Maria Teresa Horta - Poema


          
Beijo  
o à vontade das mãos  
na imagem dos homens  
   
O oceano  
por entre o oceano  
   
a paz estagnada  
no contorno dos espelhos  
   
Beijo-te  
na terra à secreção  
dos passos  
   
ódios redondos  
acuado de seios  
   
a noite na espessura    
quente  
das almofadas sem manhã  
   
a imortalidade    
abortada  
que mulheres conduzem  
presas  
pelo ventre e saciadas  
de filhos  
   
Beijo  
o absoluto contido  
nos objetos sem casta  
   
a incerteza branca  
das paredes  
imóveis  
   
a insalubridade arqueada  
no silêncio espesso  
das portas sem casas  
com jardins malogrados  
no início do nada  
como se depois das vertentes  
árvores fossem  
chuva  
ou nuvens fossem árvores  
   
Beijo-vos  
a todos por de dentro  
dos lábios  
   
as línguas da areia  
nas bocas das praias  
   
golfos quadrados  
de alvorarem  
barcos  
   
barcos erectos  
agressivos de mastros  
   
A cidade é nossa  
   
Beijo-te  
na cidade  
nas ruas onde carros  
são flores  
que crescem em ruídos  
de palmas  
   
Beijo-te  
na sede aguda  
que gaivotas têm de céu  
e de estátuas  
   
estátuas anemia  
de cabelos   
em patamares de doença  
   
missivas acres  
de grades aciduladas  
   
a água é no princípio  
das palavras  
   
veia fechada  
saliente nas rochas  
   
água vertebrada  
com pulmões escondidos  
   
Beijo-te  
na água de caules  
sucessivos  
   
O grito é um navio  
perdido  
na memória  
   
Beijo-te  
no vidro  
   
searas verdadeiras  
de cristal p'lo  
ódio  
   
a batalha é o azul  
que deixamos atrás  
   
Beijo  
a súbita vontade  
da vigília dos partos  
os suicídios moles  
com precipícios vastos  
   
as pedras castradas  
nas retinas dos   
gatos  
   
horizonte  
na distância onde o crime  
acontece nas lâminas  
   
Fatos inconcretos  
na geometria  
do medo  
   
as viúvas são laranjas  
vestidas  
de encarnado  
   
Beijo-te  
esquecida na vertigem  
das algas  
   
o vento é oblíquo  
nas âncoras antecipadas  
   
as lágrimas  
são incógnitas  
na orgânica dos sons  
   
Introdução às pétalas  
na urgência da glória  
   
abelhas saqueadas  
na saliva ruiva  
em poentes sem vértice  
a boiarem na pele rugosamente  
opaca  
da lua  
   
A nossa vontade  
é nos ombros das plantas  
orvalho de febre sem objetivo  
   
Beijo-vos  
no bosque onde o animal  
   
é a penumbra  
e os joelhos da luz  
   
cogumelos de asfalto  
no centro de um inverno  
sem notícia nem espanto  
   
Beijo-vos   
prolongada de gerações  
em silêncio  
   
é para nós agora  
a vez  
das planícies que erguemos  
pelas ancas  
na curva onde o hálito  
é ansiedade no homem  
   
são para nós  
as notícias de mortes  
   
necessárias  
na simetria do espaço  
   
Beijo-vos  
nos pulsos de naufrágio  
circulares  
   
a onda é um motivo  
assimétrico de revolta  
   
Fronteiras mutiladas  
cedo  
rente aos cais  
   
Beijo-vos  
na vontade de recomeçarmos  
os olhos  
   
os cavalos  
são paisagens  
e o neon é um cavalo  
de mergulharmos os dedos  
   
Beijo-vos  
a todos nos meus lábios  
onde antiguidade de manhã  
é gaiola insubmersa  
de nunca existirem passos 


                          In. Palavrarte
                          Foto by Francisco Perna Filho 

Vasco Graça Moura - Poema


Auto-retrato com a musa





1
.


