Brasigóis Felício - Ensaio Crítico



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                    Vidas Secas - Foto by Evandro Teixeira
Vidas secas


                                                                                                                            

Fabiano é um personagem do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos - e sobre seus ombros pesam séculos de miséria e servidão. Daí que tenha tremido diante do soldado amarelo, despótico e autoritário por tradição, ignorância e costume. Ainda que, não obstante sua rude e sertaneja autoridade, seja ele próprio um excluído da dignidade.

Sao tantos os Fabianos, Severinos do berço à sepultura, mesmo que tenham outros nomes de pia. Iguais na aridez e sofrimento da existência cabocla, vivida em meio à eterna necessidade.Ontem como hoje, mesmo com as bolsas e auxílios que dão suporte à sustentabilidade da pobreza.  Severinos iguais na pobreza da linguagem, não muito mais rica do que a de seus animais de estima e cria.

O cenário agreste, castigado pela seca - torrão esturricado de caatinga brava ainda é o mesmo, na paisagem nordestinada. E o ciclo da miséria permanece, eternizado, com pessoas pensantes que não pensam - apenas obedecem.Pode ser que, vivesse hoje, muitos dos Severinos não fossem tão magros, nem tão pobres quanto o seu Fabiano. Pobres de fato continuam a ser, mesmo que em suas casas existam aparelhos de televisão, ligados a antenas parabólicas - ou que já tenham cacife e ilustração para fazer uso de aparelhos de telefonia celular. A Bolsa Fomília faz que não falte na barriga.

Dá-se então que não seria vero parodiar Euclides da Cunha, dizendo que "O sertanejo é antes de tudo um forte". Talvez hoje seja até barrigudo, e até obeso, embora sofrendo anemia. Como prefeito quase imposto de Palmeira dos Índios foi probo, o que quase não se vê por estes páramos.

Graciliano(recebeu pouco mais de 400 votos e não teve opositor. Ao assumir recebeu uma terra arrasada, mas pouco pode fazer, além de moralizar (sem moralismo) os usos e costumes do longinquo e remoto lugar do sertão das Alagoas. Governou sem fazer distinção de partido ou parentesco, e nisto multou até o seu pai, por expor couro de animais em via pública: "Prefeito não tem pai", decretou. Pôs funcionários barnabés no trabalho, o que deixou muita gente contrariada. Seu exemplo não foi seguido, ao contrário, proliferou como praga o que o gestor reprovava. Sem falso moralismo, exigiu e praticou a moralidade.

O relatório que fez de sua gestão não concluída chamou a atenção para o escritor em potencial. Foi sorte para a literatura ter o velho Graça bandeado para o seu lado. Como político ele não teria prosperado. Não conseguiria ser reeleito, e seria até preso por sua honestidade - como de fato foi aprisionado pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, sem processo formal e sem saber do que era acusado. Não foi preso por ser comunista - que ele não era - mas por não ser corrupto, e por não renunciar à sua integridade. Cancro sócio-politico que sufocou o tempo dele, e continuar a sufocar o nosso.

Ronaldo Costa Fernandes - Poema




A visão dos teus quartos




O parlamento do corpo
na assembléia de membros,
tua bunda,
tuas duas luas nuas,
o sistema solar do assoalho,
os olhos chineses da persiana,
e, tu, na ventriloquia do telefone.

Tu, que és distúrbio,
multidão de uma só pessoa,
passeata de sopranos e bombardinos,
me lanças coquetéis molotovs
e me incendeias com a gasolina dos teus cheiros.

Os poros como ventosas,
os pelos se eriçam como línguas tremelicantes.
Cai a chuva amarela da luz dos postes.
Meus dedos têm memória:
tocam o espinho de carne do teu seio.
Teu biquinho do peito
como o segredo do cofre,
vou rodando até fazer clic
e aí teu coração – ou o tesão – se abre.



(do livro Andarilho, Rio, 7Letras, 2000)
Imagem retirada da Internet: mulher

Manuel Bandeira - Poema


foto
Tragédia brasileira



Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade, conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo o que ela queria.
Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.
Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa.
Viveram três anos assim.
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...
Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.

