Francisco Perna Filho - Poema


Lavandiere - Cesare Bacchi (1881-1971) - Italiano

Metáfora



Agreste,
a flor de couro floresce
nas fendas do acaso.
O tempo a dedilhar-lhe as entradas,
as entranhas,
os vazios,
na secura do sertão.
Serena,
A flor de couro floresce
na relva esquecida,
no comprido lamento
dos chocalhos,
no guizo das serpentes
a espreitá-la.
Alheia,
a flor de couro floresce desencantada,
e na sua fome de cactos e pedras
desconhece outras fomes
que se avizinham.
Agreste,
a flor de couro floresce
para a colheita.


Este Poema ganhou o 2º lugar no Prêmio OFF Flip de Literatura - Paraty - 2014



Gabriel Garcia Márquez - conto




Só Vim Telefonar



Numa tarde de chuvas primaveris, quando viajava sozinha para Barcelona dirigindo um automóvel alugado, Maria de la Luz Cervantes sofreu uma pane no deserto dos Monegros. Era uma mexicana de 27 anos, bonita e séria, que anos antes tivera certo nome como atriz de variedades. Estava casada com um prestidigitador de salão, com quem ia se reunir naquele dia após visitar alguns parentes em Saragoça. Depois de uma hora de sinais desesperados aos automóveis e caminhões que passavam direto pela tormenta, o chofer de um ônibus destrambelhado compadeceu-se dela. Mas avisou que não ia muito longe.



- Não importa – disse Maria. – Eu só preciso de um telefone.


Era verdade, e só precisava para prevenir seu marido que não chegaria antes das sete da noite. Parecia um passarinho ensopado, com um agasalho de estudante e sapatos de praia em abril, e estava tão atordoada por tudo que esqueceu de levar as chaves do automóvel. Uma mulher que viajava ao lado do chofer, de aspecto militar mas de maneiras doces, deu-lhe uma toalha e uma manta, e abriu espaço para ela ao seu lado. Depois de mais ou menos se secar, Maria sentou-se, enrolou-se na manta e tentou acender um cigarro, mas os fósforos estavam molhados. A vizinha de assento deu-lhe fogo e pediu um cigarro dos poucos que estavam secos. Enquanto fumavam, Maria cedeu à vontade de desabafar e sua voz soou mais que a chuva e o barulho da lataria do ônibus. A mulher interrompeu-a com o dedo nos lábios.


- Estão dormindo – murmurou.


Maria olhou por cima do ombro e viu que o ônibus estava ocupado por mulheres de idades incertas e condições diferentes que dormiam enroladas em mantas iguais à dela. Contagiada por sua placidez, Maria enroscou-se no assento e abandonou-se ao rumor da chuva. Quando despertou era de noite e o aguaceiro havia se dissolvido num sereno gelado. Não tinha a menor idéia de quanto tempo havia dormido nem em que lugar do mundo estavam. Sua vizinha de assento tinha uma atitude alerta.


- Onde estamos? – perguntou Maria.
- Chegamos – respondeu a mulher.


O ônibus havia entrado no pátio empedrado de um edifício enorme e sombrio que parecia um velho convento num bosque de árvores colossais. As passageiras, iluminadas apenas por um farol do pátio, permaneceram imóveis até que a mulher de aspecto militar as fez descer com um sistema de ordens primárias, como em um jardim-de-infância. Todas eram mais velhas, e moviam-se com tal parcimônia na penumbra do pátio que pareciam imagens de um sonho.


Maria, a última a descer, pensou que eram freiras. Pensou menos quando viu várias mulheres de uniforme que as receberam na porta do ônibus, e cobriam suas cabeças para que não se molhassem, e as colocavam em fila indiana, dirigindo-as sem falar com elas, com palmas rítmicas e peremptórias. Depois de se despedir de sua vizinha de assento, Maria quis devolver-lhe a manta, mas ela falou que cobrisse a cabeça para atravessar o pátio e que a devolvesse na portaria.

- Será que lá tem telefone? – perguntou Maria.
- Claro – disse a mulher. – Lá mesmo eles mostram.

Pediu a Maria outro cigarro, e ela deu o resto do maço molhado. “No caminho eles secam”, disse.
A mulher fez adeus com a mão, e quase gritou: “Boa sorte”. O ônibus arrancou sem dar tempo para mais nada.


Maria começou a correr para a entrada do edifício. Uma guarda tentou detê-la batendo palmas enérgicas, mas teve que apelar para um grito imperioso: “Eu disse alto!”, Maria olhou por baixo da manta, e viu uns olhos de gelo e um dedo inapelável indicando a fila. Obedeceu. Já no saguão do edifício separou-se do grupo e perguntou ao porteiro onde havia um telefone. Uma das guardas fez com que ela voltasse para a fila dando-lhe palmadinhas nas costas, enquanto dizia com modos muito suaves:


- Por aqui, gracinha, o telefone é por aqui.


Maria seguiu com as outras mulheres por um corredor tenebroso, e no final entrou em um dormitório coletivo onde as guardas recolheram as mantas e começaram a repartir as camas. Uma mulher diferente, que Maria achou mais humana e de hierarquia mais alta, percorreu a fila comparando uma lista com os nomes que as recém-chegadas tinham escrito num cartão costurado no sutiã. Quando chegou na frente de Maria surpreendeu-se que ela não levasse a identificação.


