Sinésio Dioliveira - Crônica


Goiandira deixa suas pegadas na areia



Tive o privilégio de entrevistar a artista Goiandira do Couto. Isso já faz um bocado de anos. Na época ela estava com 82 anos. Lembro que sugeri a vida da artista como pauta na reunião que acontecia toda segunda-feira no jornal, um semanário.

Minha sugestão, entretanto, não foi aceita pelo dono do jornal, pois, segundo ele, era dispendioso deslocar um carro até a Cidade de Goiás e junto a isso o fato de que o assunto “cultura” não gera lucros ao jornal. Tentei dissuadi-lo de sua pequenez jornalística. Foi, portanto, em vão.

Após me certificar com o dono do jornal de que pelo menos a matéria seria publicada, rumei para a Cidade de Goiás em meu próprio carro, acompanhado do fotógrafo Iris Roberto. Ainda bem que fui. Já chegando à cidade e ao avistar a Serra Dourada, onde a artista extraía os grãos de areia de centenas de cores para dar vida a suas obras, tematizadas nas casas e ruas de sua cidade, parei o carro e pedi ao fotógrafo que fizesse algumas fotos da serra. Como estávamos no mês de maio, a paisagem estava muito bela. O verde da vegetação era vigoroso.


Minha conversa com Goiandira durou quase três horas. Liguei para ela assim que entrei na cidade. Ao chegar em sua casa, encontrei duas portas abertas: a de sua casa e a de seu coração.
 Na verdade, eu já conhecia a artista, mas queria conhecer também a pessoa dentro da artista. Que pessoa maravilhosa!

Em meio à entrevista realizada pela manhã, isso após Goiandira passar um café fresquinho, que rescendeu deliciosamente pela cozinha, onde estávamos, ela ia me mostrando seus quadros, fotos de suas exposições. Falou de sua infância, mas sem o saudosismo romântico. Falou da importância de seus pais, da influência da mãe, que era pintora, em sua vida como artista plástica. Falou da importância do pai no estímulo pela leitura. Falou que cresceu rodeada de livros e que isso foi-lhe muito importante na lapidação de sua personagem. Até mencionou Castro Alves: “Bendito o que semeia livros!” Monteiro Lobato também é mencionado por Goiandira: “Um país se faz com homens e livros.”

A certa à altura da entrevista, quando falava das inúmeras personalidades políticas e religiosas que a visitaram, perguntei-lhe qual foi a mais importante. “Foi Chico Xavier, ele inclusive sentou-se na cadeira em que você está sentado agora.”

Voltei para Goiânia feliz em ter conhecido aquela mulher tão determinada, tão importante e de um coração tão grande. Ainda bem que ela gostou da entrevista, tanto que me mandou, dois dias após a publicação da matéria, uma bandeja de doces cristalizados.

Goiandira foi embora, mas deixa suas pegadas na areia...


Imagem retirada da Internet: Goiandira do Couto

Maria Elizabeth Fleury - Crônica

Goiandira do Couto
 Foto by Weimer Carvalho- O Popular


Terra linda e venturosa, terra amada de meus pais




 Somente corações generosos de coroadas cabeças da atual diretoria do SESI goiano,  teriam a sensibilidade de ceder uma condução com motorista, proporcionando, a pequeno grupo de intelectuais goianos a oportunidade de conduzir o casal de escritores e historiadores de Porto Alegre (RS), Moacir e Hilda Agnes Hübner Flores, para conhecer a outrora Vila Boa, antiga Capital de Goiás, hoje, orgulhosamente, Patrimônio Cultural da Humanidade. E, sob cálido sol matinal deste mês de agosto seguiram todos, quais adolescentes em recreio, rindo, conversando, cantando e recordando saudosas cantigas como a “Balada goiana” de Manoel de Amorim: Todos têm um amor na vida/que os inspiram a cantar/ eu só tenho a minha cidade/ minha terra, meu sonho, meu lar... Lá chegando, aos poucos, a cidade foi desvendada, mas dois desejos seriam primeiramente realizados: visita à casa de Cora e à arte em areia nos belos quadros de  Goiandira, fundadoras da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás-AFLAG.
       
Para melhor apresentação da cidade, buscamos os versos de Rosarita Fleury, uma de suas amorosas filhas que, ainda, menina-moça a deixou, sem nunca esquecê-la. Saudosa, registra em poemas e romances sua história, sua beleza, usos e costumes de sua gente simples, hospitaleira, inteligente e honrada... Aos pés de verdes morros a cidade se estende cintilante/ nos dizer do poeta é pérola engastada no verde-jade de concha fascinante... Ponte da Lapa, do Carmo, Cambaúba altaneira, rio Vermelho, as pedras, as lavadeiras... Cruz do Anhanguera, de tão distante era! / o Palácio Conde dos Arcos, o bom Colégio Sant’ana/a Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte/ a Catedral por fazer, tão sem sorte... / o sino do Rosário badalando, convidando... convidando.../ /Igreja D’Abadia, de Nossa Senhora do Carmo e São Francisco/ Rua Nova, tão velhinha, Rua Direita, tortuosa, de todas a mais tortinha!...No entanto a saudade grande é da Rua Rosa Gomes/ onde por anos morei e onde há, nos quintais/ tanta fruteira bonita plantada por meus pais... (do poema Goiás Recordação).


