Horácio Quiroga - Conto

À Deriva





            O homem pisou algo brando e mole e, em seguida, sentiu a picada no pé. Saltou para frente, e ao se voltar com um palavrão, viu a jararacuçu que se recolhia sobre si mesma; esperava outro ataque.
            O homem lançou uma veloz olhada a seu pé, de onde duas gotinhas de sangue engrossavam dificultosamente, e então sacou o facão da cintura. A víbora viu a ameaça, e fundiu mais a cabeça no centro mesmo de sua espiral; porém o facão caiu sobre ela, deslocando-lhe as vértebras.
            O homem abaixou-se para olhar a mordida, limpou as gotinhas de sangue, e durante algum tempo contemplou. Uma dor aguda nascia dos dois pontinhos violeta, e começava a expandir-se por todo o pé. Apressadamente, amarrou o tornozelo com seu lenço, e seguiu pela picada até seu rancho.
            A dor no pé aumentava, e de repente, o homem sentiu dois ou três fulgurantes pontadas que como relâmpagos haviam-se irradiado da ferida, até a metade da panturrilha. Movia a perna com dificuldade; uma sede metálica na garganta, seguida de uma sede ardente, arrancou-lhe outro palavrão.
            Chegou finalmente ao rancho, e abraçou a roda do moinho. O dois pontinhos violeta desapareciam agora na monstruosa inchação do pé inteiro. Parecia-lhe enfraquecida, e a ponto de ceder, de tão tensa. O homem quis chamar sua mulher, mas sua voz se quebrou num grunhido rouco de garganta ressecada. A sede o devorava.
            __ Dorotea! – conseguiu lançar um grito. – Me dá cachaça!
            Sua mulher correu com um copo cheio, que o homem sorveu de três tragos. Porém não havia sentido gosto algum.
             __ Te pedi cachaça, não água! – rugiu de novo. – Quero cachaça!
            __ Mas é cachaça, Paulino! – protestou a mulher, espantada.
            __ Não, me deste água! Quero cachaça, te digo!
            A mulher correu outra vez, voltando com o garrafão. O homem bebeu um atrás do outro três copos, porém não sentiu nada na garganta.
            __ Bom, isto está feio... – murmurou então, olhando seu pé lívido e já com um brilho gangrenoso. Sobre a intensa atadura do lenço, a carne transbordava como uma pavorosa morcela.
            As dores fulgurantes sucediam-se em relâmpagos contínuos, e chegavam agora à virilha. Além disso, a atroz sequidão da garganta que o esforço parecia esquentar mais, aumentava. Quando pretendia encorpar-se, um fulminante vômito o manteve meio minuto com a testa apoiada na roda de madeira.
            Mas o homem não queria morrer, e descendo à costa, subiu em sua canoa. Sentou-se na popa e começou a remar até o centro do Paraná. Ali, a correnteza do rio, que nas imediações do Iguaçu corre por seis milhas, o levaria antes de cinco horas a Tacurú-Pucú.
            O homem, com fatigada energia, pode efetivamente chegar até o meio do rio; no entanto, ali suas mãos dormentes deixaram cair o remo na canoa, e por causa de um novo vômito – de sangue esta vez -, dirigiu um olhar ao sol que transpunha a montanha.