In. BANDEIRA, Manuel. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 238
Imagem retirada da Internet: projétil

Raul Bopp - Poema



Urucungo


Pai-João, de tarde, no mocambo, fuma
E as sombras afundam-se no seu olhar.
Preto velho afaga no cachimbo a lembrança dos anos de trabalho que lhe gastaram os
músculos.

Perto dali, no largo pátio da fazenda,
umbigando e corpeando em redor da fogueira,
começa a dança nostálgica dos negros,
num soturno bate-bate de atabaque de batuque.

Erguem-se das solidões da memória
coisas que ficaram no outro lado do mar.

Preto velho nunca mais teve alegria.

às vezes pega no urucungo
e põe no longo tom das cordas vozes que ele escutou pelas florestas africanas.

Dói-lhe ainda no sangue uma bofetada de nhô-branco.
O feitor dava-lhe às vezes uma ração de sol para secar as feridas.

Perto dali, enchendo a tarde lúgubre e selvagem,
a toada dos negros continua:

Mamá Cumandá
Eh bumba.
Acubabá Cubebé
Eh Bumba.

In.Urucungo (1932)

Imagem retirada da Internet: Pai-João

Raul Bopp - Poema


Fórmula

- Vamos fazer um trato
numa conta corrente de interesses:

Eu te elogio.
Tu me elogias.
Seremos lembrados.
Seremos fortes.
Seremos gênios.

O povo pensa pelo que lê nos jornais.

Um dia
o Prefeito, lá na província telegráfica,
mandará levantar um bustinho em praça pública.

Imagem retirada da Internet: político

Raul Bopp - Poema (fragmentos)



Cobra Norato

I

Um dia
ainda eu hei de morar nas terras do Sem-Fim.


Vou andando, caminhando, caminhando;
me misturo rio ventre do mato, mordendo raízes.
Depois
faço puçanga de flor de tajá de lagoa
e mando chamar a Cobra Norato.


— Quero contar-te uma história:
Vamos passear naquelas ilhas decotadas?
Faz de conta que há luar.


A noite chega mansinho.
Estrelas conversam em voz baixa.


O mato já se vestiu.
Brinco então de amarrar uma fita no pescoço
e estrangulo a cobra.


Agora, sim,
me enfio nessa pele de seda elástica
e saio a correr mundo:


Vou visitar a rainha Luzia.
Quero me casar com sua filha.


— Então você tem que apagar os olhos primeiro.
O sono desceu devagar pelas pálpebras pesadas.
Um chão de lama rouba a força dos meus passos.



II

Começa agora a floresta cifrada.
A sombra escondeu as árvores.
Sapos beiçudos espiam no escuro.


Aqui um pedaço de mato está de castigo.
Árvorezinhas acocoram-se no charco.
Um fio de água atrasada lambe a lama.


— Eu quero é ver a filha da rainha Luzia!


Agora são os rios afogados,
bebendo o caminho.
A água vai chorando afundando afundando.


Lá adiante
a areia guardou os rastos da filha da rainha Luzia.


— Agora sim, vou ver a filha da rainha Luzia!


Mas antes tem que passar por sete portas
Ver sete mulheres brancas de ventres despovoados
guardadas por um jacaré.


— Eu só quero a filha da rainha Luzia.


Tem que entregar a sombra para o bicho do fundo
Tem que fazer mironga na lua nova.
Tem que beber três gotas de sangue.


— Ah, só se for da filha da rainha Luzia!


A selva imensa está com insônia.


Bocejam árvores sonolentas.
Ai, que a noite secou. A água do rio se quebrou.
Tenho que ir-me embora.


E me sumo sem rumo no fundo do mato
onde as velhas árvores grávidas cochilam.


De todos os lados me chamam:
— Onde vai, Cobra Norato?
Tenho aqui três árvorezinhas jovens, à tua espera.


— Não posso.
Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia.



