Manoel de Barros - Poema






Esta semana, farei uma homenagem ao poeta Sul-Mato-grossense Manoel de Barros, um dos nossos maiores poetas. Sobre ele, escrevi a minha Dissertação de Mestrado em Letras: "Criação e Vanguarda - Bopp e Barros", um estudo comparado entre ele e Raul Bopp, poeta Sul-Rio-Grandense. Caso alguém se interesse pelo livro, poderá adquiri-lo pelo e-mail: framper@terra.com.br. Boa Leitura !



UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO



Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:


a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca

b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer

c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação

e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos

f) Como pegar na voz de um peixe

g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.





II




Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de uma begônia. Ou
uma gravanha.


Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.







III




Repetir repetir - até ficar diferente
Repetir é um dom do estilo.



In.Livro das Ignorãças. Manoel de Barros. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994, p.11-12.

Selo/Prêmio














Recebi este selinho da minha amiga Ângela
http://entremeios-angela.blogspot.com/


indico os seguintes blogs para reberem o selo:

Manuel Bandeira - Poema



Manuel Bandeira






Maçã


Por um lado te vejo como um seio murcho

Pelo outro como um ventre de cujo umbigo pende ainda o cordão placentário

És vermelha como o amor divino

Dentro de ti em pequenas pevides

Palpita a vida prodigiosa

Infinitamente

E quedas tão simples

Ao lado de um talher

Num quarto pobre de hotel


Imagem: http://imagens.kboing.com.br/papeldeparede/7331maca.jpg

Manuel Bandeira - Poema






Manuel Bandeira









A Arte de Amar


Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.


Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.


Jádson Barros Neves - Conto



Jádson Barros Neves, estamos diante de um dos maiores contistas deste País. Tocantinense de Guaraí, dono de uma verve literária que encanta, Jádson já conquistou mais de uma dezena de prêmios, dentre eles, o "Prêmio Cidade de Belo Horizonte", o "Prêmio João Guimarães Rosa", da Radio France Internationale. Hoje, para deleite de todos, leremos o conto "Esta noite Não Durmo" que ganhou o Prêmio Cidade de Belo Horizonte/2008. Boa Leitura!



PRÊMIO CIDADE DE BELO HORIZONTE/2008


Esta Noite Não Durmo

Jadson Barros Neves


Conservo este quarto de tábuas iluminado apenas pela luz que vem da praça e das casas vizinhas, mas, à medida que a noite cresce e as janelas vão-se fechando, o cômodo fica bastante escuro. Então me encolho no colchão e permaneço acordado até de manhã, esperando a mulher que me traz o café e o cuscuz. Ela conversa comigo, olhando-me nos olhos (talvez enraivecida porque eu lhe tirei o quarto) e depois se vai. À noite, ela chega com mais comida, um balde com água, toalha e roupas. São roupas de diferentes medidas e nunca se ajustam direito a meu corpo. A mulher espera que eu tome banho e me vista e só então sai. Depois, fico sozinho com meus pensamentos, com a razão de estar aqui.

Hoje, ouvi o barulho dos cascos dos cavalos. Quatro homens pararam na calçada perto do quarto e ficaram conversando até tarde. Depois que eles saíram, as luzes da rua se apagaram, e mais uma vez tentei um cochilo. De noite, o silêncio se torna enorme, e qualquer ruído, por menor que seja, compõe uma ressonância sobrenatural.

Antes de tudo isso, minha vida era feita do respeito dos homens. Rapaz, já levava mais de um morto comigo e por isso me respeitavam. Eu não era de andar armado, quebrando cadeiras em cabarés ou humilhando as pessoas. Meu costume era ladino. Quando terminava o serviço, continuava minha vidinha de quintal precisando de enxada, de vendedor de ouro em pó. A polícia esteve mais de uma vez vasculhando meu quarto, mas nada encontrou. Fez perguntas a minha mãe, me disse muitas e boas, inclusive que um dia me encontrariam com a boca cheia de formiga.