            A perna inteira, até metade da coxa, era já um pedaço disforme e duríssimo que rompia a roupa. O homem cortou a ligadura e abriu a calça com a faca: a parte inferior desbordou inchada, com grandes manchas lívidas e terrivelmente dolorosas. O homem pensou que não poderia jamais chegar sozinho a Tacurú-Pucú, e decidiu pedir ajuda a seu compadre Alves, embora fizesse muito tempo estivessem intrigados um com o outro.
A correnteza do rio precipitava-se agora para a costa brasileira, e o homem pode facilmente atracar. Arrastou-se pela picada costa acima, porém aos vinte metros, exausto, ficou estendido de costas.
__ Alves! – gritou com a força que pode; e prestou atenção em vão.
__ Compadre Alves! Não me negue este favor! – clamou de novo, levantando a cabeça do solo. No silêncio da selva, não se ouviu um só rumor. O homem teve ainda forças para chegar até sua canoa, e a correnteza, apoderando-se dela de novo, a levou à deriva.
O Paraná corre ali no fundo de uma imensa depressão, cujas paredes, com altura para lá de cem metros, estreitaram funebremente o rio. Desde as margens cercadas de negros blocos de basalto eleva-se o bosque, negro também. Adiante, às costas, sempre a eterna muralha lúgrube, em cujo fundo o rio afunilado se precipita em incessantes erupções de água lodosa. A paisagem é agressiva, contudo, sua beleza sombria e calma cobra uma majestade única.
O sol havia já havia caído, quando o homem, estendido no fundo da canoa, teve um violento calafrio. E, de repente, com assombro, pôs na vertical pesadamente a cabeça: sentia-se melhor. Somente a perna lhe doía, a sede apagava-se, e seu peito, livre já, abria-se em lenta inspiração.
O veneno começar a ir-se, não havia dúvida. Achava-se quase bem, e embora não tivesse forças para mover a mão, contava com a vinda do orvalho para repor-se todo. Calculou que antes de três horas estaria em Tacurú-Pucú.
O bem-estar progredia e, com ele, uma letargia cheia de recordações. Não sentia mais nada na perna nem no ventre. Viveria ainda seu compadre Gaona em Tacurú-Pucú? Por acaso veria também seu ex-patrão, mister Dougald, e o encarregado de obras?
Chegaria repentinamente? O céu, a poente, abria-se agora num resplendor de sangue, e o rio se havia avermelhado também. Da costa paraguaia, já em trevas, a montanha deixava cair sobre o rio sua frescura crepuscular, em penetrantes eflúvios de flores de laranjeiras e mel silvestre. Um casal de araras cruzou o céu muito alto e em silêncio até o Paraguai.
Lá embaixo, sobre o rio de ouro, a canoa derivava velozmente, girando de tempos em tempos sobre si mesma, ante a erupção de um remoinho. O homem que ia nela se sentia cada vez melhor, e pensava no tempo justo em que havia passado sem ver seu ex-patrão Dougald. Três anos? Talvez, não tanto. Dois anos e nove meses? Talvez. Oito meses e meio? Isso sim, certamente.
De repente sentiu que estava gelado até o peito. Que seria? E a respiração...
Ao madeireiro de mister Dougald, Lorenzo Cubilla, havia conhecido em Puerto. Esperança em Sexta-feira Santa...Sexta-feira? Sim, ou quinta-feira...
O homem estendeu lentamente os dedos da mão.
__ Uma quinta-feira...
E parou de respirar.      