Entrando na casa de Cora Coralina, fomos recepcionados por seu retrato em tamanho natural e lá nos mergulhamos nos séculos XIX e XX, vendo-a em gravações e ouvindo-a declamar seus poemas de mulher sofrida, altaneira, guerreira. E, enquanto conhecíamos todos os ambientes, suas seculares paredes nos espreitavam, nos questionavam, fazendo-nos reféns de sua poética... Goiás minha cidade/eu sou aquela amorosa/de tuas ruas estreitas, curtas, indecisas/saindo uma das outras./Sou aquela menina feia da ponte da Lapa/sou Aninha/ Sou Cora Coralina/Venho do século passado e trago comigo todas as idades./Despojada,apedrejada/sozinha e perdida nos caminhos incertos da vida fui caminhando,caminhando.../Fiz um nome bonito de doceira, glória maior/E nas pedras rudes de meu berço gravei poemas...(versos de vários poemas) Depois de um almoço tipicamente goiano no Restaurante Ipê, com direito à sobremesa, levaríamos nossos visitantes a conhecer a beleza ímpar dos quadros pintados com areias coloridas da Serra Dourada, arte/criação de nossa internacional Goiandira do Couto.


Veio a decepção: O casarão, que foi de seus pais, hoje a Casa de Goiandira, um verdadeiro palácio da cultura, estava fechado. É lá que ela guarda inúmeros de seus quadros, assim também o atelier construído por ela para abrigar suas obras e receber os turistas. Numa sala em sua casa, onde trabalhava, há para visitação dos turistas 515 potinhos de areia com as cores matizadas da Serra Dourada - o precioso material de sua pintura. Tudo isso, orgulho e riqueza goiana, sempre mantida por ela, mesmo doente e hospitalizada em Goiânia.  Quantas vezes ela abriu mão de seu descanso, atendendo turistas ou amigos mesmo em crise de labirintite?  Informada por familiares, soubemos que somente meados do mês passado (julho) é que o funcionário foi dispensado, estando agora tudo fechado. Que pena!... Nossa visita fica para outra oportunidade. Sabemos que seu estado de saúde é delicado e ela,  com seus noventa e tantos anos de dedicação completa à sua arte, muito já fez, levando o nome de Goiás por todo Brasil e internacionalmente.


Depois de um cafezinho amigo na Chácara Baumann, visitamos o Palácio Conde dos Arcos, o Museu de Arte Sacra e tantos outros pontos turísticos, locais de que muito nos orgulhamos pelo zelo, limpeza,  organização e competência dos funcionários. Despedimos da cidade saboreando os tradicionais sorvetes e picolés de frutas tropicais da Praça do Coreto e o desejo de um breve regresso. Hoje (22,ago), enquanto relia esta crônica para encaminhá-la ao DM, recebo a notícia que Goiandira não mais vive entre nós. Sua alma cansada subiu ao Céu, deixando-nos a riqueza de sua arte única e maravilhosa. Descanse em paz, querida confreira e amiga.
                                                      
Maria Elizabeth Fleury – membro da AFLAG, UBE, ATLECA e ABLAC.


Morre aos 95 anos a artista plástica goiana Goiandira do Couto

Artista Plástica Goiana - Foto de arquivo
(by Walter Alves - O Popular)


A artista plástica goiana Goiandira do Couto morreu de falência múltipla de órgãos, no fim da tarde desta segunda-feira (22), em Goiânia, aos 95 anos. Ela sofreu complicações de um acidente doméstico, no dia 29 de julho, quando fraturou o fêmur. Inventora de uma técnica que a tornou famosa internacionalmente, Goiandira do Couto extraía 551 tonalidades da areia da Serra Dourada para criar telas em que destacava a paisagem da Vila Boa em Goiás.  Professora aposentada e fundadora da Escola de Artes Veiga Valle, a artista plástica vendeu praticamente todas as telas  que produziu, a maior parte para  personalidades como presidentes, governadores e artistas. Goiandira Couto também foi fundadora da Igreja Messiânica na cidade de Catalão (GO).
O sepultamento deve acontecer na cidade de Goiás, na terça-feira (23), em horário a ser definido. Natural de Catalão, Goiandira completaria 96 anos no dia 12 de setembro.

Fonte G1

Maisa Lima - Conto

Na Curva da Maria Bárbara


No começo, todo mundo pensava que não tinha nada. Depois, foi pior: deram-se conta que não tinham nada mesmo. E desgraça das desgraças: orgulhosos. Em suma, uma gente fadada a não sair do lugar.