Quando as coisas começavam a apertar, eu saía para outras cidades. Uma vez, me contrataram para matar um delegado. Eu conhecia o sujeito e sua fama. Foi um homem que havia apanhado dele na cadeia quem me contratou. Depois de três anos, tendo conseguido uma boa quantia de ouro no garimpo, coisa rara hoje em dia, aparece-me numa tarde de domingo. Fiz cara de difícil entendedor, como sempre faço, levando o sujeito até onde se pode levar alguém nessa barafunda toda. Quando revelou o nome da vítima, comentei que era um serviço muito difícil. O homem contou que eu tinha todo o tempo do mundo. Adiantou-me um pouco do dinheiro, para as despesas.

Depois de anos de valentia, as pessoas ficam descuidadas. E foi o que aconteceu ao delegado. Várias vezes, refiz seu trajeto, seguindo-o às vezes de muito perto, sem que ele percebesse. Ele saía de casa por volta das sete da manhã, dava um pulo na delegacia e depois ia almoçar e passava as tardes extorquindo comerciantes. A sua rotina se quebrava na quarta-feira à noite, quando, em vez de partir para a zona, ia tomar sorvete.

Perto das onze, desligavam os motores a diesel, e a cidade mergulhava na escuridão. Consegui que meu contratante subornasse o funcionário da pequena usina, para este causar um blecaute às nove da noite de uma quarta-feira. Pedi um bom revólver e balas explosivas e, na noite da quarta, cinco minutos para as nove, lá estava eu: de chapéu para sombrear o rosto e de preto para escurecer o corpo, sorveteria adentro. Sentei-me a um canto, pedi um refrigerante e aguardei. O delegado apareceu com dois homens. A energia acabou pouco depois das nove. Esperei o burburinho natural e, quando voltaram com o lampião aceso, dei o primeiro tiro, bem na cabeça do delegado. Ele bateu no balcão de madeira, caiu e ficou agonizando entre as cadeiras. Um homem virou-se e disparou, marca de bala na minha orelha esquerda, esse pequeno rasgão. Atirei de volta. As balas enchiam o peito do homem, e ele voou, caindo sobre as mesas. O outro saiu derrubando tudo e mal ouvi quando seus passos silenciaram na rua. Aí corri também. Passei pela casa de meu contratante e entreguei-lhe a roupa e o revólver e voltei para o hotel.

Coisa que nunca fiz foi receber tudo adiantado ou logo após o serviço. Dá na vista. Quem tem dinheiro mostra, não há jeito. Recebi e fui gastando aos poucos. Mesmo para mamãe, comprei apenas um vestido. Ela sempre pensou que eu me virasse nos garimpos da região, e minha vida era um pouco semelhante à de um garimpeiro: épocas de fartura, quando há ouro no estio, e outras de aperto, nas chuvas, quando os garimpos fecham. Claro que nunca vivi no sufoco. Eu tinha bons músculos, boa pontaria e muita folga, era isso. Eu conhecia o ditado: “Cabeça vazia, oficina do diabo.” Mas eu planejava bem minhas ações, pois sabia que a chibata para meu lado, quando viesse, seria de arrancar o couro.

O tempo vai e vem. A gente se acostuma até com o que não presta. E se pensa que o silêncio cose o silêncio, engano, pois uma vez arranhado, o dito fica ferido, a ferida está exposta. Assim, aconteceu novamente. Arranjaram outro serviço para eu fazer. Iria acompanhado de dois homens. Sempre preferi trabalhar sozinho, mas me convenceram a ter ajuda dessa vez. Depois de tudo acabado, cada qual em seu canto. Iríamos emboscar um sujeito que depois eu soube ser um líder de sem-terra. Não mexo com esse pessoal que está por aí desejando se fixar. Cisma minha: “Seguro morreu de velho e Desconfiado ainda é vivo”. A coisa é simples: nem a polícia e nem os fazendeiros gostam dos sem-terra. Eu não gosto de polícia nem de fazendeiros. E dá pena ver aquela criançada remelenta acordando de manhã cedo nos acampamentos, morta de fome e com a barriga estufada de vermes.

Eu não sabia que era para matar gente deles. Uma noite, nos reunimos para os últimos acertos. Estávamos no bar, quando senti algo de anormal acontecendo. Não se leva mulher para esse tipo de encontro, e meus dois companheiros chegaram com duas putas e uma menina de uns quinze anos. Ouvi o que tinham para me dizer, aguardei que me esquecessem. Levantei e fui ao banheiro, no final de um corredor.