vejo-me ao espelho: a cara
severa dos sessenta,
alguns cabelos brancos,
os óculos por vezes
já mais embaciados.

sobrancelhas espessas,
nariz nem muito ou pouco,
sinal na face esquerda,
golpe breve no queixo
(andanças da gilette).

ia a passar fumando
mais uma cigarrilha
medindo em tempo e cinza
coisas atrás de mim.
que coisas? tantas coisas,

palavras e objectos,
sentimentos, paisagens.
também pessoas, claro,
e desfocagens, tudo
o que assim se mistUra

e se entrevê no espelho,
tingindo as suas águas
de um dúbio maneirismo
a que hoje cedo. e fico
feito de tinta e feio.


2


quem amo o que é que pode
fazer deste retrato?
nem sabê-lo de cor,
nem tê-lo encaixilhado,
nem guardá-lo num livro,

nem rasgá-lo ou queimá-lo,
mas pode pôr-se ao lado
e ter prazer ou pena
por nos achar parecidos
ou não achar. quem amo

não fica desenhado,
fica dentro de mim
e é quando mais me apago
e deixo de me ver
e apenas me confundo,

amador transformado
na própria coisa amada
por muito imaginar.
assim nem john ashberry,
nem o parmegianino,

nem espelho convexo,
nem mesmo auto-retrato.
só uma sombra que é
na sombra de quem amo
provavelmente a minha.


3


quem amo tem cabelos
castanhos e castanhos
os olhos, o nariz
direito, a boca doce.
em mais ninguém conheço

tal porte do pescoço
nem tão esguias mãos
com aro de safira,
nem tanta luz tão húmida
que sai do seu olhar,

nem riso tão contente,
contido e comovente,
nem tão discretos gestos,
nem corpo tão macio
quem amo tem feições

de uma beleza grave
e música na alma
flutua nas volutas
de um madrigal antigo
em ondas de ternura.

é quando eu sinto a musa
pousando no meu ombro
sua cabeça, assim
me enredo horas a fio
e fico a magicar.







Apud Releituras
Imagem Magrite: Espelho

Vasco Graça Moura - Poema


Soneto do amor e da morte


quando eu morrer murmura esta canção 
que escrevo para ti. quando eu morrer 
fica junto de mim, não queiras ver 
as aves pardas do anoitecer 
a revoar na minha solidão. 

quando eu morrer segura a minha mão, 
põe os olhos nos meus se puder ser, 
se inda neles a luz esmorecer, 
e diz do nosso amor como se não 

tivesse de acabar, sempre a doer, 
sempre a doer de tanta perfeição 
que ao deixar de bater-me o coração 
fique por nós o teu inda a bater, 
quando eu morrer segura a minha mão. 



In.  Antologia dos Sessenta Anos


Imagem retirada da Internet: mãos dadas


Alexandre Bonafim - Poema


   
     
III



Do poema nada nos resta
a não ser essa viagem
rumo aos mares,
esse gosto de naufrágio
ao findar das paixões,
esse astrolábio partido.

A leitura do poema,
peixe cego, barco amputado,
nada nos ensina,
em nada modifica
a força das marés.

Rastro de espuma
na pele dos acasos,
o poema finca suas âncoras
no sal, na eternidade,
onde nossas ausências
ardem o grito dos corais.

O poema é nudez precária,
procela sem ventos, sem nuvens.
Quando nele adormecemos,
acordamos com os ossos fraturados,
vergastados pelas maresias.

O poema é tão inútil
quanto o mar ao fim da tarde.

Por isso seu esplendor é límpido
como a beleza da morte.



Do novo livro de poemas Celebração das marés
Imagem retirada da Internet: Astrolábio

Manuel Bandeira - Poema



Versos Escritos N'água


Os poucos versos que aí vão,
Em lugar de outros é que os ponho.
Tu que me lês, deixo ao teu sonho
Imaginar como serão.