Aqueles que julgavam ter se livrado do visgo da pasmaceira estavam afundados nele até o pescoço. Se acreditavam melhores que o resto do mundo. E por resto do mundo, entenda-se a beira de serra em que viviam.

O resto não importava. Até porque, eles não existiam para o resto. Era gastar arrogância à toa. Mas, até mesmo onde o nada cruza com lugar nenhum, há aqueles que fazem o povo andar. Zé Esteira era desses.

Olhando pro seu carro estacionado no quintal, a gente só não dizia que estava num desmanche porque era só um. Se não contasse, é claro, com a carreta do carro de boi. Tão abandonada, que se a chuva continuasse era capaz de virar lenha.

O carro do Zé tinha chassi, rodas, volante e, luxo dos luxos, bancos! Quando ia pra cidade, só não usufruía da civilização quem não quisesse. Levava todo mundo. Só que a civilização também usufruía do Zé: bebia até cair os dentes. Mas, nunca matou ninguém.

Até que Daltiva, desgostosa da vida que levava com Aelcio Abacaxi (só o raio dessa fruta crescia no areal que o homem escolheu a dedo da terra que o pai deixou de herança para a prole de 14 filhos), tentou se matar afogada no lamaçal da Curva da Maria Bárbara. Mas não com o Zé. Outro só ia achar que era mais um cupim no chapadão, com um ar engraçado de nortista. Mas o Zé, não.

Ele gosta de conversar, mas gosta mais ainda que o freguês concorde com suas justíssimas palavras. Aliás, quanto mais bêbado, mais justas.

Quando Daltiva sequer lhe respondeu com o habitual – hum!, notou que algo não ia bem. Só demorou cinco quilômetros para se dar conta que, ou o planeta Chupão tinha sugado Daltiva (sorte do Aelcio, mas ele não merecia), ou tinha comprado passagem só de ida para o Vale dos Suicidas, ou, pior de tudo, tinha deixado o Zé falando sozinho. Essa última possibilidade fez com que reagisse. Um homem tão bom não merece esse tratamento! Ainda mais que Daltiva era a única que arriscou de voltar com ele e não gostava que o povo o visse falando sozinho.

Daltiva, que nunca foi apresentada a qualquer lei da física – nome lindo pra uma vaca! – não firmou no banco e foi ver de perto porque o chapadão é terra boa pra soja.

Zé não agüentou a desfeita. Com o ar mais sério do que o de Zumbi quando assumiu o lugar de Gangazumba em Palmares (isso é por minha conta. Zé nunca ouviu falar em nenhum dos dois. Mas é preto e eu, um daqueles que, em vão, tento transformar a pasmaceira em verniz), declarou:

-Sou bão demais, Daltiva. Carona dou pra todo mundo. Mas gosto que me avisa quando vai descer.

Daltiva, digna, apesar da lama que pingava da sobrancelha, voltou para o chassi com rodas. Com o orgulho em frangalhos, mas voltou. O chapadão não era famoso pela animação (os gaúchos ainda não eram praga) e 17 quilômetros são de se respeitar. Ainda mais que até os brincos – ouro puro da Bahia – estavam marrons e ela não queria ser confundida com um tatu-peba fashion.

 Mas ficou mais de mês sem ir pra civilização. O Zé não percebeu, porque, graças a Deus, pinga apaga qualquer desfeita. E o Aelcio, coitado, pensou que era amor.


* Maísa Lima é Jornalista, Editora de Economia do Jornal do Tocantins.

Imagem retirada da Internet: Humortalha

Romério Rômulo - Poema



pontes, ouro preto


as pontes que martelo e que atormento
carregam uma espécie de ungüento
que vila rica deixou em cada delas.

o sujo, o não calado, o renitente
perderam a vida, a mão, a língua, o dente
por discordar do que havia sobre elas.

quantos soberbos sobre as pontes disfarçaram
suas viagens de quem nasceu do ouro
e o ferro em apetite aguçaram.

tiveram, em pindorama, estes senhores
que carregar na consciência, se a tiveram,
o grito amargo das dores que causaram!
                                    (de quantas pontes vive ouro preto?)



In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: Ouro Preto

Lêdo Ivo - Conto


A resposta




Seu nome era Serafim Costa. Mas nome de quem, ou de que? Na cidade pequena , decerto a sua figura deveria ter se cruzado, muitas vezes, com a do menino fardado, de camisa branca e curtas calças azuis extraídas das velhas casimiras paternas. Ele, o comerciante abastado, talvez comendador, não conhecia o garoto. E este jamais poderia ligar o nome à pessoa. Assim, Serafim Costa era apenas um nome — a belíssima sonoridade de um estilhaço de mitologia, uma flor aérea que, em vez de pétalas, possuía sílabas.

