Sandra Falcone - Poema



A velha loba

 
a velha loba
defina-se a cada passo
trôpega
soberba

lentamente
abandona-se no chão
aconchegando-se
nas próprias feridas

um uivo
longo
duido
libertador
rompe a alma
selvagem
e arrepia suavemente
a savana

ao longe
a matilha caminha
inexorável




Mariana Ianelli - Poema



Filhos do Fogo




Não foi o cansaço da jornada
Que de novo nessa noite nos venceu,
Mas um sofrimento antigo, igual a sempre,
A realidade com sua mão espadaúda
Juntando a poeira de uns castelos demolidos,
De tudo extraindo o que sobra de nosso, afinal:
O irreversível.

Cultivamos rituais silenciosos,
Temos dentro de nós a alma do mundo.
Fomos feitos para a solidão,
A mesma que sente um animal
Ao largar o seu rebanho
E esperar a morte suavemente
Numa longa tarde de chuva em Gibeon.

Damos calor às coisas enquanto é tempo
E mais tempo há enquanto estamos mudos.
Gozamos um amor tranqüilo, sem heroísmo.
Assim acontece certas vezes, por espanto:
De um golpe, o infinito nos apanha.

Charles Bukowski - Poema


Desenho by Matheus Duarte


Seguros



a casa dos vizinhos me deixa
triste.
ambos marido e mulher acordam cedo e
vão ao trabalho.
chegam em casa no início da noite.
têm um pequeno menino e uma menina.
pelas 21h todas as luzes na casa
se apagam.
na manhã seguinte ambos marido e
mulher acordam cedo de novo e vão ao
trabalho.
retornam no início da noite.
pelas 21h todas as luzes se
apagam.

a casa dos vizinhos me deixa
triste.
as pessoas são boas pessoas, eu
gosto deles.

mas sinto que estão se afogando.
e não posso salvá-los.

eles sobrevivem.
eles não são
sem-teto.

mas o preço é
terrível.

às vezes durante o dia
eu olho para a casa
e a casa olha para
mim
e a casa
chora, sim, é verdade, eu
sinto isso.

a casa está triste pelas pessoas que ali
moram
e eu também
e olhamos um ao outro
e carros passam pra lá e pra cá
na rua,
barcos atravessam o porto
e as altas palmeiras cutucam
o céu
e esta noite às 21h
as luzes se apagarão,
e não somente naquela
casa
e não somente nesta
cidade.
vidas seguras se escondem,
quase
paradas,
a respiração dos
corpos e pouco
mais.



Tradução

Edmar Oliveira - Crônica



Matar, matar, matar. Afinal, quanto vale uma vida?



A humanidade sempre conviveu com assassinatos. Desde os tempos mais remotos, na luta pela sobrevivência nas cavernas — no raciocínio darwiniano — ou a partir do alegórico caso bíblico em que o invejoso Caim matou o irmão, Abel. Mas por que o homem mata seu semelhante? Basicamente movido por instinto inato, mas as motivações vão desde a rivalidade no futebol à gula pelo dinheiro alheio.
Foi por dinheiro que, na noite de 31 de dezembro de 2002, num bairro nobre de São Paulo, Suzane Louise von Richthofen comandou o brutal assassinato dos próprios pais, Manfred Albert e Marísia von Richthofen. Daniel Cravinhos, na época namorado de Suzane, e o irmão, Christian Cravinhos, se encarregaram de desferir golpes de barra de ferro na cabeça de Manfred e Marísia. Manfred morreu na hora, e Marísia ainda agonizou com massa encefálica exposta, segundo a polícia. O casal dormia na hora fatídica.
Loira, olhos verdes, voz suave, divinamente linda e diabolicamente macabra, Suzane articulou o inominável. Ela e os irmãos Cravinhos queriam euros e dólares de Manfred e Marísia, agasalhados no cofre da mansão do casal. Após o sucesso diabólico, Suzane e Daniel Cravinhos comemoraram num motel. Os três assassinos foram condenados a penas que chegam a 50 anos, que cumprem em presídios paulistas.
A banalização dos chamados crimes contra a vida é de difícil explicação. Especialistas divergem. As teses não batem. Os números do horror são inexatos. “A mídia tem grande responsabilidade nisso, pois fica divulgando e alimentando o mau, tornando-o ‘natural’ para a sociedade”, afirma um sociólogo. “Não, a culpa é da falta de escola adequada para as crianças, que acabam se envolvendo com marginais para, no futuro, se tornar um deles”, assegura um especialista em segurança pública. “É da natureza humana”, decreta um psicanalista. “Falta Deus no coração”, prega um padre. “O maior problema é a impunidade”, decreta um promotor de justiça. É provável que todos tenham razão, mas ninguém consegue explicar com segurança o porquê de tantos homicídios, sobretudo por motivos banais. Hoje, matar é como ir a uma festa, tomar uma cervejinha e dançar. É o rock do diabo.
Tiago Fernandes da Silva Chaves, o “Tiagão”, de 21 anos, é considerado perigosíssimo pela polícia dos estados do Maranhão e Piauí. Mas um comparsa não levou a sério os antecedentes criminais de Tiagão, que já havia matado seis pessoas nos dois estados. A “ingenuidade” de Marcos Antônio Aparício, de 22 anos, custou-lhe a vida. Foi morto por Tiagão a facadas na rodoviária de Timon, pequena cidade do Maranhão, em março deste ano, porque não pagou ao parceiro uma monstruosa dívida de R$ 1. O bandido impiedoso fez sua sétima vítima, foi preso e condenado a mais de 30 anos de prisão.
Fiel de uma igreja evangélica da mesma cidade de Tiagão, Lineuza Oliveira e Silva, de 24 anos, estava sempre pregando a Bíblia. Não perdia a oportunidade de falar sobre céu, inferno, Jesus Cristo. Assídua no templo, seguia à risca os ensinamentos do pastor, inclusive pagando em dia o dízimo. Mas nem sempre seguia o amor e desapego ensinados por Cristo. De onde tirava dinheiro, se não trabalhava? Dos pobres e idosos pais, Lourival Rodrigues da Silva e Joana Borges de Oliveira e Silva, de 73 e 71 anos, respectivamente. Os idosos viviam do salário mínimo da aposentadoria e já haviam perdido a TV para a filha, que a vendeu para engordar os cofres da “casa de Deus”.
Na manhã de um domingo ensolarado de janeiro passado, antes de seguir para a escola dominical, Lineuza Oliveira foi possuída por Satanás. Furiosa por não conseguir a “décima parte devida a Deus”, como sempre dizia quando queria os recursos minguados dos pais adotivos, executou-os a machadadas, enquanto dormiam. Segundo o delegado de Timon, Ricardo Hérlon Furtado, nos dias que antecederam a crueldade, a moça demonstrava forte obsessão em ficar rica. Dizia que se desse R$ 5 mil à igreja, Deus lhe daria três vezes mais. Com uma frieza de arrepiar, Lineuza explicou a uma TV local o que fez: “Do pó viemos e para o pó iremos”.
O que mais chama a atenção de especialistas são a frieza e crueldade dos matadores e os motivos dos crimes. Nos Estados Unidos, ficou famoso o caso de Betty Johnson Neumar, conhecida como “Viúva Negra”, moradora de uma pequena cidade da Georgia, que deixou a cadeia recentemente depois de pagar fiança de 200 mil euros, segundo “O Globo”. Betty Johnson, uma aparentemente doce velhinha, mandou matar cinco maridos para ficar com o seguro de vida deles. A polícia só conseguiu decifrar os caminhos da teia de aranha da “doce velhinha” após anos de investigação. Segundo policiais, ela executou o primeiro marido na década de 1950.
Conforme reportagem do jornal “Zero Hora”, de Porto Alegre, dados da pesquisa Mapa da Violência mostra que o Brasil ainda lidera o ranking de assassinatos no planeta, em números absolutos. São 46 mil homicídios por ano, em média. Mas, em termos proporcionais, deixou de encabeçar esse campeonato macabro. O Brasil ocupa hoje o sexto lugar na taxa de homicídios por 100 mil habitantes, num ranking de 91 países. A média é de 25 assassinatos por 100 mil habitantes. Fomos superados em violência, nos últimos anos, por El Salvador, Colômbia, Guatemala, Ilhas Virgens Americanas e Venezuela.
O sociólogo Julio Waiselfisz, coordenador da pesquisa Mapa da Violência, nem pensa em comemorar essa mudança. Em primeiro lugar, porque acredita que ela pode ser circunstancial, sazonal. Em segundo lugar, porque o que ocorreu foi um aumento da violência em outros países latino-americanos, sem que o Brasil tenha experimentado redução significativa nos indicadores.
Afinal, quanto vale uma vida? É possível mensurar em dinheiro a existência de uma pessoa? Se perguntarmos a Suzane Louise von Richthofen e a Tiagão, teremos uma resposta tão sangrenta quanto os noticiários policiais de todos os dias.
Edmar Oliveira é jornalista.

