e resvaladiço, filhos que lhe ignoram a secreta ocupação que a faz sair de casa todos os dias no começo da noite e emboscar-se no último banco do bonde. Indo ou voltando, porque o centro da cidade é a sua meta, ela não é a mesma: retorna transfigurada, como se um halo a envolvesse — o paiol de fracos refletores assestados no palco, a desvendar-lhe os segredos dos braços e pernas que adquirem na sombra a consistência esponjosa de membranas. A emoção do espetáculo que os refletores focalizam e desvendam subsiste apenas nos dedos da contorcionista; dedos que tremem e se grudam como ventosas no maço de cédulas de pouco valor, separando o necessário para pagar o bonde, descer no ponto final, apanhar outro bonde e finalmente entrar na casa silenciosa onde o marido e os filhos ressonam. 

O porteiro da boate não a cumprimenta quando e1a resvala pela porta e adentra a escuridão em lestas contorções de braços, pernas e ancas; sequer leva a mão à pala do boné, na saudação habitual dos porteiros, nem mesmo faz um gesto para empurrar a folha da porta; apenas deixa-a passar, contornar as mesas, procurar o camarim penumbroso, ver-se no espelho rachado reencontrar-se nos vidros de tintas e cosméticos. Ali, diante do espelho, enquanto lhe chega esmaecido o som sincopado de tangos, ela se mete numa pele esverdeada, e enquanto suas roupas jazem no chão como a pele tisnada que uma serpente largou no caminho, fuma um cigarro e espera a hora de entrar no palco. 

Atrás da cortina que a sujeira, o pó e o tempo tornam mais pesada, há um frêmito de vida, tinir de copos, um longo sussurro de homens e mulheres que se encontram e desencontram em confabulações amorosas. De pé, agora, atrás da cortina, a contorcionista atira no chão o toco de cigarro, perfila-se.Lá na frente alguém anuncia seu número, a orquestra ataca uma valsa lenta. E ela, com um salto. está nas trevas do palco, o refletor passeia, colhe-a, detém-se. 

. Ela já se habituou a essas palmas frias, a esses olhares curiosos que cedo se apagam e se desviam ou se recolhem sobre as mesas, olhares que refletem o amor, o perdido ou encontrado ou procurado amor, pensa Galileu, que não faz uma hora, dias depois, em plena convalescença, pulou o muro do internato e afinal tem diante de si a revelação da mulher, e vê que de repente os homens e mulheres percebem que a orquestra continua tocando a mesma valsa, perguntam a si mesmos se a contorcionista ainda está no palco, e guiados pelos refletores eles a redescobrem, uma massa verde e acaçapada, a mulher-sapo de todas as noites. 

A contorcionista não se apressa, não se ilude; sabe que haverá um instante em que a verdade haverá de doer, nas conversas dos homens e mulheres, e os forçará a olhá-la; aí então, quando recolhe o olhar do seu público, ela se esmera: o corpo se desconjunta, os ossos se distendem sem que se ouça um estalo, e ela se transmuda e se transforma, se enrosca e se arqueia. A valsa anima-se, chega a adquirir um ritmo de marcha; como as palmas aumentam, o corpo da contorcionista freme na inventiva de novos meneios e de novas ânsias, empenha-se na derradeira flexão, os refletores apagam-se. 

Vem o segundo número e a contorcionista é agora uma tímida cantora americana, comboiada pelo pai e pela mãe, os três dispostos a um sarau familiar. 
— Miiisss Bêêiibi! 

Surge no palco o trio, recebido com palmas: uma senhora gorda, loura, de olhos azuis, vestida de cor-de-rosa como uma adolescente; um senhor de ar alheado, que se esquece de sorrir e é cutucado pela mulher; e uma esgalga adolescente amorenada que só pode ser a Miss. O senhor e a senhora sentam-se a um canto e passam a orgulhar-se do rebento que arranha o português; a Miss cumprimenta o generoso público com um good evening que Galileu traduz logo, com orgulho — orgulho que o locutor, mulato de cabelo esticado a brilhantina, deita a perder: 

— Ela está dando boa noite! 

Miss Baby, americana que começou a fazer turnê em Belém do Pará e veio descendo o litoral, dá um beliscãozinho no queixo do locutor, que se vira para a platéia e alardeia num sorriso alvar a intimidade do beliscão aplicado sem dúvida com unhas pontiagudas, que devem doer. Depois, ela começa a cantar, sob os olhares distraídos do papai e o encanto renovado da mamãe.

— I am going to sing I Want To Be Evil. All right, Mom? 

E a senhora gorda condescende: 

— Go ahead, Baby. 

Ao cabo de uns três ou quatro números, Miss Baby consulta a platéia: 

— Estar mutcho calorr, non?

Todos concordam: realmente está quente, quentíssimo, embora seja noite de junho. Miss Baby sorri e encolhe um ombro para despir o bolero que lhe descobre dois dedos na zona equatorial da barriga. Mas arrepende-se da precipitação do gesto, pede consentimento à mãe: 

— AlI right, Mom? 

E a boa senhora, um pouco assustada, mas compreendendo que o público exige o sacrifício, reluta um pouco, acaba concordando: 

— Go ahead, Baby. 

O momento ansiosamente esperado: Galileu concentra todos os sentidos, músculos e nervos, na força do olhar. Miss Baby encolhe o ombro, liberta o braço. A orquestra toca um lullaby. Miss Baby encolhe o outro ombro, puxa o bolero num gesto de suprema renúncia, revela um busto pequeno acomodado num pedaço de pano estampado. Galileu aplaude de pé. 

– I am going to sing a French song, C'est si bon. 

E Miss Baby ginga o corpinho, introduz na letra umas variações que falam em Cadillac car, il sera très crazy,non? Encerra a audição com um see you tomorrow night, ladies and gentlemen —- e some nos bastidores, recolhe a pele esverdeada que deixou no chão. Dentro da madrugada que se inaugura ela coleia, sobe no bonde, agacha-se no último banco. As ruas passam, o brilho lhe foge dos olhos. É apenas uma criatura de meia-idade, franzina, pequena, mulher cansada a caminho de casa, onde o marido e os filhos ressonam. 

Galileu compra ao porteiro um postal de mulher nua deitada na cama e volta ao internato. Sonha com Miss Baby, contorcionista e cantora. 

In. Estranhos e Assustados, 1966 - Fonte Jornal do Conto
Imagem retirada da Internet: Contorcionist

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