- É que só vim telefonar – disse Maria.


Explicou-lhe com muita pressa que seu automóvel havia quebrado na estrada. O marido, que era mago de festas, estava esperando por ela em Barcelona para cumprir três compromissos até a meia-noite, e queria avisá-lo que não chegaria a tempo para acompanhá-lo. Eram quase sete da noite. Ele sairia de casa dentro de dez minutos, e ela temia que cancelasse tudo por causa de seu atraso. A guarda pareceu escutá-la com atenção.


- Como é o seu nome? – perguntou.


Maria disse como se chamava com um suspiro de alívio, mas a mulher não encontrou seu nome depois de repassar a lista várias vezes. Perguntou alarmada a uma guarda, e esta, sem nada para dizer, sacudiu os ombros.


- É que eu só vim para telefonar – disse Maria.


- Está bem, beleza – disse a superiora, levando-a até a sua cama com uma doçura demasiado ostensiva para ser real -, se você se portar bem vai poder falar por telefone com quem quiser. Mas agora não, amanhã.


Alguma coisa aconteceu então na mente de Maria que a fez entender por que as mulheres do ônibus moviam-se como no fundo de um aquário. Na realidade, estavam apaziguadas com sedantes, e aquele palácio em sombras, com grossos muros de pedra e escadarias geladas, era na realidade um hospital de enfermas mentais. Assustada, escapou correndo do dormitório, e antes de chegar ao portão uma guarda gigantesca com um macacão de mecânico agarrou-a com um golpe de tigre e imobilizou-a no chão com uma chave mestra. Maria olhou-a de viés paralisada de terror.


- Pelo amor de Deus – disse. – Juro pela minha mãe morta que só vim telefonar.


Bastou ver sua cara para saber que não havia súplica possível diante daquela energúmena vestida de mecânico que era chamada de Herculina por sua força descomunal. Era a responsável pelos casos difíceis, e duas reclusas tinham morrido estranguladas com seu braço de urso-polar adestrado na arte de matar por descuido. O primeiro caso foi resolvido como sendo um acidente comprovado. O segundo foi menos claro, e Herculina foi advertida e admoestada de que na próxima vez seria investigada a fundo. A versão corrente era que aquela ovelha desgarrada de uma família de sobrenomes grandes tinha uma turva carreira de acidentes duvidosos em vários manicômios da Espanha. Para que Maria dormisse a primeira noite, tiveram que lhe injetar um sonífero. Antes do amanhecer, quando foi despertada pelo desejo de fumar, estava amarrada pelos pulsos e pelos tornozelos nas barras da cama. Ninguém acudiu aos seus gritos.


Pela manhã, enquanto o marido não encontrava em Barcelona nenhuma pista de seu paradeiro, tiveram que levá-la à enfermaria, pois a encontraram sem sentidos num pântano de suas próprias misérias. Não soube quanto tempo havia passado quando voltou a si. Mas então o mundo era um remanso de amor, e na frente de sua cama estava um ancião monumental, com um andar de plantígrado e um sorriso sedante, que com dois passes de mestre devolveu-lhe a alegria de viver. Era o diretor do sanatório. Antes de dizer qualquer coisa, sem ao menos cumprimentá-lo, Maria pediu um cigarro. Ele deu, aceso, e também o maço quase cheio. Maria não pôde reprimir o pranto.


- Aproveite para chorar tudo que você quiser – disse o médico, com sua voz adormecedora. – Não existe melhor remédio que as lágrimas.
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Maria desafogou-se sem pudor, como nunca havia conseguido com seus amantes casuais nos tédios de depois do amor. Enquanto a ouvia, o médico a penteava com os dedos, arrumava o travesseiro para que respirasse melhor, a guiava pelo labirinto de sua incerteza com uma sabedoria e uma doçura que ela jamais havia sonhado. Era, pela primeira vez em sua vida, o prodígio de ser compreendida por um homem que a escutava com toda a alma sem esperar a recompensa de levá-la para a cama. Após uma longa hora, desafogada até o fim, pediu-lhe autorização para telefonar para o seu marido.


O médico levantou-se com toda a majestade de seu cargo. “Ainda não, princesa”, disse, dando em sua face o tapinha mais terno que ela jamais havia sentido. “Cada coisa tem sua hora.”, Da porta, fez uma bênção episcopal, e desapareceu para sempre.


- Confie em mim – disse a ela.


Naquela mesma tarde, Maria foi inscrita no asilo com um número de série, e com um comentário superficial sobre o enigma da sua procedência e as dúvidas sobre sua identidade. Na margem ficou uma qualificação escrita a mão pelo diretor: agitada.