Imagem retirada da Internet: Algemas

JÁDSON BARROS NEVES VENCE O PRÊMIO NACIONAL DE CONTOS

XII Concurso Nacional de Contos seleciona 12 contos 
21/10/2011 



Ganhador é do Tocantins e segundo lugar é araraquarense


Comissão julgadora do concurso foi formada por: José Pedro Antunes, José Pedro Renzi, e Hilário Antônio Amaral
 
A Prefeitura de Araraquara, por meio da Secretaria Municipal da Cultura e Fundart, divulgou no último dia 20, o resultado do XII Concurso Nacional de Contos – Prêmio Ignácio de Loyola Brandão, realizado pela Biblioteca Pública Municipal Mario de Andrade.
 
O corpo de jurados que realizou o trabalho de seleção dos premiados foi composto pelos Professores Doutores: José Pedro Antunes e  Hilário Antonio Amaral (ambos da Unesp - Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara), e também por José Pedro Renzi, representante do Conselho Municipal de Cultura (Literatura).
 
De acordo com o regulamento do concurso seriam contemplados dez contos, porém os jurados decidiram acrescentar outros dois contos, resultando assim em 12 contos que serão publicados pela Editora da UNESP, através da Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Araraquara, com uma tiragem de 500 exemplares.
 
O primeiro colocado foi Jádson Barros Neves, de Guaraí, no Tocantins, com o conto “Setembro Bravo”. Além da primeira colocação, Jádson também assegurou duas menções honrosas e a publicação dos contos “Caso de Dante” e “A Toalha” no livro a ser publicado.
 
Araraquara também está representada no “pódium”, com o segundo lugar de Danilo Brandão de Lima, autor do conto “Noite Esmeralda”. Já a terceira colocação ficou com Éder Rodrigues da Silva, de Pouso Alegre, em Minas Gerais, com a obra “Mensageiro da Chuva”.
 
Os três primeiros colocados recebem os seguintes prêmios: R$1.000,00 (1º colocado), R$600,00 (2º colocado) e R$400,00 (3º colocado). Do 4º ao 12º colocado, os autores recebem Menção Honrosa. Cada autor receberá dez exemplares do livro.
 
Além de Jádson, também recebem as menções honrosas: Claúdia Albers Avóglio – “Dois Valetes, Uma Dama” (Pirassununga – SP), Alexandre de Almeida Nobre - “Fazenda Nova América” (Ribeirão Preto – SP), Lucas Henrique da Nóbrega Cassiano – “Acontece com as Melhores Pessoas” (Americana – SP), Pietro Bordini De Santis – “Carlos Sullermann” (São Carlos – SP), José Carlos da Silva – “Edilene chegou...” (Mauá – SP), Alexandre Bonafim Felizardo – “Gervásio” (Goiânia – GO), e Paulo César Paschoalini – “Escultores de Sombras” (Piracicaba – SP).
 
Nesta edição foram inscritos 568 trabalhos. Diversas cidades participaram das inscrições, como: Americana, Araraquara, Atibaia, Bebedouro, Campinas, Gavião Peixoto, Itararé, Maracaí, Piracicaba, Presidente Prudente, Salto, Santos, São Bernardo do Campo, São Carlos, São José do Rio Preto, São Paulo, Sertãozinho – de SP – além de Campo Grande (MS), Goiânia (GO), João Pessoa (PA), Paracatu (MG), Porto Velho (AC), Rio de Janeiro (RJ), São Leopoldo (RS), Taguatinga (DF) – entre várias outras. Também houve trabalhos de brasileiros que residem no Japão e na França.
 
Lançado em 1977, o Concurso Nacional de Contos de Araraquara vem atingindo seu objetivo de incentivo à literatura brasileira e despertando o interesse dos escritores.
 
Confira os premiados no concurso:
 
Vencedores do Concurso de Contos 2011
 
1º colocado – Jádson Barros Neves – “Setembro Bravo” (Guaraí – TO)
2º colocado – Danilo Brandão de Lima – “Noite Esmeralda” (Araraquara – SP)
3º colocado – Éder Rodrigues da Silva - “Mensageiro da Chuva” (Pouso Alegre – MG)
 
Menção Honrosa
 
- Alexandre de Almeida Nobre - “Fazenda Nova América” (Ribeirão Preto – SP)
- Alexandre Bonafim Felizardo – “Gervásio” (Goiânia – GO)
- Claúdia Albers Avóglio – “Dois Valetes, Uma Dama” (Pirassununga – SP),
- Jádson Barros Neves – “Caso de Dante” e “A Toalha” (Guaraí – TO)
- José Carlos da Silva – “Edilene chegou...” (Mauá – SP)
- Lucas Henrique da Nóbrega Cassiano – “Acontece com as Melhores Pessoas” (Americana – SP)
- Paulo César Paschoalini – “Escultores de Sombras” (Piracicaba – SP)
- Pietro Bordini De Santis – “Carlos Sullermann” (São Carlos – SP)
 

Marília Núbile - Poema


Juntos


Já vivemos juntos,
Aqui acolá,
Nossas vidas oscilam entre os extremos,
Entre as brechas do desnível, do possível reencontro...