Ele morava no Farol, exatamente onde o bonde fazia a última curva. Os muros brancos, que cercavam o quarteirão, semi-escondiam a casa, também branca, além do jardim que aparecia entre as grades, e em cujos canteiros florejavam espessuras e certas musguentas flores amarelas, e um imenso besouro zoava. A casa era um palacete de dois andares, crivado de sacadas e cegas janelas, e que parecia desabitada. Possivelmente essa incorrigível falsária, a Memória, a pintou, sem tir-te nem guar-te, com a sua branca tinta adúltera, substituindo a verdade nativa, feita de alvorentes azulejos pintalgados de azul, por alguma caprichosa arquitetura rococó. De qualquer modo, de outro lado do muro reto, sem dúvida encimado por afiados cacos de garrafas para impedir o salto dos ladrões, a gente via as copas das mangueiras, cajueiros, palmeiras e outras árvores sob as quais alguns cães esperavam, impacientes, que a rotina bocejante do dia se esfarelasse para que eles pudessem latir, na noite raiada de estrelas, como que lembrando a Serafim Costa — que interromperia por meio minuto o seu sono tranqüilo e patriarcal — as suas presenças vigilantes.

— Aqui mora Serafim Costa devia ter-me dito meu pai, num daqueles crepúsculos em que, de bonde, voltávamos para casa; ele com a sua velha pasta que inexplicavelmente não o acompanhou ao túmulo (o que talvez não o fizesse ser de pronto reconhecido no Paraíso), e nós ainda guardando nos ouvidos o bulício vesperal do instante em que, aberta a porta do grupo escolar, as crianças escoavam para a praça e se perdiam nas escurentas ruas tortuosas.

O palacete branco vulgava riqueza, luxo, secreto esplendor. Além das portas fechadas, das presumíveis estatuetas de mármore, do aroma das dálias, do fino palor dos azulejos, das mudas venezianas, havia decerto um universo de opulência, que a nossa fantasia de meninos pobres mal podia imaginar. A tarde transcurecia; o portão fechado validava-se como o brasão de uma existência que, terminados os diálogos inevitáveis de seu ofício de grande comerciante sempre atarefado e vigilante, suspendia qualquer tráfico com as mesquinharias diurnas, igual a um navio que, após todo o baixo ritual da estiva, readquire a sua dignidade perdida sulcando o mar sem amarras.

Era o palácio de Serafim Costa. E o nome, a magia desse nome que ocupou toda a minha infância, e era o preâmbulo mágico das encantações, demorava-se em mim, .solfejando-se no ar eternamente perfumado pelo Oceano. Meu pai, então guarda-livros de um armazém de tecidos, conhecia Serafim Costa, e nos mostrava a sua residência. "Aqui mora Serafim Costa." Não nos nomeava uma forma definida de casa (sobrado, bangalô, palacete); e certo aquela moradia, uma das mais luxuosas da pequena cidade, refugia às denominações irreversíveis. Ignoro se Serafim Costa era alagoano ou um dos muitos imigrantes portugueses que, estabelecidos em Maceió, enriqueceram em tecidos ou em secos e molhados e terminaram comendadores — mas em seu palacete, na exuberância do jardim equatorial, no chão assombrado de árvores enlanguescidas pelo mormaço, havia algo que era a fusão improfundável dos mais faustosos elementos nativos com uma substância remota e avoengueira, como que a reprodução de antiga planta deixada do outro lado do mar e tacitamente reconstruída pela poupança e ambição do imigrante afortunado. Por isso, meu pai dizia aqui, querendo assim significar tudo o que era o império de Serafim Costa: as grades do jardim, os sinuosos canteiros colmeados de folhas e flores, os calangros e insetos, a água espatifada de uma fonte, os familiares que não apareciam às janelas, talvez para não confundir a visão de todos os que, como eu, o imaginavam reinando solitário em sua mansão, sem quinhoar ostensivamente com ninguém o resultado, de sua vida vitoriosa, feita de zelo e siso.

Embora eu não tivesse conhecido Serafim Costa, tornou-se-me familiar aos olhos um dos empregados de seu armazém. Era um velho corcunda, de fiapos brancos na cabeça calva, e devoto. Alguns anos depois, quando já tínhamos deixado de morar no sítio e passáramos a habitar numa rua do centro da cidade, estávamos todos, no sótão, assistindo à passagem de uma procissão que enchia a monotonia da tarde de domingo. Súbito, identifiquei na multidão o corcunda velho e devoto, e exclamei:

— Olhe o Serafim Costa!

A exclamação fez espécie a meu pai, que se virou para mim, surpreendido com a notícia. Seu ar era mais do que de dúvida — decerto eu dissera uma heresia, que reclamava pronta corrigenda ou a aura de uma prova irretocável. Com o dedo, apontei o velho corcunda que, de casimira preta na tarde de sol fugidiço, vencia, na aglomeração, os. paralelepípedos da rua. Meu pai reconheceu o empregado de Serafim Costa e exclamou, de bom rosto:


— Não é o Serafim Costa — e achou engraçado que eu confundisse o empregado humilde e devoto com o poderoso e mitológico patrão.