IV

Esta é a floresta de hálito podre,
parindo cobras.


Rios magros obrigados a trabalhar.


A correnteza arrepiada junto às margens
descasca barrancos gosmentos.


Raízes desdentadas mastigam lodo.


A água chega cansada.
Resvala devagarinho na vasa mole
com medo de cair.


A lama se amontoa.


Num estirão alagado
o charco engole a água do igarapé.


Fede...


Vento mudou de lugar.


Juntam-se léguas de mato atrás dos pântanos de aninga.
Um assobio assusta as árvores.


Silêncio se machucou.


Cai lá adiante um pedaço de pau seco:
Pum


Um berro atravessa a floresta.


Correm cipós fazendo intrigas no alto dos galhos.
Amarram as árvorezinhas contrariadas.


Chegam vozes.


Dentro do mato
pia a jurucutu.


— Não posso.
Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia.



XXXII

— E agora, compadre,
eu vou de volta pro Sem-Fim.


Vou lá para as terras altas,
onde a serra se amontoa,
onde correm os rios de águas claras
em matos de molungu.


Quero levar minha noiva.
Quero estarzinho com ela
numa casa de morar,
com porta azul piquininha
pintada a lápis de cor.


Quero sentir a quentura
do seu corpo de vaivém.
Querzinho de ficar junto
quando a gente quer bem, bem;


Ficar à sombra do mato
ouvir a jurucutu,
águas que passam cantando
pra gente se espreguiçar,


E quando estivermos à espera
que a noite volte outra vez
eu hei de contar histórias
(histórias de não-dizer-nada)
escrever nomes na areia
pro vento brincar de apagar.

Raul Bopp - Poema


História do Brasil em quadrinhos





No meio do Brasil havia um rio
que não tinha margens.
Rio imenso.
A água corria, corria. Correu tanto
que um dia secou.


Apareceram, então, na crosta mole, à flor da terra,
montões de pedrarias de vivas rutilâncias.
O sol brincava com diamante.
Dos barrancos beiçudos,
sangrava ouro, em veios retorcidos.
O ferro relampeava nas jazidas,
que se estendiam em léguas intermináveis.


Deus pensou um pouco:
Será melhor que o ser humano não pegue logo essas riquezas!
Mandou o Anjo Número Um cobrir de terra isso.
Amontou montanhas. Espalhou mato em toda parte.
- Quem quiser essa opulência que a procure!
E escondeu o petróleo mais pro fundo.


Depois disse pro Anjo:
- Vou passar aqui as minhas férias.
Essa terra é mesmo tão graciosa,
sem tufões, sem vulcões, sem terremotos.


E ficou esperando pelos acontecimentos históricos.


                           II


Um dia,
viu uma naus portuguesas paradas no oceano,
por falta de vento.
Deu um assoprão nas velas murchas.
Vieram logo bater nas costas brasileiras.


Ué, exclamou Cabral, do alto da proa:
Essa terra não existe nos mapas!


Mas, mesmo assim, desembarcaram.


                          III


E foram chegando outras naus,
com hordas de homem ansiosos de aventuras.
Avançaram terra adentro, à procura de ouro.
Depois avançaram nas tapuias de pele dourada.
Avançaram nas negras de carnes reluzentes,
trazidas em navios negreiros.


                            IV


E o Brasil foi se fazendo desse jeito,
em grandes misturas,
com violência, estupros e adultérios.


As cortes de Lisboa estavam cada vez mais prósperas.
Enviavam feitores e governadores,
com Alvarás e novas Cartas Régias.


As caravelas voltavam
abarrotadas de açúcar, pau-brasil e ouro.
O Brasil era propriedade de El-Rey.


Mas a colônia desgostosa se agitava,
com revoltas, motins, inconfidências.


Um dia,
o povo oprimido deu um berro:
- Agora chega! Basta de exploração!
Foi um berro pra valer mesmo.


Valeu, tempos depois depois, a nossa independência.




                                                                         1973



In. Poemas Brasileiros.
Imagem retirada da Internet: Rio Amazonas

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