Já vivemos juntos
No sigilo sombrio do trabalho,
Na exaltação da alcova,
Já vivemos juntos,
Nos limites do pleno e do vazio,
Na saudade e no tédio.

E agora vou e não vou
E que me deixo ficar.
E assim aos poucos vou me dividindo.
E tudo que amei, ficou amado.


In. Verso de Marília. Goiânia: Editora da UCG, 2009.
Imagem retirada da Internet: só.

Manoel Bueno (Nequito) - Poema



O húmus há de ficar na planta.
A planta (sua versão na flor)
ainda fica no voo e no ovo da ave.
Conforme a fome ou o (nem) tanto de pasto,
já havia intumescido o úbere farto,
o que deixou murchas as ancas
de certa "vaca de divinas tetas"
vertido todo o amor do leite derramado
dos cantos de tua boca infante
vida a fora, ânsia a dentro.

Penando embora,  vive a ave no homem
ainda que no átrio da casa:
o pássaro, preso - os ouvidos só no quintal
o homem , cego - os olhos apenas no canto.
Livre, no encanto, é a ave:
não deve um ninho só que lhe fizessem;
a nenhuma voz desafinou, que não se comovesse;
não fez de ninguém escravo, a quem não servisse.

Por que agora deve justo o homem
- já leva um cravo no peito
um espinho na planta do pé
e suporta todo o transe
da pedra no caminho
no sentimento do mundo
ser apenas aquele vagabundo
imolado na cena final da solidão
Calado seu grito de dor
em tudo o que se perde
no nada que se dissolve?
logo ele, prisioneiro da vida
em seus pesares,
mas sempre esse companheiro
e sentinela que vigia
lembranças e profecia?

In. Candeia de canto. Goiânia: Ed. da UFG, 1996.

Fernando Pessoa - Alberto Caeiro - Poema


Foto by Ricardo Monteiro


Quando Eu


Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo.
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima ...
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor —
Tu não me tiraste a Natureza ...
Tu mudaste a Natureza ...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as cousas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.

Abílio Pacheco - Crônica


Abilio Pacheco
God saves the little Elza



Ano passado disse que todo ano iria escrever sobre um ex-professor por ocasião do dia 15 de Outubro. A crônica sobre o Mestre Honorato trouxe-me bons e inesperados frutos. Além de algumas surpresas e aprendizados. A literatura sempre foi uma forma de levar as pessoas a tantos e tão diferentes lugares; com a internet isso tomou outra dimensão, incontrolável. Curioso é que a crônica sobre meu professor de elétrica é a mais acessada neste meu site e é a que mais resultou em comentários fora da net. Eu que sempre escrevi literatura ficcional, pouco me havia preparado para a literatura sobre pessoas vivas mesmo. Como é o caso da crônica. Talvez por isso fique pouco à vontade para escrever sobre a outra professora que comento en passant no texto do ano passado e opte por escrever sobre uma professorinha da minha querida Coroatá, interior do Maranhão.

A escolha também tem outro motivo. Ao dizer na crônica do ano passado que dois professores logo saltaram a minha lembrança, não me dava conta que dias depois muitos outros iriam emergir. Inclusive às queixas. Não, leitor curioso, nenhum me pediu ou cobrou crônica, fui eu mesmo que terminei por colocá-los vivos e falantes na minha memória. Afinal, pus-me no lugar deles. Como eu iria me sentir se preterido… A profissão tem lá seu quê de afetivo, afeiçuoso. Daí, zelos e gelosias. Por isso, reporto-me a minha longínqua e presente Coroatá, onde tive apenas dois professores (no rigor termo, no estrito). Um deles dava-me aulas num antigo chiqueiro de porcos e só me recordo das palmatórias e do nome que hoje uso para lembrar dele: Juvêncio. A outra era a tia Elza, a pequena tia Elza.

Não. Ela não professora de inglês. Era alfabetizadora. Destas muitas que tem pelo Brasil desbravando matagais, abrindo veredas, tangendo pedras e seguindo em caminhos hostis que são as cabecinhas tolas desses cidadãos pueris. Vá lá que ensinar o gênero textual (essa coisa aí bonita da Linguística) seja algo deveras útil para o aluno no seio da via social. Mas, dá cá esta palha, ensinar a juntar consoantes e vogais para fazer sílabas; rabisco sonoro com rabisco sonoro igual a outro rabisco sonoro – ou debuxo ruidoso… Isso, mano velho, quem vai passando pela estrada asfaltada e chã parece que esquece o quanto teve de gente abrindo picada, amansando pedras e orientando asfaltos. Cada pedágio que pagamos pelas Dutras da vida deveriam reservar bons quilhões para quem foi de fazer juntar o “bê” com o “a”.

Se bem vou conseguir não sei, mas a homenagem a pequena tia Elza pode ser estendida a tantas outras professorinhas esquecidas neste pindorama que vai já à sétima economia mundial. O país se construiu gigante por ação política como um prédio de muitos andares. Cada IDH, belo como uma janela barroca. Cada fator social como uma voluta no alto de uma coluna. Nem vou falar dos pavimentos para que a alegoria não seja toda explicadinha. Mas, sustentando este “belo impávido colosso”, está coisa que ninguém vê: o alicerce. Nem falo do alicerce de hoje, cuja fachada só veremos daqui a pelo menos uma década. Mas sim das professorinhas primárias como a tia Elza de cerca de 30 anos atrás.

Há 30 anos – afirmo por conta e risco – , as professoras primárias ganhavam menos um salário mínimo, não existia FNDE, não recebiam em dia, tinham malmente o curso ginasial de Normalista (muitas nem ist0). Curso superior de qualquer coisa, noções de linguística para alfabetização, saber o que era dislalia ou dislexia, nem sonhando. Parâmetros Curriculares, quê? Livros didáticos ou mesmo de história… a tia Elza usava era a cartilha do MOBRAL para me ensinar. Imagino meu avô dizendo que a cartilha era dela, da professora. Só não faltavam paciência e boa vontade na sua casa amarela de pé direito baixo, calha de zindo num dos lados do telhado e uma ou outra telha transparente. Ô sôdade boa de sua casinha de porta e janela (ou de janela e garagem) na rua do Sol, pertinho da minha travessa da Mangueira.