Tradução: Jádson Barros Neves              

O conto acima foi extraído do livro "Cuentos de amor, de locura y de muerte", constante em sua obra TODOS LOS CUENTOS, da Editora ALLCAXX/SCIPIONE CULTURAL. 

 Horacio Quiroga (1878 – 1937), nasceu em Salto, no Uruguai, foi poeta, romancista, diplomata e dramaturgo. Sua vida foi marcada por acontecimentos trágicos — a morte violenta do pai, o suicídio do padrasto, o falecimento de dois de seus irmãos, o suicídio da primeira esposa e, posteriormente à sua morte, também por suicídio ao saber que sofria de um câncer gástrico, seus três filhos se suicidaram. Conviveu em Paris com Rúben Darío, foi professor de castelhano em Buenos Aires – Argentina, trabalhou como fotógrafo em uma expedição às ruínas jesuíticas de Misiones, onde morou. Algumas de suas obras: Los arrecifes de coral (1901 – Os recifes de coral), Cuentos de amor, de locura y de muerte (1917 – Contos de amor, de loucura e de morte), Cuentos de la selva (1918 – Contos da selva), Los desterrados (1926 – Os desterrados), e Más Allá (1935 – Mais além), última obra do autor.






Francisco Perna Filho - Poema



PALAVRAS DE UM MORTO


O que seria a loucura para vós?
um homem voltado ao vazio,
nas ruas grávidas de gente?
meu coração parte-se.
E a mudez que o estampido rompe,
não desfaz minha fé nos homens,
nas palavras.
Tivésseis carregado vossas armas de boas intenções,
por certo, o medo não rondaria nossos caminhos.
Não vos acuso pela loucura do mundo,
mas não posso admitir
que façais tombar a esperança
de campos floridos,
de crianças correndo brilhatemente pelos bosques,
de janelas abertas prenhes de um novo dia.
Há um grito em cada verso meu,
grito abafado, mas sereno.
Um grito continental,
de clamor e piedade pela humanidade.
De que artes & manhas são feitas as guerras,
irmãos meus?
talvez da racionalidade humana,
porquanto loucos não declinam maldades,
apenas perseguem vazios.

In.Refeição. Goiânia:Kelps, 2001, p.8

Imagem retirada da Internet: guerra

Jorge de Lima - Poema


O grande desastre aéreo de ontem




Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva,abraçado com a hélice. E o violinista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se dançassem ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o paraquedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão tranquila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol. 


In. Obra Poética. Rio de Janeiro: Getúlio Costa, 1949, p.370
Imagem retirada da Internet: flores e partitura

Francisco Perna Filho - Conto



Motivos Pascais



I





Faltavam vinte para as quatro da manhã, quando ele acordou. Apesar de o relógio do celular estar programado para despertá-lo às quatro, fora antecipado pelo seu relógio biológico. Não hesitou, saltou da cama e caminhou para a sala. fixou-se no vidro de Wintomylon: ácido nalidíxico: tomar de 6 em 6 horas, 7 ml, por 10 dias. Sentou-se na ponta da chese, apoiou os cotovelos nas pernas e perdeu-se em divagações.


Havia pegado no sono, quando um piado lhe trouxera de volta, olhou mais uma vez para o celular, foi como se o tempo tivesse parado, apenas cinco minutos haviam passado. Voltou-se para o vidro de antibiótico, era preciso acordar a filhinha dar-lhe o remédio; não poderia vê-la assim definhando por causa de uma infecção intestinal. Bem que ele intuíra que o salgado que ela havia comido poderia fazer mal, mas a fome da criança era bem maior do que qualquer cuidado. Sacudiu a filha, chamou-a e ela respondeu sonolenta, sentando-se na cama (um grande ovo de páscoa sobreveio à resposta da filha. Um ovo grande, azul, embrulhado com motivos pascais), ele engoliu em seco, travou a emoção, contentando-se em ajudá-la a levar o remédio à boca. Ela ardia em febre, ele correu à caixinha de remédio, deu-lhe vinte gotas da dipirona, alisou-lhe os cabelos, falou alguma coisa ao seu ouvido, e ela voltou a dormir.

Ele precisava recobrar o sono, ele tinha de esquecer os incômodos da semana passada: a filha doente, febre de 40°, seguida de diarréia, de espasmos, e muita moleza. Na biblioteca, ligou o computador, para depois aquietar-se nas suas teclas. Abriu a janela, sentiu um calafrio, tentou recompor-se, mas nada lhe tirava da ideia uma forma de reparação. A chuva começou a cair, trazendo-lhe frescor.

Após a chuva, lembrou-se do sonho que tivera, quando, sob uma chuva grossa, percorria as ruas estreitas e sinuosas de um lugarejo qualquer. Errara pela noite, com medo, sem saída, no lugar desconhecido. Benzeu-se por três vezes, assim fazia, sempre que se achava perdido, desiludido ou ameaçado. Rodopiou no seu pequeno espaço, pensou em acender um cigarro, mas aquilo era abominável, foram anos para afugentar o vício, e ele, ali, tendendo a uma recaída. Respirou fundo, levantou-se da velha cadeira amarela e rumou em direção ao quarto: a criança dormia, a febre havia cessado. Alguma luz entrou pela persiana, iluminando o armário embutido na parede. 