E assim ele ficou sendo, para mim, sempre e eternamente, um nome, inatingível figura do ar. Muitas vezes, passeando sozinho pelo sítio ou junto ao mar lampejante, eu repetia esse nome, despetalava-o na brisa como se ele fosse um malmequer, juntava de novo as pétalas das sílabas que cantavam mesmo momentaneamente esquartejadas. Serafim Costa! dizia eu bem alto para que os costados dos navios pudessem devolver-me, em forma de eco, essa primeira lição de poesia, essa infindável soletração do absoluto.

Muitos anos depois, desintegrada a infância, e já envolto numa névoa de estrangeiro, voltei à curva do bonde. Era ali que morava Serafim Costa — o portão fechado era sinal de que ele estava lá dentro, movendo-se possivelmente entre frutas maduras, gatos sonolentos e bojudas porcelanas azuis. Trinta anos se tinham passado desde os dias em que o bonde, na volta da escola, nos fazia ver a misteriosa morada, o universo branco e verde estriado de agudas grades negras e manchas róseas. O invisível Serafim Costa já deveria estar morando, e de há muito, em outra alvacenta morada... Mas parei diante do portão cerrado, espiei o jardim silencioso, os vasos de azulejos, as escadarias de mármore, as altas janelas que pareciam sotéias. E chamei: Serafim Costa!

Chamei a quem, a que? E ocorreu o milagre. O nome ficou suspenso no jardim onde se ocultava uma cobra papa-ovo, depois voou pelos ares, como um pássaro; chocou-se contra os costados dos cargueiros que, no destempo hirto, desembarcavam em Maceió os caixotes das mercadorias encomendadas, do outro lado do Oceano, pelo valimento comercial de Serafim Costa; e, metamorfoseado em eco, voltou de novo aos meus ouvidos, já agora na soberba hierarquia de um nome que não precisa mais de figura ou de anedota; e se tornou para sempre algo sonoro e puro, deslumbrante e enxuto.

E, assim, obtive a resposta.


In.  Ficção, nº 06, Rio de Janeiro, junho/1976, pág. 46.
Fonte: Releituras
Imagem retirada da Internet: Lêdo Ivo

Carlos Drummond de Andrade - Poema



O chão é cama


O chão é cama para o amor urgente,
amor que não espera ir para a cama.
Sobre tapete ou duro piso, a gente
compõe de corpo e corpo a úmida trama.

E para repousar do amor, vamos à cama.

Imagem retirada da Internet: cama

Rosy Feros - Poema




Egon Schiele
Dedos do silêncio


Vem...
          Me toma à beira da noite,
          caminha por mim
          com seus passos molhados,
          despeja seu rio no meu cálice
          – pois minha emoção é só água.

Vem...
          Que eu lhe dou um trago
          deste meu vinho guardado,
          destas minhas uvas
          frescas de inverno...
          Que eu derramo em gotas meu perfume
          pelos quatro cantos do seu corpo,
          vestindo sua pele com a camurça
          da nudez e do silêncio.

Vem...
          Deita e me canta,
          sente meu desejo
          se esgueirando pelos seus dedos,
          veleja sem bússola
          pelos meus sentidos,
          me olha como quem pede lua...

          Deixa eu sussurrar minhas folhas,
          soprar minhas pétalas
          pelo seu peito de relva,
          pelo seu solo macio.
          Vem... Não volta,
          esquece a hora morta
          do cotidiano de sempre.
          Me toca feito música
          e deixa eu cantar meu bolero
          pelas suas curvas de carne...

          Sinto-me inocência
          passeando por suas alturas,
          por seus andares cheios
          da mais noturna noite densa.

          Desvenda essa face molhada
          e me mostra a sua vertente original
          de emoção-fêmea pura...
          Que eu o espero na branca paz
          do meu ventre adormecido,
          dos meus braços plenos
          de fogueiras e cantigas.

Vem...
          Que eu desfolho
          toda essa sua vontade nua,
          que eu desperto
          todo esse seu lado cigano...
          pois o meu leite é morno
          e é rosa franca meu sorriso.
          Deixa seu barco
          navegar pelo meu leito,
          que eu carrego no peito a ânsia
          de hastear a bandeira do infinito...

Vem...
          Deita... Me namora...
          Me afoga no espelho de luz
          dessa madrugada afora,
          me diz que no nosso tempo
          não há tempo nem hora,
          que eu não agüento
          a flor do sexo que arde
          nas entranhas de mim...

          Deixa que eu amanheça
          na espuma dessa sua onda quente,
          deixa sua emoção fluir
          da garganta num repente...
          Que eu carrego nos olhos de relento
          a voz que lhe pede a terra
          e que lhe entrega o mar.