Eu saía, quando a menina se aproximou e revelou que os homens estavam ali para me matar. Uma das mulheres, tia dela, lhe dissera. Voltei à mesa, fingindo não saber de nada. Fingi até quando a mocinha me pediu para levá-la embora. Então comecei a brincar com ela, falando que era perigoso sair sozinha àquela hora. Ficamos nesse jogo, até quando um dos camaradas disse que me emprestaria a sua arma. Aceitei e saí com a moça, mas, da esquina, ao olhar para trás, vi as mulheres saindo. Retornei encostando-me à parede. Foi quando a energia acabou. Prendi o fôlego e esperei acenderem o lampião.

Quando a claridade azulada invadiu a calçada pelo retângulo da porta, fui surgindo com o revólver na mão. Aproximei-me da janela e vi os homens, conversando e rindo de costas para a rua. Atirei no rapaz que estava armado. Um tiro, uma queda. O outro se virou, abaixando-se, mas levou dois balaços e caiu. Atirei no lampião e corri dali. A noite estava escura. Atravessei uma ponte, joguei o revólver na água e corri para o hotel. No dia seguinte, parti para um garimpo. Fiquei três dias lá e retornei para casa, sem dinheiro, sem nada.

Alguma coisa estava mesmo errada, eu sentia disso. Porém, só tive certeza depois, quando os policiais apareceram em casa e dessa vez demoraram bem mais que o costume vasculhando tudo. Depois de muitas buscas inúteis, um sargento me olhou e disse.

__ Você tem idéia de quem era o rapaz que matou?

Argumentei que não havia assassinado ninguém, mas o sargento ficou na varanda, olhando para mim, manso naquela luz da manhã. Apurei e descobri que o rapaz era filho de um fazendeiro. Filho único, o que era pior. Tentei não me abalar, tentei ficar quieto, tentei cuidar de meu pequeno roçado, até que a conversa começou a correr. Minha mãe soube e uma noite me disse que iriam me matar. Disse, como se dissesse: “Você nasceu”. Entende?

Foi quando começou minha fuga, minha peregrinação. A princípio, fiquei escondido num acampamento dos sem-terra. Por mim, ficaria por lá. Levava uma vida tranquila, sem pedras no caminho. Dormia em redes, em cabanas frias á noite e acordava com os pássaros. Caçávamos, pescávamos, e nunca permanecíamos num mesmo local por muito tempo. Tomei gosto por essa vida. Assim correram anos. Um dia, recebi o recado de que minha mãe tinha morrido. Disseram-me sem rodeios. Recebi a notícia e apenas me recolhi. A mesma pessoa que me deu a notícia trouxe um par de sapatos. Eram os sapatos de meu pai. Depois que ele morreu, mamãe fechou definitivamente o cômodo que lhe servia de carpintaria e ali guardou os pertences dele. Nas raras vezes em que tive de me esconder ali, evitava baixar os olhos para o ângulo do canto direito, onde estavam os sapatos __ marrons, de bico apontando para a porta, a lingueta e a fivela resplandecente cruzando-se sobre o dorso.

No silêncio escuro desse quarto, estou pensando nisso tudo. Um dia, saí do acampamento. Então, certa noite, me tiraram de lá. Vim de barco e, mal vi as luzes do pequeno embarcadouro, trouxeram-me para este hotel. Pedi para ficar com o padre, mas me disseram que eu iria colocar em risco a vida dele. Ninguém tem sossego, é um ir e vir de caixões, de vinganças repetidas. Escolheram o hotel. Faz tempo que estou aqui.

No início, a moça fazia perguntas sobre minha vida. Esse quarto era o dela, eu soube quando a vi retirando a mala de baixo da cama. Dias atrás, ouvi o som engasgado de uma voz e, somente ao ouvi-lo repetidas vezes, descobri que era o ruído de minha voz. Estava só e precisava viver.