Tal como Maria havia previsto, o marido saiu de seu modesto apartamento do bairro de Horta com meia hora de atraso para cumprir os três compromissos. Era a primeira vez que ela não chegava a tempo em quase dois anos de uma união livre bem combinada, e ele entendeu o atraso pela ferocidade das chuvas que assolaram a província naquele fim de semana. Antes de sair deixou um recado pregado na porta com o itinerário da noite. Na primeira festa, com todas as crianças disfarçadas de canguru, dispensou o truque-mor dos peixes invisíveis porque não conseguia fazê-lo sem a ajuda dela. O segundo compromisso era na casa de uma anciã de 93 anos, numa cadeira de rodas, que se vangloriava de haver celebrado cada um dos últimos trinta aniversários com um mago diferente. Ele estava tão contrariado pela demora de Maria que não conseguiu se concentrar nos passes mais simples. O terceiro compromisso era o de todas as noites num café-concerto das Ramblas, onde atuou sem inspiração para um grupo de turistas franceses que não conseguiram acreditar no que viam porque se negavam a crer na magia. Depois de cada representação telefonou para casa, e esperou sem ilusões que Maria atendesse. Na última já não pôde reprimir a inquietação de que algo de mau havia acontecido. De volta para casa na caminhonete adaptada para as funções públicas viu o esplendor da primavera nas palmeiras do Paseo de Gracia, e foi estremecido pelo pensamento funesto de como poderia ser a cidade sem Maria. A última esperança se desvaneceu quando encontrou seu recado ainda pregado na porta. Estava tão contrariado que esqueceu de dar comida ao gato.


Só agora, ao escrever, percebo que nunca soube como era o nome dele na realidade, porque em Barcelona só o conhecíamos por seu nome profissional: o Mago Saturno. Era um homem de gênio esquisito e com uma inabilidade social irredimível, mas o tato e a graça que nele faziam falta sobravam em Maria. Era ela quem o guiava pela mão nesta comunidade de grandes mistérios, onde ninguém teria a idéia de ligar para alguém depois da meia-noite perguntando pela própria mulher. Saturno havia feito isso assim quando chegou e não queria recordar. Por isso, naquela noite conformou-se com telefonar para Saragoça, onde uma avó meio adormecida respondeu sem alarma que Maria havia partido depois do almoço. Não dormiu mais de uma hora ao amanhecer. Teve um sonho de pântano, no qual viu Maria com um vestido de noiva em farrapos e salpicada de sangue, e despertou com a certeza pavorosa de que havia tornado a deixá-lo sozinho, e agora para sempre, num vasto mundo sem ela.


Havia feito isso três vezes com três homens diferentes, ele inclusive, nos últimos cinco anos. Havia abandonado-o na Cidade do México seis meses depois de conhecê-lo, quando agonizavam de felicidade com um amor demente num quarto do bairro Anzures. Certa manhã, Maria não amanheceu em casa depois de uma noite de abusos inconfessáveis. Deixou tudo que era dela, inclusive a aliança de seu casamento anterior, e uma carta na qual dizia que não era capaz de sobreviver ao tormento daquele amor desatinado. Saturno pensou que havia voltado ao seu primeiro marido, um condiscípulo da escola secundária com quem se casou às escondidas sendo menor de idade, e a quem abandonou por outro depois de dois anos sem amor. Mas não: havia regressado à casa de seus pais, e lá foi Saturno buscá-la a qualquer preço. Rogou sem condições, prometeu muito mais do que estava decidido a cumprir, mas tropeçou com uma determinação invencível. “Existem amores curtos e amores longos”, disse ela. E concluiu sem misericórdia: “Este foi curto.” Ele rendeu-se diante de seu rigor. No entanto, certa madrugada de um dia de Todos os Santos, ao voltar para o seu quarto de órfão depois de quase um ano de esquecimento, encontrou-a dormindo no sofá da sala com a coroa de flores de laranjeira e a longa cauda de espuma das noivas virgens. Maria contou a verdade. O novo noivo, viúvo, sem filhos, com a vida resolvida e a disposição de se casar para sempre na igreja católica, havia deixado-a vestida de noiva esperando no altar. Seus pais decidiram fazer a festa do mesmo jeito. Ela acompanhou a brincadeira. Dançou, cantou com os mariachis, abusou da bebida, e num terrível estado de remorsos tardios foi procurar Saturno à meia-noite. Ele não estava em casa, mas encontrou as chaves no vaso de flores do corredor, onde sempre as escondera. Daquela vez, foi ela quem se rendeu sem condições. “E agora até quando?”, ele perguntou. Ela respondeu com um verso de Vinicius de Moraes: “O amor é eterno enquanto dura.”, Dois anos depois, continuava sendo eterno.


Maria pareceu amadurecer. Renunciou a seus sonhos de atriz e consagrou-se a ele, tanto no ofício como na cama. No fim do ano anterior haviam assistido a um congresso de magos em Perpignan, e na volta conheceram Barcelona. Gostaram tanto que estavam ali fazia oito meses, e iam tão bem que haviam comprado um apartamento no bairro muito catalão de Horta, ruidoso e sem porteiro, mas com espaço de sobra para cinco filhos. Havia sido a felicidade possível, até o fim de semana em que ela alugou um automóvel e foi visitar seus parentes de Saragoça com a promessa de voltar às sete da noite da segunda. Ao amanhecer da quinta ainda não dera sinais de vida. Na segunda-feira da semana seguinte a companhia de seguros do automóvel alugado telefonou para perguntar por Maria. “Não sei nada”, disse Saturno. “Procurem em Saragoça.”, Desligou.


Uma semana depois um guarda civil foi à sua casa com a notícia de que haviam achado o automóvel depenado, num atalho perto de Cádiz, a novecentos quilômetros do lugar em que Maria o abandonou. O policial queria saber se ela tinha mais detalhes do roubo. Saturno estava dando comida ao gato, e olhou-o apenas para dizer sem mais rodeios que não perdessem tempo, pois sua mulher havia fugido de casa e ele não sabia com quem ou para onde. Era tamanha sua convicção que o policial sentiu-se incomodado e pediu perdão pelas perguntas. O caso foi declarado encerrado.