Não era uma escola, não. Ela dava aulas em casa mesmo. Nada de reforço ou complemento. Minha escola era sua copa. Sem quadro negro ou campainha. Nada de turma, apenas um ou outro colega. Era quando havia algum menino mais turrão que ela mais se mostrava paciente. Uma vez deixou-nos, eu e um super almado, com seu filho. O rapaz tinha menos de 25 anos e estava de castigo na copa e cozinha, pois tinha que tomar uns litros de água (para fazer lavagem estomacal). Ela nos recomendou que não bebêssemos das garrafas dele, pois era medido (se a memória não me falha ou não me excede). Meu colega inventou de atazanar para beber da água do secretário de nossa escolinha. Como o filho da professora não deu, meu colega enfiou-lhe o lápis no braço. O lápis dele tinha sempre uma ponta longa feita a facão. Enfiou! Não em 90 graus como se cravasse faca, mas na tangente como se enfiasse injeção. O buraco no braço não bastou; ficou encravado um pedaço do grafite. Vendo o mal feito, ele sentou-se, cruzou os braços fazendo bico e assim congelando até quando a tia Elza chegou.

Seu filho foi muito cônscio. Outro teria rodado mão no pé de lata do encapetado. Quando a mãe chegou, apenas mostrou o braço e ela entendeu. Chamou-nos, eu e meu colega, para perto; para ver o machucado. Premiu para sair a ponta; fazia mais para nos provocar que para extrair o grafite. Com não sei que ternura foi explicando o que havíamos feito e se ele ficar sem o braço, como vai ser? Meu colega olhava empedernido para o vazio escondido atrás do braço ferido. Ela apertava o machucado, falava e falava e eu ia ficando “atulermado” (hoje devem dizer “constrangido”). Quando tirou o corpo estranho do braço do filho e suspendeu o grafite sujo de sangue pinçado entre os dedos, falou daquele objeto como uma coisa muito assombrosa, como algo que poderia causar coisas pavorosas. Palavra não lembro nenhuma, mas a essência e o tom da voz… Talvez tenha passado dias lembrando do incidente sempre ao ver um lápis de ponta mais alongada. Certo é que aquela candura imprimiu em mim melhor resultado que uma palmada bem dada, melhor que as palmatoradas que eu levava no chiqueiro-escola do Sr. Juvêncio.

Depois que saí de Coroatá ainda fui à casa dela uma ou outra vez. Nenhuma vez a revi. Ela sempre estava viajando para São Luís, sempre consulta ou tratamento. Já faz tempo que faleceu, uns dez ou quinze anos. Mas ela está cá neste aprendiz de professor. Deve estar comigo (metafisicamente – matéria mística) quando preciso ser mais parcimonioso com “minhas crianças”, quando o que preciso ensinar não é a lição, não é o conteúdo, mas algo de proveitoso para vida, quando (como ouvi um professor de português no CEFETPA dizer aos seus alunos) “é preciso forjar nos alunos, gente”, ou, sendo menos grosseiro, quando é necessário ser mais educador que professor e conduzir os alunos para um bom exercício de humanidade.

Belém, 14 de outubro  de 2011
Abilio Pacheco

Professor universitário, escritor, revisor de textos e organizador de antologias. Três livros publicados. É membro correspondente da Academia de Letras do Sul e Sudeste Paraense (com sede em Marabá), integra o conselho de redacção da Revista EisFluências, de Portugal, é Cônsul dos Poetas Del Mundo para o Estado do Pará e é Embaixador da Paz pelo Cercle Universal des Ambassadeurs de la Pax (Genebra-Suiça).

Castro Alves - Poema



Canção do Boêmio



Que noite fria! Na deserta rua
Tremem de medo os lampiões sombrios.
Densa garoa faz fumar a lua,
Ladram de tédio vinte cães vadios.


Nini formosa! por que assim fugiste?
Embalde o tempo à tua espera conto.
Não vês, não vós?... Meu coração é triste
Como um calouro quando leva ponto.
A passos largos eu percorro a sala
Fumo um cigarro, que filei na escola...


Tudo no quarto de Nini me fala
Embalde fumo... tudo aqui me amola.
Diz-me o relógio cinicando a um canto
"Onde está ela que não veio ainda?"
Diz-me a poltrona "por que tardas tanto?
Quero aquecer-te rapariga linda."


Em vão a luz da crepitante vela
De Hugo clarcia uma canção ardente;
Tens um idílio — em tua fronte bela...
Um ditirambo— no teu seio quente...
Pego o compêndio... inspiração sublime
P'ra adormecer... inquietações tamanhas...


Violei à noite o domicílio, ó crime!
Onde dormia uma nação... de aranhas...
Morrer de frio quando o peito é brasa...
Quando a paixão no coração se aninha!?...
Vós todos, todos, que dormis em casa,


Dizei se há dor, que se compare à minha!...
Nini! o horror deste sofrer pungente
Só teu sorriso neste mundo acalma...
Vem aquecer-me em teu olhar ardente...
Nini! tu és o cache-nez dest'alma.
Deus do Boêmio!... São da mesma raça


As andorinhas e o meu anjo louro...
Fogem de mim se a primavera passa
Se já nos campos não há flores de ouro...
E tu fugiste, pressentindo o inverno.Mensal inverno do viver boêmio...
Sem te lembrar que por um riso terno


Mesmo eu tomara a primavera a prêmio..
No entanto ainda do Xerez fogoso
Duas garrafas guardo ali... Que minas!
Além de um lado o violão saudoso
Guarda no seio inspirações divinas...
Se tu viesses... de meus lábios tristes


Rompera o canto... Que esperança inglória...
Ela esqueceu o que jurar lhe vistes
Ó Paulicéia, ó Ponte-grande' ó Glórial...
Batem!... que vejo! Ei-la afinal comigo...
Foram-se as trevas... fabricou-se a luz...
Nini! pequei... dá-me exemplar castigo!


Sejam teus braços... do martírio a cruz!...


Imagem retirada da  Internet: noite fria

Gregório de Matos - Poema



1º SONETO A MARIA DOS POVOS (319)


Discreta e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos e boca o Sol e o dia,
Enquanto com gentil descortesia
O ar, que fresco Adônis te namora,
Te espalha a rica trança voadora
Quando vem passear-te pela fria,
Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo trata a toda ligeireza,
E imprime em toda a flor sua pisada.
Oh não aguardes, que a madura idade,
Te converta essa flor, essa beleza,
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.

