Darcy França Denófrio - Poema


Foto by Sinésio Dioliveira


Ínvio lado




Há um lado da flor
que não penetramos:
talvez a reserva sitiada
onde guarda seu aroma.

Quase sempre esbarramos
em seus ferrões de defesa
e sangramos nossa dor
pela ponta dos espinhos.

E aí então paramos
e olhamos só por fora
a beleza que se entrega
com sua cota de reserva.

É do outro lado (do mistério)
que não alcançamos
que a flor explode
em toda sua grandeza.

É lá que se contorceu
e guardou sua história
e sangrou as suas gotas
e a solidão que (sobre) carrega.

Quem olha uma flor
ou um ser desabrochado
vê um prisma (feio ou lindo)
jamais o seu lado.
                       inviolado.



In.BRASIL, Assis. A Poesia Goiana no século XX. Goiânia:Fundação Cultural Pedro Ludovico Teixeira/Rio de Janeiro: Imago, 1997, p.153.

Valdivino Braz - Poema


As jóias de Netuno


surdo rumor de ondas se avoluma
para os estrondos de espuma;
estilhaços de fúria fragmentária,
os cristais feito jóias,
perdigotos de Netuno.
Fraturas de oceano,
salso cuspe de espuma e louça,
os nácaros, côncavos destroços.
O que há de maestro e música,
além do bramor de monstro,
nisto de Atlântico.
Sinistra massa, mista
de crustáceos e moluscos -
lagostos pedúnculos de antênulas,
caco de acéfalos hipocampos,
espongiários espantos.
De hábitos solitários e anêmonos,
de celeteradas pedras,
isto de florir-se
o reito das actíneas.
Outra é água-viva,
mija-vinagre,
urtiga-do-mar,
isto de queimar.
Transparência de gelatina,
e de secreto nas entranhas marinhas,
as coisas-medusas,
tanto quanto não ser
a vida um mar de rosas.
Umas formas eriçadas,
uns ouriços,
uns crespos de abrir-se e fechar-se
- de não-me-toques -,
marinhos espinhos.
E coisoutras peludas,
isto análogo púbis,
estranhos novelos de quelíceras.
Uns mijos de esponja,
de Nadja,
de nojo.
Umas pérolas nada pérolas,
num colar de búzios.
Com a fileira de pés ambulacrários,
a esdruxula estrela,
uma crosta, uma casca,
parece que morta.
Vergue-se-lhe, entanto, o centro,
ei-la que ressuscita:
ondula-se o mar de áspero dorso,
onde varetas possibilitam
articula-se o dentro,
e pena é vê-lo ondular-se,
por certo que de dor,
isto de só restar devolvê-lo ao mar,
arremessá-lo feito disco voador.


In. Brasil, Assis. A poesia Goiana no século XX. Rio de Janeiro:Imago/Fundação Cultural Pedro Ludovico Teixeira. 1997, p.201-2.
Imagem retirada da Internet: fauna submarina

Heleno Godoy - Poema


O ESPELHO




Diante de um espelho não se põe
um sujeito, mas uma linguagem.

Nele não se articula um rosto,
mas uma fala comprometida.

O espelho não é, pois, inocente,
reflete o abismo de uma ousadia,

o jogo narcísico de uma mentira,
a ânsia de uma farsa, o medo

de uma falha, o fio branco de um
engodo recente ou centenário,

e o medo, na própria articulação
de suas angústias irresolvidas.


In. A Ordenação dos Dias. Goiânia:Puc Goiás/Kelps,2009, p.59.
Imagem retirada da Internet: espelho

Itamar Pires Ribeiro - Poema


ESBOÇO 1


Nos escava fundo, irriga
de sol e cachaça, de dor e sombra
e nos abandona, doa, à toa,
a outras fomes, um repertório
de beijos sem rumo, outras bocas
fomes que puem a roupa,
que gastam a cara,
nos soterra em terra alheia
cheia de jagunços,
grão que somos então, um casulo
um acaso de pólvora junto ao fogo,
amor irriga de sangue
a clara nata do olhar
uma veia vital no cristal do olho,
mancha sem explicação no mármore da deusa.
Palas Athena, quando te entenderemos?


In.A Arte de Pintar Elefantes. Goiânia: AGEPEL (Pali-palã), 2000,p.41.
Imagem retirada da Internet: casulo

Amadeus Amado - Poema


Evocação


rabisco no guardanapo
a tua face esquecida:
não sei nada sobre desenho.

Imagem retirada da Internet: Nanquin


Lau Siqueira - Poema



razões noturnas





os dias devoram nosso medo
aves de vôo longe que somos

...ilhas de pouco mar
pensamentos ancorados
à beira bar

alimentos de sombra e luz
sobre as varandas


distâncias alimentadas
pelo esgar do infinito


(respiramos fuligem e
certa dose imantada
de coisas que irão
compor profusões do
tempo que nunca irá
permanecer entre o
sol e a escuridão sem
luar)


a vida carrega
algumas metades de cada
metade morta

In. Poesia Sim
Imagem retirada da Internet: vela

Amadeus Amado - Poema


Impressões


A rua vazia veloz:
os carros pararam no tempo
e os homens aguardam o verde sinal.
Casas resistem indiferentes
ao menino que brinca sozinho na escada.
Um céu de domingo,
um guarda sonâmbulo,
um olhar enviesado,
uma mulher confere as roupas no varal.
Nada sabem da minha solidão. 

Imagem retirada da Internet: rua vazia

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