O receio de que Maria pudesse ir embora outra vez havia assaltado Saturno na Páscoa em Cadaqués, onde Rosa Regàs os havia convidado para velejar. Estávamos no Marítim, o populoso e sórdido bar da gauche divine no crepúsculo do franquismo, em volta de uma daquelas mesas de ferro com cadeiras de ferro onde só cabiam a duras penas seis e sentavam vinte. Depois de esgotar o segundo maço de cigarros da jornada Maria percebeu que não tinha fósforos. Um braço esquálido de pelos viris com uma pulseira de bronze romano abriu caminho através do tumulto da mesa e ofereceu-lhe fogo. Ela agradeceu sem olhar quem era, mas o Mago Saturno viu. Era um adolescente ósseo e lampinho, de uma palidez de morto e um rabo-de-cavalo de cabelos muito negros que chegavam até a sua cintura. As janelas do bar mal suportavam a fúria da tramontana da primavera, mas ele ia vestido com uma espécie de pijama de usar na rua, de algodão cru, e umas tamancas de lavrador. Não tornaram a vê-lo até o fim do outono, numa pensão de mariscos de La Barceloneta, com o mesmo conjunto de saraça ordinária e uma longa trança em vez do rabo-de-cavalo. Cumprimentou-os como se fossem velhos amigos, e pelo modo com que beijou Maria, e pelo modo com que ela correspondeu, Saturno foi fulminado pela suspeita de que haviam andado se encontrando escondidos. Dias depois encontrou por acaso um nome novo e um número de telefone escritos na caderneta doméstica, e a inclemente lucidez dos ciúmes revelou-lhe de quem eram. O prontuário social do intruso acabou de liquidá-lo: 22 anos, filho único de ricos, decorador de vitrines da moda, com uma fama fácil de bissexual e um prestígio bem fundamentado como consolador de aluguel de mulheres casadas. Mas conseguiu superar tudo até a noite em que Maria não voltou para casa. Então começou a telefonar para ele todos os dias, primeiro a cada duas ou três horas, das seis da manhã até a madrugada seguinte, e depois cada vez que encontrava um telefone. O fato de que ninguém atendesse aumentava o seu martírio. No quarto dia atendeu uma andaluza, que só ia fazer a faxina. “O sinhôzinho não está”, disse, com um jeito vago o suficiente para enlouquecê-lo. Saturno não resistiu à tentação de perguntar se por acaso a senhorita Maria não estava.


- Aqui não mora nenhuma Maria – disse a mulher. – O patrão é solteiro.
- Já sei disso – respondeu ele. – Não mora mas vai às vezes, não é?
A mulher se enfureceu.
- Mas quem está falando, porra?


Saturno desligou. A negativa da mulher pareceu-lhe uma confirmação a mais do que para ele já não era suspeita, era uma certeza ardente. Perdeu o controle. Nos dias seguintes telefonou em ordem alfabética para todos os conhecidos de Barcelona. Ninguém informou nada, mas cada telefonema agravou sua infelicidade, porque seus delírios de ciúmes já eram célebres entre os madrugadores impenitentes da gauche divine, que respondiam com qualquer piada que o fizesse sofrer. Só então compreendeu até que ponto estava sozinho naquela cidade bela, lunática e impenetrável, na qual jamais seria feliz. Pela madrugada, depois de dar comida ao gato, apertou o coração para não morrer, e tomou a determinação de esquecer Maria.


Depois de dois meses, Maria ainda não havia se adaptado à vida no sanatório. Sobrevivia mal e mal, comendo quase nada daquela pitança de cárcere com os talheres acorrentados à mesona de madeira bruta, e os olhos fixos na litografia do general Francisco Franco que presidia o lúgubre refeitório medieval. No começo resistia às horas canônicas com sua rotina palerma de matinas, laudes, vésperas, e a outros ofícios da igreja que ocupavam a maior parte do tempo. Negava-se a jogar bola no pátio do recreio e a trabalhar na oficina de flores artificiais que um grupo de reclusas mantinha com uma diligência frenética. Mas na terceira semana foi incorporando-se pouco a pouco à vida do claustro. Afinal, diziam os médicos, todas começavam assim, e cedo ou tarde acabavam integrando-se na comunidade. A falta de cigarros, resolvida nos primeiros dias por uma vigilante que os vendia a preço de ouro, tornou a atormentá-la quando acabou o pouco dinheiro que trouxera. Consolou-se depois com os cigarros de papel de jornal que algumas reclusas fabricavam com as guimbas recolhidas no lixo, pois a obsessão de fumar havia chegado a ser tão intensa quanto a do telefone. As pesetas exíguas que ganhou mais tarde fabricando flores artificiais permitiram a ela um alívio efêmero. O mais duro era a solidão das noites. Muitas reclusas permaneciam despertas na penumbra, como ela, mas sem se atrever a nada, pois a vigilante noturna velava também no portão fechado com corrente e cadeado. Certa noite, porém, abrumada pela tristeza, María perguntou com voz suficiente para que sua vizinha de cama escutasse:


- Aonde estamos?
A voz grave e lúcida da vizinha respondeu:
- Nas profundas do inferno.
- Dizem que esta terra é de mouros – disse outra voz distante que ressoou no dormitório inteiro.
- E deve ser mesmo, porque no verão, quando há lua, ouvem-se cães ladrando para o mar.