Maurilio Tadeu de Campos - Crônica




Tempo de Criança





Fui criança num tempo em que a alegria predominava junto com a simplicidade, a pureza de espírito e a humildade. A minha família residia numa casa simples, de madeira, num bairro de muitas casas semelhantes.  Ruas de terra, árvores nos quintais, belos e arrumados jardins com plantas e flores diversas adornando.  
Levantávamos cedo todos os dias. Os adultos iam para a lida; a criançada geralmente ia para a escola; na volta, a lição de casa e os momentos para os folguedos. As brincadeiras eram alegres e saudáveis, inocentes, típicas da imaginação infantil.  Em cada época predominava um brinquedo especial, entre eles o jogo de pião, bolinhas de gude, queimada, além do período que coincidia com os ventos mais constantes, que propiciava empinar pipas.
As famílias eram católicas e, como de praxe, ouviam a “hora do Ângelus” pelo rádio, sempre antes do jantar. Em seguida, mais atenção à programação radiofônica e, por volta das nove da noite, já estávamos prontos para dormir. Mesmo os adultos não se recolhiam tão tarde.
Lembro que podíamos deixar as portas e as janelas abertas durante todo o dia, desde o amanhecer até o por do sol. Não tínhamos medo de ladrões, nem nos preocupávamos com atos violentos de qualquer natureza porque, se aconteciam, eram raríssimos. A vizinhança era amistosa e predominavam as boas relações de amizade. Nos dias quentes as cadeiras iam para a calçada, durante a costumeira prosa dos adultos. Nós, crianças daquele tempo, adorávamos as noites calorentas porque podíamos brincar um pouco mais, enquanto os adultos conversavam.
O mês de junho era a época de reverenciar Santo Antônio, São João e São Pedro. As casas com quintais maiores reuniam as pessoas da vizinhança para as festas juninas. Ouvíamos música e ficávamos em volta da fogueira, alegres, de rostos aquecidos. E nos divertíamos ouvindo as estórias dos adultos, contadas com muitos detalhes, aqueles “causos” de assombração, de mulas-sem-cabeça, do saci-pererê e de tantos outros personagens que  provocavam curiosidade e medo. Adorávamos os doces, bolos, amendoins torradinhos doces e salgados, pipocas, paçocas, refrescos, típicos daquela festança, todos feitos em casa com muito carinho.
No final de cada ano, no Natal, uma ceia especial, comemorando o nascimento de Jesus. Depois da ceia, íamos à igreja, para a “missa do galo”. No dia seguinte, embaixo das camas das crianças os presentes do Papai Noel. Os meninos ganhavam bolas ou carrinhos de madeira e as meninas, quase sempre, recebiam suas belas e bem arrumadas bonecas. Reunidos, mostrávamos os nossos presentes e compartilhávamos os brinquedos naqueles momentos mágicos em que os sonhos e as fantasias brotavam das mentes felizes e inocentes.
Hoje, com tanta tecnologia, os pequenos perderam a pureza mais cedo, deixaram de lado a inocência e nem sabem mais como preservar a felicidade, pois vivem em ambientes postiços, em lares despedaçados, desunidos e individualistas demais. Seus brinquedos não são mais compartilhados porque foram concebidos para distrações solitárias. Os videogames e os computadores predominam e conduzem as crianças ao individualismo, deixando-as despreparadas para o exercício da convivência social mais saudável.  
Sinto saudades do meu tempo de criança, um tempo feliz e, seguramente, muito mais saudável do que os dos dias atuais.



Maurilio Tadeu de Campos é professor, poeta e escritor. Membro efetivo da Academia Santista de Letras e presidente da Contemporânea Projetos Culturais. É autor do livro “Relações & Compromissos”, editado em 2010.


Imagem retirada da Internet: empinador de Pipa


Weder Soares dos Santos - Poema


Faísca de Buriti

    Poema dedicado ao amigo poeta Valdivino Braz

Deus menino
Abençoe os poetas,
seus cadernos e letras,
tempere rimas
com pimenta de cheiro.
Da acidez dos cantos
adoce uma estrofe pequenina
bem feita com nome de menino.
Sou faisca de asteroide,
Singela janela,
Na luz de meia estação.
Poeta maturado,
Sereno, maldade,
Saudades,
no lombo da liberdade.
Fui amigo da fome,
com ela me banqueteei
de nada.
Do nada,
bordei a pauta,
apontei os lapsos,
segurei o lápis,
e tirei do borralho
Braz as
que espalhei
pelos vãos
da terra partida,
perdida nos sonhos
de um menino,
faisca,
poema,
estradas
de outras esferas.
Segurei
na mão de Deus,
tapeei o capeta,
na sua cauda encardida
amarrei um cometa.
Escombros amarelos,
maça envenenada,
bruxa malvada,
herói sem capa,
ou espada
abrindo o Porteirão.
Deus mundo,
caduco,
nos cascos do tempo.
Lama, lima,
lâminas,
açoitando a pele.
Lá estão elas
as procelas encadernadas
capa, contracapa
anunciando a aurora bucólica.
Poeta de chapéu
bengala e bigodes.
A Infância ainda canta,
no embornal surrado,
no estranho de suas retinas:
meninas amadas,
no escuro das madrugadas.
Sobre a face das pedras
Tapiocangas.
Hoje saliva amadurecida,
versos menino,
vozes
Poeti(a)mando,
Permitindo eternidade.

Lacordaire Vieira - 1946 - 2011



FORMIGAMENTO





- O próximo - anunciou a recpcionista do Dr. Isaac.

As pessoas se olham sem saber quem é o próximo, mas a dúvida se dissipa em seguida com a chamada pelo nome:

-Miúcha! Quem é Miúcha?
-Sou eu, meu bem!
-Pode entrar!

Miúcha se levanta com o assombro de todos pela beleza global de sua altura e entra pela porta semi-aberta do consultório.
Dr. Isaac, cabeça baixa, examina-lhe a ficha: "Miúcha Miúra, brasileira, goiana, goianiense, 22 anos, Setor Oeste, modelo fotográfico."

- É a primeira vez?
- Como assim?
- O enjôo... quando começou?
- Há um mês mais ou menos...
- Desde que você trabalha na Agência?
- Há uns dois meses...
- Você já tinha sentido essas ânsias de vômitos antes?
- Do jeito de agora, não...
- Como é o seu trabalho?
- Difícil, doutor...muito difícil!
- Quantas horas por dia?
- Umas doze horas. Entro às dez da manhã e às vezes fico até meia-noite, uma hora...
- O que você faz?
- Tudo!
- Tudo como?
- É!...Todo tipo de fotografia...Todo tipo de pose. Nua! ...seminua!... madame... sensual... de todo jeito.
- Você fica tensa?
- Às vezes..
- Sente-se aí! (Indica-lhe uma caminha alta e branca com uma escadinha ao lado)
- Tire a blusa (Apalpa-lhe o pulso, mede a pressão)
- Deita! (Põe luvas brancas, pressiona a barriga e os seios).
- Dói?
- Não!
- E aqui?
- Também não!...
- Pode levantar (Senta-se novamente atrás da mesa com tampão de vidro e continua a consulta).
- Como são suas fezes?
- As minhas fezes?...
- É!... Se são amarelas, escuras? ...
- Amareladas...Acho que são amareladas... Nunca observei bem...
- Suas fezes ficam no fundo ou flutuam no vaso?
- Um pouco em cima... e um pouco embaixo... As primeiras que saem ficam em cima...
- Têm mau cheiro?
- Tem vez que tem... Mas não é sempre não...
- À noite, sente uma coceira no ânus?
- Outro dia, parece que percebi um formigamentozinho...
- Está bem! Faça esses exames, tome o lombrigueiro e volte na próxima semana (Passa-lhe o pedido e a receita, e anuncia para a recepcionista o fim da consulta).
- O próximo!
- O próximo! - repete a secretária abrindo-lhe a porta. (Ainda no ar, um suave sabor de perfume loiro...)