Na sala, recostou-se no sofá e, devagarzinho, foi se entregando ao sono, que veio forte, naquele instante. Fora sacudido pelo barulho do interfone. Correu a mão pelo sofá, pelos bolsos, até dar-se conta de que os óculos estavam no seu rosto, dormira com eles. Foi à mesa da sala em busca do controle remoto. Após certificar-se de que era mesmo a sua empregada, Sandra, abriu o portão, deu-lhe bom dia e saiu para tomar banho.

II


“O Inferno é aqui, a gente arde em brasa e ninguém faz nada”. disse-lhe uma aluna na faculdade. Assentira com a cabeça, quando ela emendou: “aqui é a cidade mais democrática do mundo, tem um sol para cada habitante”. Lembrou-se da Comala de Rulfo, do Inferno de Dante. Sorriu e continuou a falar sobre coesão e coerência. A cidade se desfazia em buracos, em locas e barrocas, mas não havia de preocupar-se com isso, o prefeito já dissera, assim como o livro do Eclesiastes: há um tempo para tudo, inclusive para os buracos. A ele, naquele instante, só interessava a filha. 

De volta para casa, lembrou-se de que prometera à filha um ovo de páscoa, caso ela sarasse, uma forma de motivá-la a comer, já que, até aquele instante, só se alimentara de água de coco e algumas colheradas de sopa. A senhora do salgado não agira propositadamente, estava ali, com seu carro aberto, com salgados frios e duros. Lembrou-se da fala de sua aluna: “O Inferno é aqui, a gente arde em brasa e ninguém faz nada”. 

III


Já era sexta feira e ele, tornara-se pensativo. Vez ou outra entrava no quarto da filha adormecida, sentia o tempo listar sua vida, o passado, como um corante, tornara-se vivo, foi quando ele entrou no carro e rumou para o lago. Tirou a roupa e ensaiou um mergulho. Não dissera nada, silenciara ali. (Corpo é encontrado boiando no lago, o que confirma o que dissera a vendedora de salgados, uma senhora de sessenta anos, ao delegado Raul Campos. Segundo ele, um dia antes ela procurara o 1º DP, levando consigo uma bermuda, camiseta e chinelos, que dissera ter encontrado na beira do lago . Os pertences foram encontrados no banco de um carro, que estava com a porta do motorista aberta. O delegado disse, ainda, que no bolso esquerdo da bermuda, foram encontradas três folhas datilografadas, o que, a princípio, a senhora, que mal sabia ler, imaginou, depois de ler apenas o título: “Motivos Pascais” que fosse uma carta de despedida, revelara-se como um conto, no qual, coincidentemente, a senhora dos salgados figurava como protagonista. Segundo a autoridade, o rapaz, um professor universitário de 43 anos, perdera a filha, há dois anos, em decorrência de uma infecção intestinal, e passava por tratamento psiquiátrico.


Imagem retirada da Internet: ovo de páscoa

Rogério Nolêto - Poema


Tão alheio




Pés descalços,
Correndo sob chuva,
Alma nua,
Ó minha amarga dor.
Rezo teus versos
e me releio
Tão alheio ao tempo que já passou

Mariposas, céu sem lua
Lamparinas, mar de estivador.
Pés descalços
Correndo sob chuva
Alma nua
Ó minha amarga dor

Tua sombra me ilumina
Sou teu alvo, teu atirador
Rezo teus versos
E me releio
Tão alheio ao tempo que já passou.