Ouviu-se uma corrente nas argolas como uma âncora de galeão, e a porta se abriu. A cérbera, o único ser que parecia vivo no silêncio instantâneo começou a passear de um extremo a outro do dormitório. Maria se assustou, e só ela sabia por quê.


Desde sua primeira semana no sanatório, a vigilante noturna lhe havia proposto sem rodeios que dormisse com ela no quarto de guarda. Começou com um tom de negócio concreto: troca de amor por cigarros, por chocolates, pelo que fosse. “Você vai ter de tudo”, dizia, trêmula. “Você vai ser a rainha.”, Diante da recusa de Maria, a guarda mudou de método. Deixava papeizinhos de amor debaixo do travesseiro, nos bolsos do roupão, nos lugares menos imaginados. Eram mensagens de uma aflição dilacerante capaz de estremecer as pedras. Fazia mais de um mês que parecia resignada à derrota, na noite em que ocorreu o incidente no dormitório. Quando se convenceu de que todas as reclusas dormiam, a guarda aproximou-se da cama de Maria, e murmurou em seu ouvido todo tipo de obscenidades ternas, enquanto beijava sua cara, o pescoço tenso de terror, os braços tesos, as pernas exaustas. No fim, achando talvez que a paralisia de Maria não era de medo e sim de complacência, atreveu-se a ir mais longe. Maria deu-lhe então um golpe com as costas da mão que mandou-a contra a cama vizinha. A guarda levantou-se furibunda no meio do escândalo das reclusas alvoroçadas.


- Filha da puta – gritou. – Vamos apodrecer juntas neste chiqueiro até que você fique louca por mim.


O verão chegou sem se anunciar no primeiro domingo de junho, e foi preciso tomar medidas de emergência, porque as reclusas sufocadas começavam a tirar durante a missa as batinas de lã.
Maria assistiu divertida ao espetáculo das enfermas peladas que as guardas tocavam pelas naves da capela como se fossem galinhas cegas. No meio da confusão, tratou de se proteger dos golpes perdidos, e sem saber como encontrou-se sozinha no escritório abandonado, e com um telefone que tocava sem cessar com uma campainha de súplica.


Maria respondeu sem pensar, e ouviu uma voz distante e sorridente que se distraía imitando o serviço de hora certa:


- São quarenta e cinco horas, noventa e dois minutos e cento e sete segundos.
- Veado – disse Maria.


Desligou divertida. Já ia embora, quando percebeu que estava deixando escapar uma ocasião irrepetível. Então discou seis números, com tanta tensão e tanta pressa, que não teve certeza de ser o número de sua casa. Esperou com o coração na boca, ouviu a campainha familiar com seu tom ávido e triste, uma vez, duas vezes, três vezes, e ouviu enfim a voz do homem de sua vida na casa sem ela.


- Alô?


Precisou esperar que passasse a bola de lágrimas que se formou na sua garganta.


- Coelho, minha vida – suspirou.


As lágrimas a venceram. Do outro lado da linha houve um breve silêncio de espanto, e a voz ensandecida pelos ciúmes cuspiu a palavra:


- Puta!


E desligou.


Naquela noite, num ataque frenético, Maria tirou da parede do refeitório a litografia do generalíssimo, arrojou-a com todas as suas forças contra o vitral do jardim, e desmoronou banhada em sangue. Ainda lhe sobrou raiva para enfrentar na porrada as guardas que tentaram dominá-la, sem conseguir, até que viu Herculina plantada no vão da porta, com os braços cruzados, olhando para ela. Rendeu-se. Ainda assim, foi arrastada até o pavilhão das loucas perigosas, foi aniquilada com uma mangueira de água gelada, e injetaram terebintina em suas pernas. Impedida de caminhar por causa da inflamação provocada, Maria percebeu que não havia nada no mundo que não fosse capaz de fazer para escapar daquele inferno. Na semana seguinte, já de regresso ao dormitório comum, levantou-se na ponta dos pés e bateu na cela da guarda da noite.


O preço de Maria, exigido de antemão, foi levar um recado ao seu marido. A guarda aceitou, sempre que o trato fosse mantido no mais absoluto segredo. E apontou-lhe com um dedo inexorável.


- Se alguma vez alguém souber, você morre.


Desta forma o Mago Saturno foi parar no sanatório de loucas no sábado seguinte, com a caminhonete de circo preparada para celebrar o regresso de Maria. O diretor o recebeu em pessoa no seu escritório, tão limpo e arrumado quanto um barco de guerra, e fez um relatório afetuoso sobre o estado de sua esposa. Ninguém sabia de onde chegou, nem como nem quando, pois a primeira informação sobre sua entrada era o registro oficial ditado por ele mesmo quando a entrevistou. Uma investigação iniciada no mesmo dia não dera em nada. Porém, o que mais intrigava o diretor era como Saturno soube do paradeiro de sua esposa. Saturno protegeu a guarda.


- A companhia de seguros do automóvel me informou – disse.


O diretor concordou satisfeito. “Não sei como o seguro faz para saber tudo”, disse. Deu uma olhada no expediente que tinha sobre sua escrivaninha de asceta, e concluiu:


- A única certeza é que seu estado é grave.