In. Detalhes em |Preto e Branco. Lacordaire Vieira. Goiânia:Editora da UCG, 1995, p.73-75
Imagem: Loira

Francisco Perna Filho - Poema



Foto by Francisco Perna Filho - Serra do Lageado - Tocantins


Este poema é uma homenagem ao Professor Lacordaire Vieira, que nos deixou ontem, 11 e outubro, aos 65 anos.


MONTANHA


A palavra pesada
persegue a pedra,
revela o austero pulsar do silêncio
e, com ele, inaugura um olhar de montanha.
Do alto, a alma encanta-se
e o olhar precipita-se em direção ao luzir da cidade.
Do baixo, o corpo, enfermo, claudica
e os braços perdem-se na impotência primordial
de uma escalada.
A montanha é sentida
e nela diviso o inferno e o paraíso
da Babel recriada.
Estando no centro,
a minha alma assesta a caverna
na recomposição do paraíso Dantesco.
Dessa forma,
a montanha enternece o poeta
e a palavra mais leve
revela a montanha/palavra
Refletida no olhar.

Caio Fernando Abreu - Conto


Linda, uma história horrível


    Para Sergio Keuchguerian                          




Só depois de apertar muitas vezes a campainha foi que escutou o rumor de passos descendo a escada. E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro — agora, que cor? — e ouviu o latido desafinado de um cão, uma tosse noturna, ruídos secos, então sentiu a luz acesa do interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre sua cara de barba por fazer, três dias. Meteu as mãos nos bolsos, procurou um cigarro ou um chaveiro para rodar entre os dedos, antes que se abrisse a janelinha no alto da porta.

Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os olhos para vê-lo melhor. Mediram-se um pouco assim — de fora, de dentro da casa —, até ela afastar o rosto, sem nenhuma surpresa. Estava mais velha, viu ao entrar. E mais amarga, percebeu depois.

— Tu não avisou que vinha — ela resmungou no seu velho jeito azedo, que antigamente ele não compreendia. Mas agora, tantos anos depois, aprendera a traduzir como que-saudade, seja-benvindo, que-bom-ver-você ou qualquer coisa assim. Mais carinhosa, embora inábil.

Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito, contatos, afagos. Afundou tonto, rápido, naquele cheiro conhecido — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, creme de beleza e carne velha, sozinha há anos. Segurando-o pelas duas orelhas, como de costume, ela o beijou na testa. Depois foi puxando-o pela mão, para dentro.

— A senhora não tem telefone — explicou. — Resolvi fazer uma surpresa. Acendendo luzes, certa ânsia, ela o puxava cada vez mais para dentro. Mal podia rever a escada, a estante, a cristaleira, os porta-retratos empoeirados. A cadela se enrolou nas pernas dele, ganindo baixinho.

— Sai, Linda — ela gritou, ameaçando um pontapé. A cadela pulou de lado, ela riu. — Só ameaço, ela respeita. Coitada, quase cega. Uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir, comer e cagar, esperando a morte.
— Que idade ela tem? — ele perguntou. Que esse era o melhor jeito de chegar ao fundo: pelos caminhos transversos, pelas perguntas banais. Por trás do jeito azedo, das flores roxas do robe.

— Sei lá, uns quinze. — A voz tão rouca. — Diz—que idade de cachorro a gente multiplica por sete.
Ele forçou um pouco a cabeça, esse era o jeito:
— Uns noventa e cinco, então.
Ela colocou a mala dele em cima de uma cadeira da sala. Depois apertou novamente os olhos. E espiou em volta, como se acabasse de acordar:
— O quê?
— A Linda. Se fosse gente, estaria com noventa e cinco anos.
Ela riu:
— Mais velha que eu, imagina. Velha que dá medo. — Fechou o robe sobre o peito, apertou a gola com as mãos. Cheias de manchas escuras, ele viu, como sardas (ce-ra-to-se, repetiu mentalmente), pintura alguma nas unhas rentes dos dedos amarelos de cigarros. — Quer um café?
— Se não der trabalho — ele sabia que esse continuava sendo o jeito exato, enquanto ela adentrava soberana pela cozinha, seu reino. Mãos nos bolsos, olhou em volta, encostado na porta.

As costas dela, tão curvas. Parecia mais lenta, embora guardasse o mesmo jeito antigo de abrir e fechar sem parar as portas dos armários, dispor xícaras, colheres, guardanapos, fazendo muito ruído e forçando-o a sentar — enquanto ele via. Manchadas de gordura, as paredes da cozinha. A pequena janela basculante, vidro quebrado. No furo do vidro, ela colocara uma folha de jornal. País mergulha no caos, na doença e na miséria — ele leu. E sentou na cadeira de plástico rasgado.

— Tá fresquinho — ela serviu o café. — Agora só consigo dormir depois de tomar café. — A senhora não devia. Café tira o sono.
Ela sacudiu os ombros:
— Dane-se. Comigo sempre foi tudo ao contrário.

A xícara amarela tinha uma nódoa escura no fundo, bordas lascadas. Ele mexeu o café, sem vontade. De repente, então, enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis fugir. Como se volta a fita num videocassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a ruazinha de casas quase todas brancas. Até algum táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe do Passo da Guanxuma, até a outra vida de onde vinha. Anônima, sem laços nem passado. Para sempre, para nunca mais. Até a morte de qualquer um dos dois, teve medo. E desejou. Alívio, vergonha.