Imagem  by  Egon Schiele

Adélia Prado - Poema



Moça na cama


Papai tosse, dando aviso de si,
vem examinar as tramelas, uma a uma.
A cumeeira da casa é de peroba do campo,
posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir,
tomo a bênção e fujo atrás dos homens,
me contendo por usura, fazendo render o bom.
Se me tocar, desencadeio as chusmas,
os peixinhos cardumes.
Os topázios me ardem onde mamãe sabe,
por isso ela me diz com ciúmes:
dorme logo, que é tarde.
Sim, mamãe, já vou:
passear na praça em ninguém me ralhar.
Adeus, que me cuido, vou campear nos becos,
moa de moços no bar, violão e olhos
difíceis de sair de mim.
Quando esta nossa cidade ressonar em neblina,
os moços marianos vão me esperar na matriz.
O céu é aqui, mamãe.
Que bom não ser livro inspirado
o catecismo da doutrina cristã,
posso adiar meus escrúpulos
e cavalgar no topor
dos monsenhores podados.
Posso sofrer amanhã
a linda nódoa de vinho
das flores murchas no chão.
As fábricas têm os seus pátios,
os muros tem seu atrás.
No quartel são gentis comigo.
Não quero chá, minha mãe,
quero a mão do frei Crisóstomo
me ungindo com óleo santo.
Da vida quero a paixão.
E quero escravos, sou lassa.
Com amor de zanga e momo
quero minha cama de catre,
o santo anjo do Senhor,
meu zeloso guardador.
Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe.



In.CSeabra
Imagem retirada da Internet: na cama

Vinícius de Moraes - Poema



Soneto de agosto


Tu me levaste, eu fui... Na treva, ousados
Amamos, vagamente surpreendidos
Pelo ardor com que estávamos unidos
Nós que andávamos sempre separados.

Espantei-me, confesso-te, dos brados
Com que enchi teus patéticos ouvidos
E achei rude o calor dos teus gemidos
Eu que sempre os julgara desolados.

Só assim arrancara a linha inútil
Da tua eterna túnica inconsútil...
E para a glória do teu ser mais franco

Quisera que te vissem como eu via
Depois, à luz da lâmpada macia
O púbis negro sobre o corpo branco.


Imagem retirada da Internet: nudez

John Donne - Poema


Elegia: indo para o leito



Vem, Dama, vem que eu desafio a paz;
Até que eu lute, em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.
Solta esse cinto sideral que vela,
Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado,
Feito para deter o olhar ousado.
Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.
Tira o espartilho, quero descoberto
O que ele guarda quieto, tão de perto.
O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
Que cresça o diadema da madeixa.
Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens. Tu, meu anjo, és como o Céu
De Maomé. E se no branco têm contigo
Semelhança os espíritos, distingo:
O que o meu Anjo branco põe não é
O cabelo mas sim a carne em pé.
     Deixa que minha mão errante adentre.
Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Minha América! Minha terra a vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha Mina preciosa, meu império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
Onde cai minha mão, meu selo gravo.
     Nudez total! Todo o prazer provém
De um corpo (como a alma sem corpo) sem
Vestes. As jóias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atalanta:
O olho do tolo que uma gema inflama
Ilude-se com ela e perde a dama.
Como encadernação vistosa, feita
Para iletrados a mulher se enfeita;
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.
Para ensinar-te eu me desnudo antes:
A coberta de um homem te é bastante.



In. ceabra

Francisco Buarque de Holanda - Poema



O que será (à flor da pele)





O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo, me faz suplicar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita

O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os ungüentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite

O que será que me dá
Que me queima por dentro, será que me dá
Que me perturba o sono, será que me dá
Que todos os tremores me vêm agitar
Que todos os ardores me vêm atiçar
Que todos os suores me vêm encharcar
Que todos os meus nervos estão a rogar
Que todos os meus órgãos estão a clamar
E uma aflição medonha me faz implorar
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo


Fonte: CSeabra
Imagem retirada da Internet: amor

Francisco Perna Filho - Poema


Destino de Pedra


De quem são os meninos
que dormem ao relento,
que sonham grandiosidades,
e sucumbem nos esgotos da cidade grande
consumidos na fumaça da própria miséria
de uma existência precária?
De onde vêm esses meninos
que cumprem um destino de pedra,
pedras de crack que sempre carregam.
Sísifos da modernidade,
armados de inconsciência,
dormitando pelos esgotos
e sucumbindo na ilusão do transitório?
De que são feitos os seus dias,
os seus olhos medonhos,
as suas almas esvaídas
na maldade inocente da química
mortífera de uma breve existência?
Para onde caminham essas criaturas
silenciadas em mentiras,
em promessas e bofetadas,
em fome de existência,
em liberdade forjada?
São filhos da rua,
da lástima do mundo,
da indiferença dos homens.
Vêm dos restos do mundo,
da miséria urbana,
das crateras da incompreensão.
São feitos do lodo da existência,
das sobras de ideologias,
do sexo barato das ruas.
Caminham em círculo,
emperdenidos apóstolos,
com suas gotas,
com suas pedras,
com seus delírios,
sem destino.

Imagem retirada da Internet: meninos ao relento

Fernando Py - Poema




Cave Canem


Aviso bem-humorado
na fachada das casas de Pompéia.

Mudam-se os tempos, mudam-se os desígnios
e o aviso permanece
curiosidade arqueológica do pai
na fachada de minha casa.