Neles porás tua tristeza
Ou bem teu júbilo, e, talvez,
Lhes acharás, tu que me lês,
Alguma sombra de beleza...

Quem os ouviu não os amou.
Meus pobres versos comovidos!
Por isso fiquem esquecidos
Onde o mau vento os atirou.





Imagem retirada da Internet: folha seca

Manuel Bandeira - Poema




SATÉLITE


Fim de tarde.
No céu plúmbeo
A Lua baça
Paira
Muito cosmograficamente
Satélite.

Desmetaforizada,
Desmitificada,
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de cismas,
O astro dos loucos e dos enamorados.
Mas tão-somente
Satélite.

Ah Lua deste fim de tarde,
Demissionária de atribuições românticas,
Sem show para as disponibilidades sentimentais!

Fatigado de mais-valia,
Gosto de ti assim:
Coisa em si,
- Satélite.





In. Estrela da vida inteira. 4.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973, p.232.
Imagem retirada da Internet: Lua

Patativa do Assaré - Poema




O PEIXE


Tendo por berço o lago cristalino,
Folga o peixe, a nadar todo inocente,
Medo ou receio do porvir não sente,
Pois vive incauto do fatal destino.

Se na ponta de um fio longo e fino
A isca avista, ferra-a insconsciente,
Ficando o pobre peixe de repente,
Preso ao anzol do pescador ladino.

O camponês, também, do nosso Estado,
Ante a campanha eleitoral, coitado!
Daquele peixe tem a mesma sorte.

Antes do pleito, festa, riso e gosto,
Depois do pleito, imposto e mais imposto.
Pobre matuto do sertão do Norte!





Imagem retirada da Internet: Peixe
In. Recanto das Letras

Célio Pedreira - Poema



Cantiga de passarin



Que tempo é esse
passando ao contrário
levando a gente distante
bem longe.

Tem jeito assim
de passado e presente
diz um silêncio na gente
vereda.

E sem dar fé
a gente quer ser
passarin.



Manuel Bandeira - Poema


Minha grande ternura



Minha grande ternura
Pelos passarinhos mortos;
Pelas pequeninas aranhas.


Minha grande ternura
Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E ficaram mulheres feias;
Pelas mulheres que foram desejáveis
E deixaram de o ser.
Pelas mulheres que me amaram
E que eu não pude amar.


Minha grande ternura
Pelos poemas que
Não consegui realizar.


Minha grande ternura
Pelas amadas que
Envelheceram sem maldade.


Minha grande ternura
Pelas gotas de orvalho que
São o único enfeite de um túmulo.




Imagem retirada da Internet: passarinho morto

Manuel Bandeira - Poema



Poema do beco




Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
— O que eu vejo é o beco







Imagem retirada da Internet: beco de Roma

Manuel Bandeira - Poema


Evocação do Recife



Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
— Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê
na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras
mexericos namoros risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!


A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão


(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.


Rua da União...
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido
Capiberibe
— Capiberibe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras


Novenas
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela começou
a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
— Capiberibe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro
como a casa de meu avô.




In. Jornal de Poesia

Imagem retirada da Internet: Recife antigo

Edival Lourenço - Poema













Soneto de uma só nota




Nem me dou se sou sim ou se sou não
Já nem sei se sou grão ou se sou mó
Se sou um sol ou só um ser de pó
Ou se sou pó de luz de sol em grão


Nem me dou se sou rés ou se sou vão
Já nem sei se sou vau ou sou nó
Se sou um ser do mal ou ser de dó
Dum cão em si sem dom ao rés do chão


Quem diz que ser é ser o sal de Ló?
Quem diz que ser é ter o dom de Jó?
Quem diz que ser tem que ser ás e são?


Quem diz que ser é ter o breu na mão?
E ter que ser de Deus ou ser do cão?
- No vão de ser eu só sei que sou só.



(26.11.07)

Foto by Raul Alexandre (Foto gentilmente cedida pelo Fotógrafo Português).