— Vá dormir — pediu. — É muito tarde. Eu não devia ter vindo assim, sem avisar. Mas a senhora não tem telefone.
Ela sentou à frente dele, o robe abriu-se. Por entre as flores roxas, ele viu as inúmeras linhas da pele, papel de seda amassado. Ela apertou os olhos, espiando a cara dele enquanto tomava um gole de café.
— Que que foi? — perguntou, lenta. E esse era o tom que indicava a abertura para um novo jeito. Mas ele tossiu, baixou os olhos para a estamparia de losangos da toalha. Vermelho, verde. Plástico frio, velhos morangos.
— Nada, mãe. Não foi nada. Deu saudade, só isso. De repente, me deu tanta saudade. Da senhora, de tudo.
Ela tirou um maço de cigarros do bolso do robe:
— Me dá o fogo.
Estendeu o isqueiro. Ela tocou na mão dele, toque áspero das mãos manchadas de ceratose nas mãos muito brancas dele. Carícia torta:
— Bonito, o isqueiro.
— É francês.
— Que é isso que tem dentro?
— Sei lá, fluido. Essa coisa que os isqueiros têm. Só que este é transparente, nos outros a gente não vê.
Ela ergueu o isqueiro contra a luz. Reflexos de ouro, o líquido verde brilhou. A cadela entrou por baixo da mesa, ganindo baixinho. Ela pareceu não notar, encantada com o por trás do verde, líquido dourado.
— Parece o mar — sorriu. Bateu o cigarro na borda da xícara, estendeu o isqueiro de volta para ele. — Então quer dizer que o senhor veio me visitar? Muito bem.

Ele fechou o isqueiro na palma da mão. Quente da mão manchada dela.
— Vim, mãe. Deu saudade.
Riso rouco:
— Saudade? Sabe que a Elzinha não aparece aqui faz mais de mês? Eu podia morrer aqui dentro. Sozinha. Deus me livre. Ela nem ia ficar sabendo, só se fosse pelo jornal. Se desse no jornal. Quem se importa com um caco velho?
Ele acendeu um cigarro. Tossiu forte na primeira tragada:
— Também moro só, mãe. Se morresse, ninguém ia ficar sabendo. E não ia dar no jornal.

Ela tragou fundo. Soltou a fumaça, círculos. Mas não acompanhou com os olhos. Na ponta da unha, tirava uma lasca da borda da xícara.

— É sina — disse. — Tua avó morreu só. Teu avô morreu só. Teu pai morreu só, lembra? Naquele fim de semana que eu fui pra praia. Ele tinha horror do mar. Uma coisa tão grande que mete medo na gente, ele dizia. Jogou longe a bolinha com a pintura da xícara. — E nem um neto, morreu sem um neto nem nada. O que mais ele queria.

— Já faz tempo, mãe. Esquece — ele endireitou as costas, doíam. Não, decidiu: naquele poço, não. O cheiro, uma semana, vizinhos telefonando. Passou as pontas dos dedos pelos losangos desbotados da toalha. — Não sei como a senhora consegue continuar morando aqui sozinha. Esta casa é grande demais pra uma pessoa só. Por que não vai morar com a Elzinha?

Ela fingiu cuspir de lado, meio cínica. Aquele cinismo de telenovela não combinava com o robe desbotado de flores roxas, cabelos quase inteiramente brancos, mãos de manchas marrons segurando o cigarro quase no fim.
— E agüentar o Pedro, com aquela mania de grandeza? Pelo amor de Deus, só se eu fosse sei lá. Iam ter que me esconder no dia das visitas, Deus me livre. A velha, a louca, a bruxa. A megera socada no quartinho de empregada, feito uma negra. — Bateu o cigarro. — E como se não bastasse, tu acha que iam me deixar levar a Linda junto?
Embaixo da mesa, ao ouvir o próprio nome a cadela ganiu mais forte.
— Também não é assim, não é, mãe? A Elzinha tem a faculdade. E o Pedro no fundo é boa gente. Só que.
Ela remexeu nos bolsos do robe. Tirou uns óculos de hastes remendadas com esparadrapo, lente rachada.
— Deixa eu te ver melhor — pediu.

Ajeitou os óculos. Ele baixou os olhos. No silêncio, ficou ouvindo o tic-tac do relógio da sala. Uma barata miúda riscou o branco dos azulejos atrás dela.

— Tu estás mais magro — ela observou. Parecia preocupada. — Muito mais magro.
— É o cabelo — ele disse. Passou a mão pela cabeça quase raspada. E a barba, três dias.
— Perdeu cabelo, meu filho.
— É a idade. Quase quarenta anos. — Apagou o cigarro. Tossiu. — E essa tosse de cachorro?

— Cigarro, mãe. Poluição.
Levantou os olhos, pela primeira vez olhou direto nos olhos dela. Ela também olhava direto nos olhos dele. Verde desmaiado por trás das lentes dos óculos, subitamente muito atentos. Ele pensou: é agora, nesta contramão(*). Quase falou. Mas ela piscou primeiro. Desviou os olhos para baixo da mesa, segurou com cuidado a cadela sarnenta e a trouxe até o colo.

— Mas vai tudo bem?
— Tudo, mãe.
— Trabalho?
Ele fez que sim. Ela acariciou as orelhas sem pêlo da cadela. Depois olhou outra vez direto para ele:
— Saúde? Dizque tem umas doenças novas aí, vi na tevê. Umas pestes.
— Graças a Deus — ele cortou. Acendeu outro cigarro, as mãos tremiam um pouco. — E a dona Alzira, firme?

A ponta apagada do cigarro entre os dedos amarelos, ela estava recostada na cadeira. Olhos apertados, como se visse por trás dele. No tempo, não no espaço. A cadela apoiara a cabeça na mesa, os olhos branquicentos fechados. Ela suspirou, sacudiu os ombros:

— Coitada. Mais esclerosada do que eu.
— A senhora não está esclerosada.
— Tu que pensa. Tem vezes que me pego falando sozinha pelos cantos. Outro dia, sabe quem eu chamava o dia inteiro? — Esperou um pouco, ele não disse nada. — A Cândida, lembra dela? Ô negrinha boa, aquela. Até parecia branca. Fiquei chamando, chamando o dia inteiro. Cândida, ô Cândida. Onde é que tu te meteu, criatura? Aí me dei conta.

— A Cândida morreu, mãe.