Hoje, depois que os homens saíram, choveu bastante. Olhei para a pracinha deserta e vi os cavalos imóveis debaixo da chuva. Dormi e despertei com vozes e uma porta batendo. Depois, o silêncio reinou. Permaneci na cama, imóvel, acordado. Ajustei meu cansaço à ausência do barulho e procurei descansar. Eu continuava unindo meus ouvidos aos outros sons que existem dentro do vazio. Logo, verei a claridade da manhã, e a moça virá.

Agora já é de manhã. A chuva parou e só existe aquele vento frio, que invade o quarto, vindo de tudo quanto é fresta. Consigo ver um pouco de claridade, ouço esse alarido inconfundível de pássaros. Mais um pouco, e ouço também as vozes masculinas. Logo a moça virá, penso. Fico apenas ouvindo, com meus olhos buscando claridade sob a porta. Quando a moça entrar, vou pôr a cabeça de fora e olhar o corredor. Preciso olhar, ver onde estou.

Ouço os passos dela. Sei que são dela. Abre a porta e fica me olhando com seus olhos redondos, debaixo das sobrancelhas espessas.

__ Agora você já pode sair __ é só o que me diz.

Afasta-se e sai. A princípio, meio tonto, investigo o corredor e vejo a mulher em sua blusa xadrez. O sol é apenas um fogo pálido que não dissolve a friagem.

Então ouço os homens no que pode ser a sala. Depois, vejo-os. No início, são dois, usam chapéu, vejo seus revólveres. Estico o pescoço para trás, na esperança de ver a moça, mas vejo apenas outros dois homens chegando pelo quintal. Antes que os quatros se agrupem, eu já estou batendo à porta de outro quarto, batendo e gritando, antes mesmo que os homens se aproximem e comecem a disparar.

Imagem:http://www.brasutil.com/config/imagens_conteudo/produtos/imagensGRD/GRD_2656_Lampião%20Verde.jpg

Raul Bopp - Poema






Raul Bopp






Bruxo



Longe
léguas adentro o Brasil parou
Parou a estrada

O homem pôs-se a decifrar a floresta
Deus ficou lá em cima recolhendo os silêncios

Curandeiro tomou diamba
Fez cosquinha de chamar sono
e virou bruxo

Estendeu a alma do lado de fora
Veio o gato e comeu

- Ai me leva! O rio crescia
Ficou só uma canoinha
- O vira-sebo te come!

Chegavam árvores e mais árvores
uma delas de raízes imensas
mastigando o Brasil

Vieram depois outros homens
Mandaram buscar o metro para medir a paisagem
Cobra Grande deu um peido: fium
Arvorezinha secou

Trovão tossiu feio
Tartaruga pôs a cabeça do lado de fora
ver se vinha chuva

- Ai me leva que está escuro
Bruxo esfregou os olhos

Floresta estava com fome
Formiga virou cipó
Vento assobiou Curupira passou
Cortou um pedaço da perna
A carne começou a gritar na barriga

Canoinha piquininha
desfiou-se na fumaça
Fumaça virou fumacinha

Ficou só o olho do bruxo
inchado
enorme
crescendo

Quando a sombra chegou
as árvores tinham fugido

Então a noite dissolveu sono
e meteu a floresta num saco



In. Cobra Norato e outros poemas. Raul Bopp. 13ª. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1984, p.109-110.


Raul Bopp - Poema





Raul Bopp















Coco de Pagu


Pagu tem os olhos moles
uns olhos de fazer doer.
Bate-coco quando passa.
Coração pega a bater.


Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.


Passa e me puxa com os olhos
provocantissimamente.
Mexe-mexe bamboleia
pra mexer com toda a gente.


Eli Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.


Toda a gente fica olhando
o seu corpinho de vai-e-vem
umbilical e molengo
de não-sei-o-que-é-que-tem.


Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.


Quero porque te quero
Nas formas do bem-querer.
Querzinho de ficar junto
que é bom de fazer doer.


Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.




In.Poesia completa de Raul Bopp. Augusto Massi. São Paulo/Rio de Janeiro: Edusp/José Olympio, 1998.

Raul Bopp por Antônio Houaiss - Parte Final


Cobra Norato






Hoje, apresento a última parte deste ensaio de Antônio Houaiss. O texto foi transcrito ipsis litteris, conservando a sua linguagem original. Acho importantíssimo reunir aqui neste espaço - Banzeiro - três grandes nomes das nossas Letras: Raul Bopp, Othon Moacyr Garcia e Antônio Houaiss. Boa Leitura!