Mário Quintana - Poema


O Baú




Como estranhas lembranças de outras vidas,
Que outros viveram, num estranho mundo,
Quantas coisas perdidas e esquecidas
No teu baú de espantos... Bem no fundo,
Uma boneca toda estraçalhada!
(isto não são brinquedos de menino...
alguma coisa deve estar errada)
mas o teu coração em desatino
te traz de súbito uma idéia louca:
é ela, sim! Só pode ser aquela,
a jamais esquecida Bem-Amada.
E em vão tentas lembrar o nome dela...
E em vão ela te fita... e a sua boca
Tenta sorrir-te mas está quebrada!




In.Jayrus

Imagem retirada da Internet: Baú

Mário Quintana - Poema


A rua dos cataventos



Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!



Imagem retirada da Internet: vela

Ronaldo Costa Fernandes - Lançamento


UM HOMEM E O MUNDO


Este romance de largo fôlego, Um homem é muito pouco, de Ronaldo Costa Fernandes, apresenta-se como um desafio ao leitor, desde seu título enigmático. Para pensá-lo com eficácia, ainda que não seja sua decifração, lembro de uma sugestiva passagem do poema do poeta, pintor e revolucionário inglês William Blake (1757-1827), denominado “O casamento do céu e do inferno”:

“Sem contrários não há progressão. A atração e a repulsa, a razão e a energia, o amor e o ódio são necessários à existência humana. Desses contrários emerge o que os religiosos chamam o Bem e o Mal. O Bem é o passivo que obedece à Razão. O Mal é o ativo que nasce da Energia”.

Sendo um romance moderno e nosso contemporâneo, os contrários marcados com clareza abstrata por Blake, nele se expressam pela ambiguidade, pelo princípio da incerteza e ainda pelos inúmeros contrastes que nos marcam nas sociedades de classes que o capitalismo construiu e vem consolidando.

A narrativa da memória subterrânea dos tempos sombrios da ditadura militar se concentra no tema espinhoso da inviabilidade da constituição de um sujeito humano e social estável na nossa modernidade periférica perpassada pelo avanço e o atraso, como unidade contraditória. As personagens, a rigor, podem ser quase tudo e nada, ao mesmo tempo, inseridas num Rio de Janeiro que também é assim. Elas amam, odeiam, fogem, somem, escondem-se, viajam, retornam e não ficam, perseguem e são perseguidas, modulam-se por choques e trompaços, sem destino entre a vida e a morte.

Por isso a trama de seu mundo não se pode organizar: razão e desrazão trocam todo o tempo de lugar e de sinal, vivendo do acaso e no acaso. Assim também o Mal e o Bem, que nunca se completam nem são definitivos, estão sempre presentes, como virtudes sem metafísica nem transcendência.

As estruturas narrativas experimentam variações do ponto de vista, em terceira ou em primeira pessoas e a identificação dos narradores é sempre um exercício de descoberta para o leitor, mas uma vez percebidos acendem-se luzes para a coerência do narrado. Por sua vez os estilos dos enunciadores formam-se por um processo singular: as ações ou reflexões sempre comparecem como imagens, as quais são exploradas em várias facetas e se desdobram em muitas outras imagens, constituindo uma teia emaranhada que muito revela ou oculta em seu andamento, que podemos chamar dialético.
Valentim Facioli

SOBRE O AUTOR
Ronaldo Costa Fernandes publicou, entre outros romances, O viúvo (2005) e O morto solidário (1998). Ganhou vários prêmios, entre eles, o Casa de las Américas, Revelação de Autor da APCA e o Guimarães Rosa. Além de ficção, publicou poesia e ensaios. Dirigiu por nove anos o Centro de Estudos Brasileiros na Venezuela e, de volta ao Brasil, a Coordenação da Funarte em Brasília.