Ela tornou a passar a mão pela cabeça da cadela. Mais devagar, agora. Fechou os olhos, como se as duas dormissem.
— Pois é, esfaqueada. Que nem um porco, lembra? — Abriu os olhos. — Quer comer alguma coisa, meu filho?
— Comi no avião. 
Ela fingiu cuspir de lado, outra vez.
— Cruz credo. Comida congelada, Deus me livre. Parece plástico. Lembra daquela vez que eu fui? — Ele sacudiu a cabeça, ela não notou. Olhava para cima, para a fumaça do cigarro perdida contra o teto manchado de umidade, de mofo, de tempo, de solidão. — Fui toda chique, parecia uma granfa. De avião e tudo, uma madame. Frasqueira, raiban. Contando, ninguém acredita. — Molhou um pedaço de pão no café frio, colocou-o na boca quase sem dentes da cadela. Ela engoliu de um golpe. — Sabe que eu gostei mais do avião do que da cidade? Coisa de louco, aquela barulheira. Nem parece coisa de gente, como é que tu agüenta?
— A gente acostuma, mãe. Acaba gostando.
— E o Beto? — ela perguntou de repente. E foi baixando os olhos até encaixarem, outra vez, direto nos olhos dele.
Se eu me debruçasse? — ele pensou. Se, então, assim. Mas olhou para os azulejos na parede atrás dela. A barata tinha desaparecido.
— Tá lá, mãe. Vivendo a vida dele.
Ela voltou a olhar o teto:
— Tão atencioso, o Beto. Me levou pra jantar, abriu a porta do carro pra mim. Parecia coisa de cinema. Puxou a cadeira do restaurante pra eu sentar. Nunca ninguém tinha feito isso. — Apertou os olhos. — Como era mesmo o nome do restaurante? Um nome de gringo.
— Casserole, mãe. La Casserole. — Quase sorriu, ele tinha uns olhos de menino, lembrou. — Foi boa aquela noite, não foi?
— Foi — ela concordou. — Tão boa, parecia filme. — Estendeu a mão por sobre a mesa, quase tocou na mão dele. Ele abriu os dedos, certa ânsia. Saudade, saudade. Então ela recuou, afundou os dedos na cabeça pelada da cadela.
— O Beto gostou da senhora. Gostou tanto — ele fechou os dedos. Assim fechados, passou—os pelos pêlos do próprio braço. Umas memórias, distância. — Ele disse que a senhora era muito chique.
— Chique, eu? Uma velha grossa, esclerosada. — Ela riu, vaidosa, mão manchada no cabelo branco. Suspirou. — Tão bonito. Um moço tão fino, aquilo é que é moço fino. Eu falei pra Elzinha, bem na cara do Pedro. Pra ele tomar como indireta mesmo, eu disse bem alto, bem assim. Quem não tem berço, a gente vê logo na cara. Não adianta ostentar, tá escrito. Que nem o Beto, aquela calça rasgadinha. Quem ia dizer que era um moço assim tão fino, de tênis? — Voltou a olhar dentro dos olhos dele. — Isso é que é amigo, meu filho. Até meio parecido contigo, eu fiquei pensando. Parecem irmãos. Mesma altura, mesmo jeito, mesmo.
— A gente não se vê faz algum tempo, mãe.
Ela debruçou um pouco, apertando a cabeça da cadela contra a mesa. Linda abriu os olhos esbranquiçados. Embora cega, também parecia olhar para ele. Ficaram se olhando assim. Um tempo quase insuportável, entre a fumaça dos cigarros, cinzeiros cheios, xícaras vazias — os três, ele, a mãe e Linda.
— E por quê?
— Mãe — ele começou. A voz tremia. — Mãe, é tão difícil — repetiu. E não disse mais nada.
Foi então que ela levantou. De repente, jogando a cadela ao chão como um pano sujo. Começou a recolher xícaras, colheres, cinzeiros, jogando tudo dentro da pia. Depois de amontoar a louça, derramar o detergente e abrir as torneiras, andando de um lado para outro enquanto ele ficava ali sentado, olhando para ela, tão curva, um pouco mais velha, cabelos quase inteiramente brancos, voz ainda mais rouca, dedos cada vez mais amarelados pelo fumo, guardou os óculos no bolso do robe, fechou a gola, olhou para ele e — como quem quer mudar de assunto, e esse também era um sinal para um outro jeito que, desta vez sim, seria o certo — disse:
— Teu quarto continua igual, lá em cima. Vou dormir que amanhã cedo tem feira. Tem lençol limpo no armário do banheiro.
Então fez uma coisa que não faria, antigamente. Segurou-o pelas duas orelhas para beijá-lo não na testa, mas nas duas faces. Quase demorada. Aquele cheiro — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, cansaço, velhice. Mais qualquer coisa úmida que parecia piedade, fadiga de ver. Ou amor. Uma espécie de amor.
— Amanhã a gente fala melhor, mãe. Tem tempo, dorme bem. Debruçado na mesa, acendeu mais um cigarro enquanto ouvia os passos dela subindo pesados pela escada até o andar superior. Quando ouviu a porta do quarto bater, levantou e saiu da cozinha.

Deu alguns passos tontos pela sala. A mesa enorme, madeira escura. Oito lugares, todos vazios. Parou em frente ao retrato do avô — rosto levemente inclinado, olhos verdes aguados que eram os mesmos da mãe e também os dele, heranças. No meio do campo, pensou, morreu só com um revólver e sua sina. Levou a mão até o bolso interno do casaco, tirou a pequena garrafa estrangeira e bebeu. Quando a afastou, gotas de uísque rolaram pelos cantos da boca, pescoço, camisa, até o chão. A cadela lambeu o tapete gasto, olhos quase cegos, língua tateando para encontrar o líquido.
Ele abriu os olhos. Como depois de uma vertigem, percebeu-se a olhar fixamente para o grande espelho da sala. No fundo do espelho na parede da sala de uma casa antiga, numa cidade provinciana, localizou a sombra de um homem magro demais, cabelos quase raspados, olhos assustados feito os de uma criança. Colocou a garrafa sobre a mesa, tirou o casaco. Suava muito. Jogou o casaco na guarda de uma cadeira. E começou a desabotoar a camisa manchada de suor e uísque.

Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpura, da cor antiga do tapete na escada — agora, que cor? —, espalhadas embaixo dos pêlos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o chão. Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da cadela quase cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pêlos. Crespos, escuros, macios.
— Linda — sussurrou. — Linda, você é tão linda, Linda.

(*) Ana Cristina César: "A teus pés".

In.Os Dragões não Conhecem o Paraíso. São Paulo: Companhia das Letras 1988.
Imagem retirada da Internet: cigarro

Tomas Tranströmer - Poema


PÁSSAROS MATINAIS 



Desperto o automóvel
que tem o pára-brisas coberto de pólen.
Coloco os óculos de sol.
O canto dos pássaros escurece.

Enquanto isso outro homem compra um diário
na estação de comboio
junto a um grande vagão de carga
completamente vermelho de ferrugem
que cintila ao sol.

Não há vazios por aqui.

Cruza o calor da primavera um corredor frio
por onde alguém entra depressa
e conta como foi caluniado
até na Direcção.

Por uma parte de trás da paisagem
chega a gralha
negra e branca. Pássaro agoirento.
E o melro que se move em todas as direcções
até que tudo seja um desenho a carvão,
salvo a roupa branca na corda de estender:
um coro da Palestina:

Não há vazios por aqui.

É fantástico sentir como cresce o meu poema
enquanto me vou encolhendo
Cresce, ocupa o meu lugar.

Desloca-me.
Expulsa-me do ninho.
O poema está pronto.

Tradução do poeta João Luís Barreto Guimarães

Imagem retirada da Internet: pássaros

Leia também

Valdivino Braz - Poema

Soldado ucraniano Pavel Kuzin foi morto em Bakhmut  - Fonte BBC Ucrânia em Chamas - Século 21                               Urubus sobrevoam...