(...)


Nas terras do Sem-fim, palmilhando-as todas, eu=Raul Bopp=leitor, metido na pele da Cobra Norato, faço-me o Cobra Norato e vou casar-me com a filha da rainha Luzia. Está-se em plena mitologia, vencendo todos obstáculos, inclusive os do espaço e do tempo. Toda racionalidade da ensaística era abandonada, em favor das regras de um jogo de imprevistos, previsíveis somente pela limitação ecológica, inclusive para os convidados do epitalâmio, o caxiri-grande, que na primeira versão já iria ter como convidada a paulista Tarsila, mas de certa ediç~so em diante iria também ter a do fraterno Augusto Meyer, pois o herói queria na sua festa nupcial "povo de Belém de Porto Alegre de São Paulo" em subidas e descidas que abarcassem o Brasil inteiro - festa nupcial que era, a seu modo, a descoberta da Amazônia, aberta tantas e tantas vezes à integração nacional, que essa de Bopp, passados quarenta anos, tem o direito de supor ser uma das mais pervividas dentre todas.

Assim Cobra Norato não apenas ficou como canto, senão que também como mito, como ato inaugural e como rito de iniciação - uma das fases da iniciação - da literatura brasileira.

A quem logrou esse feito, poder-se-ia pedir mais? Suspeito que sim, mas de coração pesado. A mim, basta-me esse poema para ter Raul Bopp no meu coração.

É por isso que, em lugar de deter-me alongadamente nos milagres dos versos de Cobra Norato, prefiro, em síntese, louvar-me do meu querido Othon Moacyr Garcia, a quem se deve o mais cabal estudo a respeito, intitulado - Cobra Norato, o poema e o mito -, publicado em 1962 pela Livraria São José, desta cidade do Rio de Janeiro.

Se alguma diferença se pode ter para com o ensaio de Othon Moacyr Garcia, creio que tal diferença, de pormenor, se esbate ante sua síntese aferidora - e com ela me identifico a tal ponto, que o só jeito de lhe ser fiel é transcrevê-la, ipsis litteris, aqui, para regozijo do leitor:


Em resumo: o mito de Cobra Norato, mito etiológico sincrético de origem amazônica, na sua feição de símbolo de fecundação, de símbolo de poder criador ou gerador, de símbolo de nascimento ou de maternidade, idéias que lhe são implícitas ou que dele decorrem pelos seus acidentes - digamos ecológicos, como águas e árvores e toda paisagem de um modo geral - oferecia ao poeta um conjunto de idéias-temas ricas pelo conteúdo poético, férteis em sugestões e adequadíssimas à veiculação das idéias-teses do movimento modernista. Essa coincidência de idéias-temas e idéias-teses, o Autor soube aproveitá-la, servindo-se, mas não abusando, dos artifícios que a língua lhe proporcionava e evidenciando um virtuosismo metafórico que é uma das suas maiores riquezas, tão expressivo e afeiçoado à natureza do tema, que a unidade do poema ressalta através de todas as suas peripécias. E essa é a grande virtude de Cobra Norato: a sua unidade inteiriça; nele fundem-se, numa só peça, como mensagem poética de grande ressonância, o simbolismo do tema, a paisagem, que é uma alegoria da terra, da geografia sem-fim, e a linguagem, plasmada em moldes de tal afetividade e universalidade, que funciona como um espelho - desses que reproduzem a imagem em miniatura - onde se refletem as particularidade regionais de toda a língua.

Sendo o único e verdadeiro poema épico da literatura brasileira (porque popular pela essência do tema e pela feição da forma verbal), já que as tentativas anteriores - desde de o Caramuru e O Uraguai até o I Juca Pirama e O Caçador de Esmeraldas e quantos se arrolem como tais - falta-lhes a feição da unidade temática e lingüística de vículo popular e legítimo sabor de brasilidade, - é Cobra Norato um dos melhores legados do Movimento Modernista, um dos grandes poemas destes sessenta anos de literatura brasileira do século XX. Seu valor é permanente.