Francisco Perna Filho - Conto





ENRIQUECIMENTO DE URÂNIO




Urânio, até os 12 anos, era um menino retraído, raquítico, sem perspectiva nenhuma. Vivia numa casinha velha, de pau-a-pique, e não conhecia cidade grande. Cresceu ouvindo história de trancoso, superstições e outras inculcacões. Sempre dormiu em rede e criou-se andando a cavalo, correndo pelas quintas do seu avô e nadando nu pelos riachos das cercanias.

Aos oito anos, ganhou da sua avó um pente de chifre e um espelhinho, daqueles ovalados, com a foto de uma mulher pelada. Depois disso, se precipitava pelos córregos, matas, banheiros, buracos de portas, fechaduras, rachaduras nas paredes, debaixo das camas, sempre querendo roubar, nem que fosse por pequeno espaço de tempo, algum seio, bunda ou, simplesmente, a ligeira visão de uma comportada ou esvoaçada penugem.

Contava as horas para o banho das suas vizinhas, sempre com um olhar ligeiro, galopante nas suas fantasias. Inclinou-se, desde logo, para aquilo que ele viria, mais tarde, a chamar de predestinação: um empresário de corpos. Passou observar o sexo das éguas, cadelas e porcas, tentava fazer comparações com os de suas vizinhas, analisava tudo.

Descobriu algumas revistas, de conteúdo explícito sobre sexo, no armário do seu pai, roubando-as para folheá-las, quando ficava sozinho em casa. Passou a taramelar a porta do quarto e ficar horas trancado, chegando, muitas vezes, a causar preocupação à sua mãe, que, ao passar pelo quarto, ouvia o rangido das molas da cama, uns gemidos esquisitos e, logo após, um breve silêncio.

Passou a observá-lo mais, até descobrir que as meias do filho estavam desaparecendo, sem que ela soubesse como, só vindo a saber mais tarde, quando, por displicência de Urânio, que deixara a porta aberta, surpreendeu-se com o filho deitado na cama, com o pênis vestido pela meia, cavalgando nas fantasias dele. Tentou voltar, mas já era tarde.

Urânio, aos 15 anos, invocou-se com a bailarina de um circo, que passava pela sua cidade, ficando preso a ela por um longo tempo, enclausurado, só saia à noite, quando ela precisava trabalhar. Apesar de a sua mãe implorar para que ele voltasse para casa, Urânio, contrariando os ensinamentos maternos, começou a dividir a amada com os colegas de rua, em troca de uns míseros reais. Não demorou muito, e toda a cidade passou a freqüentar a “Rua de Baixo”, e os fartos trechos de Ema, alcunhada de senhora dos aflitos.

Os negócios progrediam, e a notícia de Urânio se espalhou pelas cidades vizinhas, atraindo jovens, adolescentes, senhores, trabalhadores do campo, empresários, todos querendo alguns instantes de prazer e carinho; outros, atraídos pela curiosidade, do que, para muitos, não passava de especulação: bandinha, a “moça” que só tinha uma banda do sexo, que, por muitas noites, tirou o sono de Urânio. Como ela, também tinha Pichula, uma anã de bunda farta, atração à parte, pela forma peculiar de olhar, seus olhos eram diferentes: um verde e o outro azul. Carmem, ou “cara quadrada”, era bastante gorda e fogosa, se destacando pela forma do rosto e pelos sons que produzia, quando fazia “amor”. Maria Angulista, uma sublimidade na cama, poço de lirismo e libido, que, ao chegar ao orgasmo cantava: Tô fraca! Tô fraca! Tô fraca!. Tonha Vaga-lume, diziam, quando abria as pernas, uma luzinha acendia lá no fundo. Também tinha “Jurema Olho-de-porco”, umas das mais procuradas, pela peculiaridade do seu serviço; sem falar na descomunal “Lupéria Taturana-Bezerra”.

Urânio viveu dias de glória e reconhecimento, apesar da ingenuidade para certos assuntos, conseguia se sair muito bem com o negócio ao qual se propusera, chegando a ser cotado para prefeito da sua cidade, mesmo contrariando o padre, o pastor e alguns moralistas, que, mais tarde, também passaram a usufruir dos serviços da “casa da rua de baixo”.