Porém hoje mais certo seria
poupar os cães desse cuidado
e escrever à entrada
de toda casa toda cidade todo país
mesmo na caixa-alta do itálico latim
CAVE HOMINES





In. Jornal de poesia
Imagem retirada da Internet: cão

Francisco Perna Filho - Poema


Para o meu filho, distante



Cada vez que meu filho se vai
É como um pedaço de mim que se solta,
Como a carne talhada à faca,
Nunca é a mesma.

Cada vez que meu filho se ausenta,
Fico mais limitado no olhar,
É o como se tudo se tornasse distante,
Não me permitindo alcançar a beleza do grito.

Sempre que fico só, sem o meu filho,
Algo em mim se torna frio,
Torno-me silencioso e triste,
Não sabendo recompor-me em tanta ausência.

Sempre que fico assim, só, sem o meu filho,
Passo a buscá-lo no espelho,
Tentando encontrar no meu rosto
Sombras do que se foi.

Imagem retirada da Internet: trilhos

Humberto de Campos - Conto

 
O MONSTRO




Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia, então, sem espuma e sem ondas, caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte. Eram dois espetros longos e vagos, sem forma definida, cujos pés não deixavam traços na areia. De onde vinham, nem elas próprias sabiam. Guardavam silêncio, e marchavam sem ruído olhando as coisas recém-criadas.

Foi isto no sexto dia da Criação. Com o focinho mergulhado no rio, hipopótamos descomunais contemplavam, parados, a sua sombra enorme, tremulamente refletida nas águas. Leões fulvos, de jubas tão grandes que pareciam, de longe, estranhas frondes de árvores louras, estendiam a cabeça redonda, perscrutando o Deserto. Para o interior da terra, onde o solo começava a cobrir-se de verde, velando a sua nudez com um leve manto de relva moça, que os primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres novos, assustados, ainda, com a surpresa miraculosa da Vida. Eram aves gigantescas, palmípedes monstruosos, que mal se sustinham nas asas grosseiras, e que traziam ainda na fragilidade dos ossos a umidade do barro modelado na véspera. Algumas marchavam aos saltos, o arcabouço à mostra, mal vestidas pela penugem nascente. Outras se aninhavam, já, nas moitas sem espinhos, nos primeiros cuidados da primeira procriação. Batráquios de dorso esverdeado porejando água, fitavam mudos, com os largos olhos fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos outeiros longínquos, que pareciam, à distância, à sua brutalidade virgem, uma procissão silenciosa, contínua, infinita, de batráquios maiores. Auroques taciturnos, sacudindo a cabeça brutal, em que se enrolavam, encharcadas e gotejantes, braçadas de ervas dos charcos, desafiavam-se, urrando, com as patas enfiadas na terra mole.

Rebanho monstruoso de um gigante que os perdera, os elefantes pastavam em bando, colhendo com a tromba, como ramalhetes verdes, moitas de arbustos frescos. Aqui e ali, um alce galopava, célere. E à sua passagem, os outros animais o ficavam olhando, como se perguntassem que focinho, que tromba, ou que bico, havia privado das folhas aquele galho seco e pontiagudo que ele arrebatava na fuga. Ursos primitivos lambiam as patas, monotonamente. E quando um pássaro mais ligeiro cortava o ar, num vôo rápido, havia como que uma interrogação inocente nos olhos ingênuos de todos os brutos.

Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem interesse, as maravilhas da Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais vagarosa, ora mais apressada; a outra, sempre no mesmo ritmo, não se adianta, nem se atrasa. Adivinhando, de longe, a marcha dos dois duendes, as coisas todas se arrepiam, tomadas de agoniado terror. As folhas, ainda mal recortadas no limo do chão, contraem-se, num susto impreciso. Os animais entreolham-se inquietos e o vento, o próprio vento, parece gemer mais alto, e correr mais veloz à aproximação lenta, mas segura, das duas inimigas da Vida.

Súbito, como se a detivesse um grande braço invisível, a Dor estacou, deixando aproximar-se a companheira.

Para que mistério - disse, a voz surda, - para que mistério teria Jeová, no capricho da sua onipotência, enfeitado a terra de tanta coisa curiosa?

A Morte estendeu os olhos perscrutadores até os limites do horizonte, abrangendo o rio e o Deserto, e observou, num sorriso macabro, que fez rugir os leões:

- Para nós ambas, talvez...
- E se nós próprias fizéssemos, com as nossas mãos, uma criatura que fosse, na terra, o objeto carinhoso do nosso cuidado? Modelado por nós mesmas, o nosso filho seria, com certeza, diferente dos auroques, dos ursos, dos mastodontes, das aves fugitivas do céu e das grandes baleias do mar. Tra-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do seu canto, ou do seu urro, a música do nosso prazer... Eu o traria sempre comigo, embalando-o, avivando-lhe o espírito, aperfeiçoando-lhe à alma, formando-lhe o coração. Quando eu me fatigasse, tomá-lo-ias, tu, então, no teu regaço... Queres? 