Fonte: Nankin
vendas@nankin.com.br

Mário Quintana - Poema


Canção da Garoa




Em cima do meu telhado,
Pirulin lulin lulin,
Um anjo, todo molhado,
Soluça no seu flautim.


O relógio vai bater;
As molas rangem sem fim.
O retrato na parede
Fica olhando para mim.


E chove sem saber por quê...
E tudo foi sempre assim!
Parece que vou sofrer:
Pirulin lulin lulin...



In. Jornal de Poesia

Imagem retirada da Internet: anjo no telhado

Arseni Tarkovski (1907-1989) - Poema

VIVA, VIDA!






Não acredito em premonições, não temo superstições,
veneno e calúnia não vigoram sobre mim.
Não existe morte, senão plenitude no mundo.
Somos todos imortais; tudo é imortal.
Não é preciso temer a morte,
seja aos dezessete ou aos setenta.
Nada há além de presente e de luz;
escuridão e morte não existem neste mundo.
Chegados que somos todos à margem, sou um dos escolhidos
para puxar as redes quando o cardume da imortalidade as cumular.
Habitai a casa, e a casa se sustentará.
Invocarei um dos séculos ao acaso: eu o adentrarei
e nele construirei minha morada.
Sento-me portanto à mesma mesa
que vossos filhos, mães e esposas.
Uma só mesa para servir bisavô e neto:
o futuro se consuma aqui agora,
e quando eu erguer a minha mão,
os cinco raios de luz convosco ficarão.
Omoplatas minhas como vigas mestras,
sustentaram por minha vontade a revolução dos dias.
Medi o tempo com vara de agrimensor:
eu o venci como se voasse sobre os Urais.
Talhei as idades à minha medida.
Rumamos para o sul, um rastro de poeira pela estepe.
As altas ervas agitavam-se entre vapores
e o grilo dançarino,
ao perceber com suas antenas as ferraduras faiscantes,
profetizou-me, como monge possuído, a aniquilação.
Atei então, rápido, meu destino à sela,
ergui-me sobre os estribos como um menino
e agora cavalgo os tempos vindouros a meu ritmo.
Basta-me minha imortalidade,
o fluir de meu sangue de uma para outra era,
mas em troca de um canto quente e seguro
daria de bom grado minha vida,
conquanto sua agulha voadora
não me arrastasse, feito linha, mundo afora.




Tradução de Álvaro Machado


Poema de 1950, lido pelo autor no filme O Espelho (1974), dirigido por seu filho, Andrei Tarkovski.
Imagem retirada da Internet: imortalidade

Louise Labé - Poema


Soneto VI




Duas ou três vezes seja louvada
A volta do Astro claro, e sem demora
Esta que o olho seu olhar adora.
Que de manhã ela seja saudada,

E que também consiga, enfatuada,
Beijar somente o melhor dom da Flora,
Melhor aroma que já viu a Aurora,
E nos seus lábios fazer a morada!

Somente a mim este bem é devido,
Por tantos prantos e tempo perdido:
Mas, quando o vir, tanto o festejarei,

Tanto usarei dos olhos o poder,
Para maior vantagem receber,
Que, em breve, grande conquista farei.



Tradução de Felipe Fortuna



In. Louise Lambé: amor e loucura. São Paulo: Siciliano, 1995, p.180.
Imagem retirada da Internet: lábios

Louise Labé - Poema


Soneto V




Vênus tão clara, pelo firmamento,
Escuta a voz que em queixas cantará,
Enquanto o rosto teu cintilará,
O seu cansaço e custoso tormento.

Meu olho vela em vigília a contento,
E ao te ver muito pranto verterá
Sobre meu leito mole, e o banhará,
Disso teus olhos têm conhecimento.

Pois são humanas as almas cansadas
Em seu repouso e sono apaixonadas.
Já não suporto o Sol e seu fulgor:

E quando estou quase toda desfeita,
E que meu corpo no leito se deita,
A noite toda eu choro minha dor.