Urânio tornou-se um poço de alegria e poder, cada vez mais solicitado e influente, ditava os dias de silêncio e as noites de gritos e descobertas, principalmente por ter a seu favor as molas do mundo: dinheiro e sexo. Viu-se convidado para tudo, inclusive, para apadrinhar crianças e noivos; já não distinguia as amizades do interesses. A todos tratava bem, quando era destratado, encarregava a Pau-de-Goiaba, um brutamonte maneta, de cabeça chata, e sem um fio de cabelo na cabeça, umas três sessões de descarrego no Lago da Piabinha.

Os tempos foram mudando, e Urânio sentiu necessidade de expandir os negócios, passou a importar travestis, transexuais e drag-queens, apaixonou-se, assim que viu “Olga Tamanduá Bandeira”, uma raridade na fauna daquela região. Por conta disso, descobriu-se bi, bitolado, amarrado, chegando a ponto de ser padrinho, em São Paulo, da Parada Gay. Foi quando se viu indignado, ao ler numa manchete de Jornal: “Bush se diz contra o enriquecimento de urânio para fins bélicos”. Quase explodiu, queria saber o porquê daquele despeite, será que as pessoas não podiam ganhar dinheiro honestamente? Foram precisos dias para que ele pudesse entender que a manchete não se referia a ele.

Passado o constrangimento, Urânio viu-se envolvido num dos mais enigmáticos episódios de sua vida: numa sexta feira treze, quando cavalgava tranqüilo pela partes de Olga, sentiu-se como uma formiga, comprimido pelas garras e sugado pela tromba da sua amada, literalmente transformada em um tamanduá. Foi um “deus-nos-acuda”, uma verdadeira gritaria, até que alguém que já sabia da transformação, Zé Lambu, chegar com uma espingarda e desferir, com bala de prata, um tiro mortal na testa de Olga, que logo voltou à aparência humana, só que sem vida.

Depois daquele episódio, Urânio nunca mais foi o mesmo, foi outro. Envolvera-se em vários episódios não convencionais como seguir formigas em correição para devorá-las, abraçar por longas horas árvores e animais, e, de vez em quando, ficava de quatro para transportar folhas no seu dorso: do quintal para sentina, quando ali as depositava, voltado à forma ereta. 


 Imagem retirada da Internet: wealth

Francisco Perna Filho - Conto



PLENILÚNIO







Uma bola de fogo cruzou o céu da fazenda e, rodopiante, acompanhou os mesmos movimentos de Natinho em volta da fogueira de São João, por um momento, pareceu coalhada no firmamento, todos a observavam, ao passo que se voltavam para o menino, que também inerte se perdia no pesadelo do esquecimento. A bola saiu do seu descanso aparente, zigzagueou por sete vezes, descendo em disparada de encontro ao peito de Natinho, que se desfez em cinzas. Naquela noite.

Um menino, um rádio e a ilusão do futebol. Foi assim que muitos disseram, anos depois, quando Natinho já não estava mais entre nós. Era Copa do Mundo de Futebol, México, 1970, estávamos reunidos em volta de uma mesinha de centro, no alpendre da minha casa, ouvindo um rádio à válvula, quando ele chegou. Tinha os olhos tristes e distantes e uma palidez de ausências. Viera com a sua mãe e dela não se desgrudara por nenhum instante até o apito final, quando o Brasil venceu a Itália por 4 a 1 no estádio Azteca.

Durante a narração do jogo, num dado momento, começou a girar em torno de si mesmo, até cair desfalecido. Foi um alvoroço. Trouxeram álcool, esfregaram nos seus pulsos. Jogaram água na sua cabeça, e nada. Quando já pensavam em chamar o médico, ele começou a se mexer e, como se nada tivesse acontecido, abriu os olhos e levantou-se tranquilamente. A mãe, sem se pronunciar, o pegou pelo braço e o levou para fora da casa. O jogo já estava no fim. Ouviu-se uma gritaria, foguetes e muito riso. O Brasil sagrara-se tricampeão do Mundo.