Estava disposto a autorizar uma visita com as devidas precauções se o Mago Saturno prometesse, pelo bem de sua esposa, restringir-se à conduta que ele indicasse. Sobretudo na maneira de tratá-la, para evitar que recaísse em seus acessos de fúria cada vez mais freqüentes e perigosos.


- Que esquisito – disse Saturno. – Sempre foi de gênio forte, mas de muito domínio.


O médico fez um gesto de sábio. “Há condutas que permanecem latentes durante muitos anos, e um dia explodem”, disse. “Porém, é uma sorte que tenha caído aqui, porque somos especialistas em casos que requerem mão forte.” No final, fez uma advertência sobre a estranha obsessão de Maria pelos telefones.


- Deixe-a falar – disse.
- Fique tranqüilo, doutor – disse Saturno com ar alegre. – É a minha especialidade.


A sala de visitas, mistura de cárcere e confessionário, era o antigo locutório do convento. A entrada de Saturno não foi a explosão de júbilo que ambos poderiam esperar. Maria estava de pé no centro do salão, junto a uma mesinha com duas cadeiras e um vaso sem flores. Era evidente que estava pronta para ir embora, com seu lamentável casaco cor de morango e sapatos sórdidos que havia ganho de esmola. Num canto, quase invisível, estava Herculina com os braços cruzados. Maria não se moveu ao ver o marido entrar nem mostrou emoção alguma na cara ainda salpicada pelos estragos do vitral. Deram um beijo de rotina.


- Como você se sente? – perguntou ele.
- Feliz por você enfim ter vindo, coelho – disse ela. – Isto foi a morte.


Não tiveram tempo de sentar-se. Afogando-se em lágrimas, Maria contou as misérias do claustro, a barbárie das guardas, a comida de cachorro, as noites intermináveis sem fechar os olhos de terror.


- Já nem sei há quantos dias estou aqui, ou meses ou anos, mas sei que cada um foi pior que o outro – disse, e suspirou com a alma. – Acho que nunca voltarei a ser a mesma.
- Agora tudo isso passou – disse ele, acariciando com os dedos as cicatrizes recentes de sua cara. – Eu continuarei a vir todos os sábados. E até mais, se o diretor permitir. Você vai ver como tudo dará certo.
Ela fixou nos olhos dele seus olhos aterrorizados. Saturno tentou suas artes de salão. Contou, no tom pueril das grandes mentiras, uma versão adocicada dos prognósticos do médico. “Em resumo”, concluiu, “ainda faltam alguns dias para você estar recuperada de vez.”, Maria entendeu a verdade.


- Por Deus, coelho! – disse, atônita. – Não me diga que você também acha que estou louca!
- Nem pense nisso! – disse ele, tratando de rir. – Acontece que será muito mais conveniente para todos que você fique aqui algum tempo. Em melhores condições, é claro.
- Mas se eu já te disse que só vim telefonar! – falou Maria.


Ele não soube como reagir à obsessão temível. Olhou para Herculina. Ela aproveitou a olhada para indicar em seu relógio de pulso que estava na hora de terminar a visita. Maria interceptou o sinal, olhou para trás, e viu Herculina na tensão do assalto iminente. Então agarrou-se no pescoço do marido gritando como uma verdadeira louca. Ele safou-se com todo o amor que pôde, e deixou-a à mercê de Herculina, que saltou sobre suas costas. Sem dar-lhe tempo para reagir, aplicou em Maria uma chave com a mão esquerda, passou o outro braço de ferro em volta de seu pescoço, e gritou para o Mago Saturno:


- Vá embora!


Saturno fugiu apavorado. Ainda assim, no sábado seguinte, já reposto do espanto da visita, voltou ao sanatório com o gato vestido como ele: a malha vermelha e amarela do grande Leopardo, o chapéu de copa e uma capa de volta e meia que parecia feita para voar. Entrou com a caminhonete de feira até o pátio do claustro, e ali fez uma função prodigiosa de quase três horas que todas as reclusas desfrutaram dos balcões, com gritos discordantes e ovações inoportunas. Estavam todas, menos Maria, que não só se negou a receber o marido, como sequer quis vê-lo dos balcões. Saturno sentiu-se ferido de morte.


- É uma reação típica – consolou o diretor. – Já passa.


Mas não passou nunca. Depois de tentar muitas vezes ver Maria de novo, Saturno fez o impossível para que recebesse uma carta, mas foi inútil. Quatro vezes devolveu-a fechada e sem comentários. Saturno desistiu, mas continuou deixando na portaria do hospital as rações de cigarros, sem ao menos saber se chegavam a Maria, até que a realidade o venceu. Nunca mais se soube dele, exceto que tornou a se casar e que voltou ao seu país. Antes de ir embora de Barcelona deixou o gato meio morto de fome com uma namoradinha casual, que além disso se comprometeu a continuar levando cigarros para Maria. Mas também ela desapareceu.


Rosa Regas recordava ter visto a moça no Corte Inglês, há uns doze anos, com a cabeça rapada e a túnica alaranjada de alguma seita oriental, grávida até não poder mais. Ela contou-lhe que continuara levando cigarros para Maria, sempre que pôde, e resolvendo para ela algumas urgências imprevistas, até o dia em que só encontrou os escombros do hospital, demolido como uma lembrança ruim daqueles tempos ingratos. Maria pareceu-lhe muito lúcida na última vez em que a viu, um pouco acima do peso e contente com a paz do claustro. Naquele dia, levou-lhe também o gato, porque havia acabado o dinheiro que Saturno deixou para a comida.