Tradução de Felipe Fortuna



In. Louise Lambé: amor e loucura. São Paulo: Siciliano, 1995, p.178.
Imagem retirada da Internet: Afrodite

Louise Labé - Poema


Soneto IV




Desde que Amor cruel envenenou
O peito meu no fogo que fulmina,
Ardi-me sempre na fúria divina,
Meu coração jamais o abandonou.

Qualquer tormento, a que ele me obrigou,
Qualquer perigo e vindoura ruína,
Ou mau presságio que tudo termina,
Meu coração jamais se amedrontou.

Por mais que Amor nos ataque raivoso,
Mais nos obriga a vê-lo venturoso,
Sempre saudável ao vir combater:

Não é por isso que nos favorece,
Ele que os Deuses e os homens esquece,
Mas por mais forte aos fortes parecer.



Tradução de Felipe Fortuna



In. Louise Lambé: amor e loucura. São Paulo: Siciliano, 1995, p.176
Imagem retirada da Internet: Hera

Louise Labé - Poema


Soneto III



Ó ânsias longas, ó espera ausente,
Tristes suspiros, prantos costumeiros,
Formando em mim tantos rios e aguaceiros
De que meus olhos são fonte e nascente!

Ó crueldade, ó dureza inclemente,
Olhares pios dos astrais luzeiros,
Do coração pleno ó amores primeiros,
Quereis mais forte a minha dor ardente?

Que contra mim o Amor seu arco traga,
Que lance novos fogos, novos dardos,
Que ele se irrite, e contra mim se firme:

Tão atingida estou por tantos lados
Que, se quiser abrir-me nova chaga,
Não haverá lugar para ferir-me.



Tradução de Felipe Fortuna



In. Louise Lambé: amor e loucura. São Paulo: Siciliano, 1995, p. 174
Imagem retirada da Internet: cupido

Louise Labé - Poema

Louise Labé. Gravura de Pierre Woeiriot, 1555.


Soneto II

Ó belos olhos, ó olhares cruzados,
Ó quentes ais, ó lágrimas roladas,
Ó negras noites em vão esperadas,
Ó dias claros em vão retornados!

Ó tristes queixas, ó anseios dobrados,
Ó tempo gasto, ó aflições passadas,
Ó mortes mil em redes mil jogadas,
Ó duros males contra mim lançados!

Ó riso, ó fronte, dedos, mãos e braços!
Ó alaúde, viola, arco e compassos:
Chamas demais para uma só mulher!

DE ti me queixo: esses fogos que trago
No coração causaram muito estrago,
Mas não te queima um lampejo sequer.


Tradução de Felipe Fortuna



In. Louise Lambé: amor e loucura. São Paulo: Siciliano, 1995, p. 173.

Francisco Perna Filho - Poema


Cenas urbanas



Os tanques carregam
as noites pesadas do Alemão.
Torradas e café,
postos na mesa,
silenciam a fome de ternas crianças,
que nada sabem
do passeio noturno
dos homens de preto.
O velho no catre
repassa os dias de abandono.
Quem virá socorrê-lo?

Os homens dos prédios,
de fora da cena,
assistem pela TV
A tomada do morro,
a deposição das armas,
a fuga desesperada
dos insensatos agentes do pó.

O bêbedo,
prostrado na sua indiferença,
arrota estilhaços
e a miséria
das ruas.

Brasigóis Felício - Poema

Paisagem surrealista




Uma lua lunática

oculta-se nas nuvens.


Um vento vadio agita

a cabeleira das árvores.


Um velho ronca,

sentado

em uma cadeira de balanço.


Na rua espandongada

uma tia patética

vai caindo de bêbada.

Ao longe, entre

destroços, vejo

um chevette velho.

Ao lado esgoelam

numa festa brega.


Numa janela esquisita

uma moça feia

come uma salada mista,

enquanto na esquina avista

uma parada cívica..


Eta vida besta, Meu Deus!



Imagem retirada da Internet: surrealismo

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