E mais não direi. A não ser - amém.

ANTÔNIO HOUAISS
Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1972.






In.Cobra Norato e outros poemas.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira:1984



Raul Bopp por Antônio Houaiss


Como eu havia prometido, hoje prosseguiremos falando da poesia de Raul Bopp. Para homenageá-lo, segue uma nota introdutória ao poema épico Cobra Norato, de Raul Bopp, escrito por Antônio Houaiss, em 1972, que destaca a maestria de Bopp e a beleza poética desse poema cosmogônico, que, segundo ele, é o verdadeiro poema épico brasileiro. Boa Leitura!




Por Antônio Houaiss


O poema de Cobra Norato - nas suas versões textuais públicas, de 1931, 1947, 1951, 1954, 1956, 1967, 1969 (incluído no livro Putirum) e 1973 (esta) - inicia-se pelos versos


Um dia
eu hei de morar nas terras do Sem-fim

e termina, na versão de 1931, por

- Então adeus Cumpadre
Fico lê esperando
na boca da terra das febres do Sem-fim
enquanto na versão de 1969 (ou antes, não cotejei) termina por:

- Pois então até breve, compadre
fico lê esperando
atrás das serras do Sem-fim

Num caso como no outro está-se no mesmo caso - a geografia de Cobra Norato é das terras do Sem-fim: está-se em face de um espaço ignoto, que inicia ou termina em um sem-fim e termina ou inicia noutro sem-fim, tendo de permeio o sem-fim. Por isso, Cobra Norato e o Compadre, conversando entre si, conversando com entes ou seres ou coisas antropomorfizados, de sua passagem, são dois permanentes viandantes do sem-fim (melhor seria - como topônimo mítico - Sem-Fim), desde que o poema se enceta até que termina, ficando Cobra Norato adentro dessas terras e o Compadre no limiar delas, "na boca de terra das febres do Sem-fim" ou "atrás de serras do "Sem fim" - o que dá no memso, pela imensidão das mesmas.

Mas o Sem-fim tem um nome - que se caracteriza por tudo o que dentro lhe acontece: seu nome é a Amazônia, por suas águas, suas florestas, suas terras caídas, sua fecundidade, sua efervescência de vida, sua pululação de morte.

Essa geografia - que desde meados do século XIX começou a ser matéria da ensaística brasileira e estrangeira, culminada com nomes retumbantes quais os de Euclides da Cunha e Alberto Rangel - só incidentemente vinha sendo objeto da "arte literária" em sentido restrito. Mais ainda, entrando na "literatura", fê-lo pela porta da ficção, tornando-se "poética" através do gaúcho Raul Bopp.

Gaúcho ou menos gaúcho, isso parece incidente irrelevante para o caso: relevante é o fato de que sua era uma alma andarilha, perquiridora das paragens do mundo, viajora e viageira. Sua era, também, essa maneira sintética de ver o mundo, configurando-o verbalmente com umas poucas pinceladas essenciais e dando-o aos nossos olhos ouvidentes. Sua era, ainda, a adesão de vê-lo e dizê-lo fora dos cânones que o grupo de 1922 quisera quebrar então e ainda vigora, paralelo, numa proliferação escritora que está longe de ter sido vencida ou proscrita da república das letras. Sua era, por fim, a compreensão ou intuição ou intelecção ou percepção do que o universo amazônico, de que ele se deixara penetrar, não podia por ele ser verbalizado senão através de uma forma de representação oral - a chamada linguagem poética. Mas cantar a terra, mesmo sendo a do Sem-fim? Sim, se penetrada dos seus mistérios.

Bopp viu-os nos seus mitos, lendas, abusões, crenças - na sua cosmogonia. Iria ele, assim, qual Hesíodo ou Ovídio redivivos, dar a chave de explicação desse universo? Didaticamente?

Transfiguradamente. A fecundidade, para a vida e para a morte, ele viu-a sempre na sua Amazônia. Viu-a por certo, também, como sexo, humano, masculino, feminino. Viu-a provavelmente na sua própria carne - e perpassou a andação pelo Sem-fim à busca de sua Penélope, fiadeira e bordadeira não, mas filha da rainha Luzia.

(...)
Amanhã continuaremos.