A Morte assentiu, e desceram, ambas, à margem do rio; onde se acocoraram, sombrias, modelando o seu filho.

- Eu darei a água... - disse a Dor, mergulhando a concha das mãos, de dedos esqueléticos, no lençol vagaroso da corrente.
- Eu darei o barro... - ajuntou a Morte, enchendo as mãos de lama pútrida, que o sol endurecera.
E puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia nas mãos da oleira sinistra que, assim, trabalhava inutilmente.
- Traze mais água! - pedia.
A Dor enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e este, logo, se amoldava, escuro, ao capricho dos dedos magros que o comprimiam. O crânio, os olhos, o nariz, a boca, Os braços, o ventre, as pernas, tudo se foi formando, a um jeito, mais forte ou mais leve, da escultora silenciosa.
- Mais água! - pedia esta, logo que o barro se tornava menos dócil.

E a Dor enchia as mãos na corrente, e levava-a à companheira.

Horas depois, possuía a Criação um bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o novo habitante da Terra não se parecia com os outros, sendo, embora, nas suas particularidades, uma reminiscência de todos eles. A sua juba era a do leão; os seus dentes, os do lobo; os seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés, como as aves, e trepava, rápido, como os bugios.

O seu aparecimento no seio da animalidade alarmou a Criação. Os uros, que jamais se haviam mostrado selvagens, urravam alto, e escarvavam o solo, à sua aproximação. As aves piavam nos ninhos, amedrontadas e os leões, as hienas, os tigres, os lobos, reconhecendo-se nele, arreganhavam o dentes ou mostravam as garras, como se a terra acabasse de ser invadida, naquele instante, por um inimigo inesperado.

Repelido pelos outros seres, marchava, assim, o Homem pela margem do rio, custodiado pela Dor e pela Morte. No seu espirito inseguro, surgiam, às vezes, interrogações inquietantes. Certo, se aqueles seres se assombravam à sua aproximação, era porque reconheciam, unânimes, a sua condição superior. E assim refletindo, comprazia-se em amedrontar as aves, e em perseguir em correrias desabaladas pela planície, ou pela margem do rio, esquecendo por um instante a Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as cabras, os animais que lhe pareciam mais fracos.

Um dia, porém, orgulhosas do seu filho, as duas se desavieram, disputando-se a primazia na criação do abantesma.

- Quem o criou fui eu! - dizia a Morte. - Fui eu quem contribuiu com o barro!
- Fui eu! - gritava a outra. - Que farias tu sem a água, que amoleceu a lama?
E como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram, as duas, que cada uma tiraria da sua criatura a parte com que havia contribuído.
- Eu dei a água! - tornou a Dor.
- Eu dei o barro! - insistiu a Morte.

Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o monstro, apertando-o, violentamente, com as tenazes das mãos. A água, que o corpo continha, subiu, de repente, aos olhos do Homem, e começou a cair, gota a gota... Quando não havia mais água que espremer, a Dor se foi embora. A Morte aproximou-se, então, do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu...

In. O MONSTRO E OUTROS CONTOS.

Imagem retirada da Internet: Ancestral

Henriqueta Lisboa - Poema



A menina selvagem 




A menina selvagem veio da aurora
acompanhada de pássaros,
estrelas-marinhas
e seixos.
Traz uma tinta de magnólia escorrida
nas faces.
Seus cabelos, molhados de orvalho e
tocados de musgo,
cascateiam brincando
com o vento.
A menina selvagem carrega punhados
de renda,
sacode soltas espumas.
Alimenta peixes ariscos e renitentes papagaios.
E há de relance, no seu riso,
gume de aço e polpa de amora.


Reis Magos, é tempo!
Oferecei bosques, várzeas e campos
à menina selvagem:
ela veio atrás das libélulas.


Publicado: Lírica (1958)

Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: menina selvagem

Henriqueta Lisboa - Poema



Não a face dos mortos. 


Não a face dos mortos.
Nem a face
dos que não coram
aos açoites
da vida.
Porém a face
lívida
dos que resistem
pelo espanto.


Não a face da madrugada
na exaustão
dos soluços.
Mas a face do lago
sem reflexos
quando as águas
entranha.


Não a face da estátua
fria de lua e zéfiro.
Mas a face do círio
que se consome
lívida
no ardor.


Publicado: A Face Lívida (1945)



Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: círio

Henriqueta Lisboa - Poema



Ciranda de mariposas 


Vamos todos cirandar
ciranda de mariposas.
Mariposas na vidraça
são jóias, são brincos de ouro.


Ai! poeira de ouro translúcida
bailando em torno da lâmpada.
Ai! fulgurantes espelhos
refletindo asas que dançam.


Estrelas são mariposas
(faz tanto frio na rua!)
batem asas de esperança
contra as vidraças da lua.


Publicado: Menino Poeta (1943)

Fonte: Jornal de Poesia

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