In. Doze Contos Peregrinos.

Francisco Perna Filho - Crônica


Eu jamais imaginara a dor da alma






Quando eu era pequeno, ficava horas deitado no colo da “Mamãeninha” a ouvir o barulho sonolento e longínquo dos barcos a vapor, que cruzavam o Tocantins, precisamente em Miracema do Norte (Tocantins, até então, era só o rio), e ficava ali, na mais pura inocência, contemplando as estrelas, quando ela me fazia cafuné e me contava histórias, que iriam me marcar para sempre.

Quantas e quantas vezes, ali, naquela meia-lua de cimento, em que eu me sentava e deitava no seu colo macio (ela sentada em tamborete) eu pude vê-la chorar, sem entender o que se passava, o que de fato ela estava sentindo. Eu era muito jovem para compreender o universo, e chorar, para mim, era apenas algo exterior, eu jamais imaginara a dor da alma.

O tempo passou, eu cresci, ela se foi. A partir daí eu comecei a materializar a dor, o sofrimento, a ausência e a solidão, já não era mais o mesmo, apesar dos vinte e poucos anos, ainda cheio de muitos sonhos e ilusões. Continuei a contemplar o céu, não com a mesma frequência; não com a mesma inocência, por que eu já conhecia a solidão, já sabia dos desencontros, e eu me tinha demasiadamente humano.

Os barcos passaram a ser eternos, ficaram na minha memória, e sempre que alguém querido se vai, eles deslizam suavemente pelos meus olhos. Com os barcos eu aprendi sobre chegadas e partidas, eu aprendi a contemplar lonjuras e a chorar abandonos e nunca mais me saiu da alma o peso e a dor do mundo, eu passei a contabilizar os dias e os becos, os murmúrios e solidões, talvez aí o poeta tenha surgido.

Com os barcos eu conheci mundos, revi o colo de minha mamãeninha, encontrei pessoas, que me foram preciosas, mas que se foram tão rapidamente, sem que eu pudesse ao menos agradecer pela amizade. Pessoas que surgem nas nossas vidas, dividem conosco a sua felicidade, acostumam-nos com as suas presenças e depois, leves demais, vão–se embora, nos deixando com uma dor tão grande, não nos dando tempo para nada.

Não sabemos ao certo o que nos aguarda, que rumo tomaremos, quem encontraremos no caminho, como estaremos amanha. Apenas caminhamos, para bem lembrar Fernando Pessoa: navegar é preciso, viver não é preciso, pois viver é de uma imprecisão danada, já que nunca saberemos que dor nos aguarda. Ela sempre nos surpreende, quando alguém parte, quando alguém sofre, quando alguém clama por justiça.

Talvez os barcos tenham muito a nos ensinar, embora fabricados por nós, comportam a dor da madeira cortada, da solidão de seus portos de origem, de suportar tanta carga, mas estão sempre a deslizar pelos rios da sabedoria. Quem sabe eles nos digam muito de nós, por que, apesar de toda inconsciência, nos ajudam na travessia dessa nossa longa vida.



Foto by Francisco Perna Filho - Rio Tocantins: Lageado/Miracema do Tocantins

Francisco Perna Filho - Conto





“Não há desejo do carrasco que não seja sugerido pelo olhar da vítima”
(Pasolini)





1


Você precisa matar, precisa matar. Use uma arma branca, não pode ser de outro tipo. Tem de matar. Só assim eles vão te reconhecer, vão te respeitar.

Ali estava o corpo caído, o homem ainda ofegante. Quase ninguém percebeu. Já era tarde da noite. Uma sirene ao longe, um miado espaçado, algum gato perambulava pelos telhados vizinhos. E o corpo ali, ainda com vida. Ele parado, parado e frio, como a noite de terça. Na altura do tórax, a faca, branca, branca. Pintada de branco, mas já não tão branca. Havia sangue nela, sangue coalhando, como ele, ali congelado, não ouvia mais nada. Um táxi passou em disparada.

As vozes sempre me perseguiram, não tem momento certo. De noite, de madrugada, de dia, como se alguém falasse no meu ouvido. Já me acostumei com elas, às vezes pensam que sou maluco, mas eles não sabem que estou conversando com elas. São vozes femininas, infantis, masculinas, graves. Depende da ocasião. Esta, a que me mandou furá-lo, por incrível que pareça é infantil. É sempre assim, quando querem alguma coisa, não cessam enquanto eu não as atendo. Às vezes é uma simples coca-cola, um algodão doce; outras vezes uma cerveja, uísque. Já roubei para satisfazê-los.


Era bem tarde e as pessoas dos prédios próximos, acordadas pelo barulho da sirene, cadenciadamente acendiam as luzes, abriam as janelas. O local do crime foi se enchendo de gente, vindas dos prédios, das ruas próximas. Iam chegando e se aglomerando em volta do corpo, queriam saber, queriam testemunhar, pareciam excitadas. Todas elas. E o corpo ali, já sem vida, à vista de todos. Pronto para ser levado, para deixar o chão frio, o asfalto escuro, tão escuro quanto o sangue coalhado no homem, na faca, apesar de branca, turvo de sangue, coalhado de ódio.