In. Cobra Norato e outros poemas. 13ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.

Raul Bopp - Poema


Depois de uma rápida passagem pelo erotismo de Hilda Hilst, vamos resgatar um dos nossos maiores poetas: Raul Bopp. Além do seu poema mais famoso: Cobra Norato, ele nos legou inúmeros outros poemas, como este: Princípio. Amanhã falaremos mais sobre Bopp. Boa Leitura!








Princípio




No princípio era sol sol sol
O Amazonas ainda não estava pronto
As águas atrasadas
derramavam-se em desordem pelo mato

O rio bebia a floresta

Depois veio a Cobra Grande Amassou a terra elástica
e pediu para chamar sono
As árvores enfastiadas de sol combinaram silêncio
A floresta imensa chocando um ovo

Cobra Grande teve uma filha. Ficou moça
Um dia
ela disse que queria conhecer homem
Mas não encontraram rasto de homem

Então
começaram a adivinhar horizontes
e mandaram buscar de muito longe um moço

Ai! que houve festa na floresta!

Mas a filha da Cobra Grande não queria dormir com o noivo

porque naquele tempo não havia noite
A noite estava escondida atrás da selva
dentro de um caroço de tucunã
Ah! então vamos buscar o tucumã
pra dar de presente de casamento

Veio o Sapo Jabuti veio também
O Cameleão estava esperando sono
A Onça não pôde vir porque tinha emprestado os sapatos

Andaram Andaram

As vozes iam na frente procurando caminho

Desembarcavam árvores Raízes furavam a lama
a floresta crescia

Chô que depois de muito andar chegaram

- Esta é que é a noite?
- Será mesmo a noite?
- Ah! não acredito

Então vamos espiar o que tem dentro

Quando abriram o caroço
houve um estouro imenso
que cobriu tudo de escuro

A floresta inchou
Árvores sairam correndo
Um pedaço da noite entrou na barriga do Sapo.

Então
a filha da Cobra Grande pôde fazer dormezinho com o noivo.



In. Cobra Norato e outros poemas. 13ª ed.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p.93-94.
Imagem:O Ovo ou Urutu (pertence ao acervo de Gilberto Chateaubriand http://www.tarsiladoamaral.com.br/images/JPG/Ovo50.jpg

Hilda Hilst - Do Desejo













Do Desejo

E por que haverias de querer minha alma

Na tua cama?

Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas

Obscenas, porque era assim que gostávamos.

Mas não menti gozo prazer lascívia

Nem omiti que a alma está além, buscando

Aquele Outro. E te repito: por que haverias

De querer minha alma na tua cama?

Jubila-te da memória de coitos e de acertos.

Ou tenta-me de novo. Obriga-me.



(Do Desejo - 1992)

Imagem: http://files.nireblog.com/blogs3/carolsofia/files/hpim0036.JPG

Hilda Hilst - Poema











Árias Pequenas. Para Bandolim


Antes que o mundo acabe, Túlio,
Deita-te e prova
Esse milagre do gosto
Que se fez na minha boca
Enquanto o mundo grita
Belicoso. E ao meu lado
Te fazes árabe, me faço israelita
E nos cobrimos de beijos
E de flores

Antes que o mundo se acabe
Antes que acabe em nós
Nosso desejo.




Fonte: (Júbilo Memória Noviciado da Paixão(1974) - Árias Pequenas. Para Bandolim - XI)
(Poesia: 1959-1979 - São Paulo: Quíron; [Brasília]: INL, 1980.) http://www.jornaldepoesia.jor.br/hilda.html#arias

Antero de Quental - Poesia


Nascido na Ilha de São Miguel, Açores, durante a sua vida, Antero de Quental dedicou-se à poesia, à filosofia e à política. Iniciou seus estudos na cidade natal, mudando para Coimbra aos 16 anos, ali estudando Direito e manifestando as primeiras ideias socialistas. Fundou em Coimbra a Sociedade do Raio, que pretendia renovar o país pela literatura. Suicidou-se, em Ponta Delgada, no dia 11 de Setembro de 1891, com dois tiros na boca, disparados num banco de jardim.










O Palácio da Ventura




Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busca anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formusura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão -- e nada mais!

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