Eu sabia que ele estaria ali, àquela hora. Eu sabia por que eles me disseram, ou melhor, ela me disse. A criança, de quem eu falei, me acompanha, quase sempre está por perto, me falando o que fazer. De vez em quando, me diz algumas besteiras, nem parece ser criança, mas eu não me importo, não me incomodo. É sempre assim. Ontem me perturbou o dia inteiro, falou mais forte, à tarde, que eu precisava matar, não especificou, de imediato, quem. Só me guiou, e eu atendi, fui ao encontro da vítima, no horário e lugar determinados. Ele me olhou, senti o medo estampado nos seus olhos, parecia mesmo um olhar de temor, de terror. Quanto mais ele me olhava, mais eu sentia prazer, mais a voz me conduzia, dizia-me que se eu fizesse tudo direitinho, eu seria feliz, ficaria tranqüilo, que ela desapareceria, não me incomodaria mais.

Com a chegada da polícia, as pessoas foram afastadas, a área isolada por uma fita amarela, como as que se vê em filmes policiais. E ele, como se nada tivesse acontecido permanecia aos pés do cadáver, os olhos distantes, uma voz desconexa, um semblante calmo. Um sargento e um soldado, os dois pegaram-no (o rapaz) pelo braço e levaram-no para o camburão, para o engradado da parte traseira do carrinho Fiat, enquanto os bombeiros, que também chegaram em seguida, recolhiam o corpo morto, o torto destino.

No momento, logo quando eu o avistei, tive um pressentimento de que ele fosse quem eu procurava. Parecia atraído por mim. Uma força, um visgo, sabe como é, né? Se ele quisesse correr, poderia muito bem ter corrido, mas nada, caminhou na minha direção, só conseguia ver a sua sombra. Estava muito escuro, e eu fiquei ali esperando. Tudo era silêncio, e ele caminhando na minha direção. E eu o esperei. Eu sabia que ele viria.

Fotógrafos, repórteres, a essa altura, um tumulto. Alguém grita, chama a atenção do legista, que já se recolhia. Este se volta em direção ao grito e vê um soldado trazendo, em uma das mãos, um embrulho, uma caixa envolta em papel colorido, com motivos infantis. O soldado entrega a caixa ao legista, que a recebe e a leva para a ambulância, ali estacionada.

Eu sempre tive o poder de atrair as pessoas, desde pequeno. É sério, nunca ninguém escapou de mim, dos meus desejos, das minhas vontades. As vozes, eu tinha sete anos, quando eu as ouvi pela primeira vez. Eu estava sentado, estudando, e comecei a ouvir um zumbido, sons embaralhados, estranhos. Não sabia o que fazer, só me restou correr na direção da minha mãe que estava aguando as plantas no quintal. Era manhã.

Ele chegou, não deu tempo para nada. Enfiei-lhe a faca, a faca no peito dele, com muita força. Depois fui rodando a faca, enfiando e tirando, até ele dar uma golfada de sangue e cair, quase sem vida.

Terminando o seu relato, o delegado determinou que ele fosse levado à cela, contígua à sua sala (do delegado). Puseram-no, ali, tranqüilo, sem remorso, alheio a tudo. Logo adormeceu.


2

MORS ET FUGACEM PERSEQUITUR VIRUM
(Horácio)


Ao abrir a caixa resgatada, o legista, por um bom momento, ficou a contemplar a caderneta de folhas recicladas, de capa dura, com os seguintes dizeres: Mors et Fugacem Persequitur Virum. Nas três primeiras páginas, recortes de jornais, notícias de assassinatos, desenhos de símbolos estranhos, que o legista tentou, em vão, decifrar. As bordas das páginas, todas estavam pintadas de vermelho, riscos grossos, feitos a giz-de-cera. Da quarta a sétima páginas, fotografias de armas, alguns as mais variadas, estavam presas por grampos. Nas outras, em letras quase ilegíveis, podia se ler:

1.Quando a primavera chegar, e o sol já houver se posto, uma sombra se abaterá sobre a terra, e o filho do homem, conduzido pelas nobres vozes do universo, fincará a seta do reencontro, cumprindo o que, há anos, fora programado.

2.Nada poderás fazer, senão caminhar em direção àquele que o espera. Não sentirás dor, nem medo, muito menos pavor. Não quererás fugir, nem olharás para trás. Tudo que tens a fazer é cumprir o que fora programado. Naturalmente.

3.Se cumprirdes o que estou te ditando, certamente, não mais ouvirás a minha voz e, muito mais confortável, terás cumprido a tua sina. Quando o branco da seta se unir ao teu corpo, mostrarás, com o teu sangue, que ninguém foge do seu destino.

4.Estarás deitado no asfalto escuro, assistido pelos curiosos das cercanias. Ouvirás as sirenes que se aproximam. Contemplarás o pasmo olhar das pessoas. E saberás do caminho de volta.

5.Quanto ao teu destino, verás nos olhos do outro que te olha, o teu olhar, o mesmo olhar que ele supõe ver em ti: pavor, mas nada disso te fará recuar, pois já vens caminhando há longas datas, desde a infância, quando, as primeiras vozes determinaram os teus dias.

Ao fechar a caderneta, na última capa, em letras bem miúdas, o legista pôde ler:

A morte alcança até o homem que foge.


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