Alguns dias se passaram, e eu, ao voltar do trabalho, deparei-me com o menino, com os olhos arregalados, um cabo de vassoura na mão, e o rádio à válvula todo destruído. Sem saber o que fazer, pedi que chamassem a mãe dele, na casa ao lado. Quando ela veio, o menino começou a berrar e a pular repetidas vezes. Ela o pegou pela orelha, pediu-me desculpas, prometendo arcar com o prejuízo, e o levou embora. Mais tarde vim a saber o porquê daquela destruição. Por insistência de um garoto, filho da dona da casa na qual ele estava hospedado, resolvera procurar, por entre as válvulas, os homens que narravam o jogo com a promessa de ganhar - deles - uma bola.

Desde cedo, Natinho demonstrou uma predileção pela forma circular, arredondada. Ainda no meu colo teve a sua primeira experiência com essa forma, quando, na Lua Cheia de Áries, gritou descontroladamente e pinoteou, como querendo se soltar dos meus braços, para depois adormecer profundamente, contou-nos a mãe. E foi assim durante muito tempo, por doze ou treze vezes ao ano, repetia o ritual do plenilúnio, postava-se no batente da porta, que dava para o pátio, e ali, após um longo momento de contemplação, começava falar em uma língua estranha e rodopiar em volta de si mesmo, até cair inconsciente. 

Cresceu contando as luas, e, naqueles dias que antecediam ao espetáculo celeste, ele se transformava, ficava quieto, silencioso e isolado. Gostava de refugiar-se na Grota, um riacho de água gelada, que passava atrás do sítio da fazenda. Sentava-se na sua ribanceira, e de lá atirava pedras na água. Encantava-se com os círculos que iam se formando, crescendo e indo embora. Entre uma pedra e outra, aproveitava para fazer rolar, ladeira abaixo, as laranjas que trazia consigo, num misto de gozo e felicidade.

Natinho cresceu e, aos dez anos, ficou extasiado ao se deparar com um repolho, sobre a mesa da cozinha, aquela lua verde esbranquiçada, todo fundido em camadas, como ele viria a chamá-lo. Depois do susto, ficou andando por uma hora em volta da mesa, numa contemplação circunferencial, sem saber o porquê daquele sentimento. Durante toda aquela semana pensou no repolho, chegou até sonhar que ele tinha vida e eles eram amigos. Jamais aceitou comê-lo e repreendia, enfurecido, quem o fizesse na sua frente.

Desde a primeira vez que vira uma bola, nunca mais tivera sossego. Foi num exemplar da revista Cruzeiro, esquecida por um visitante na varanda da nossa casa. Naquele dia, algo mágico aconteceu. Ficou transtornado, deu cambalhotas, chorou. Até então só conhecia as bolinhas de meia que eu confeccionava para ele brincar. Depois disso, não quis mais comer, não saia do quarto, sempre trazia consigo a fotografia da bola, comprimida no peito nu e esguio. Uma paixão avassaladora.

O tempo passava e Natinho parecia mais esquisito, mais só, redondo nas suas elucubrações, nos seus pensamentos e visões, como a que ele tivera no momento que estava no curral ajudando o pai na ordenha do gado, como ele mesmo me dissera, e uma Lobeira, dessas bem grandes e verdes, desprendeu-se não se sabe de onde e começou a levitar, movendo-se em círculos, depois caiu e quicou inúmeras vezes, até desaparecer por detrás do curral. Seu pai nada percebera, mas jamais acreditou que o nosso filho estivesse predestinado ao encantamento, como os fatos viriam a se confirmar, anos depois. Na noite em que comemorámos o Pentacampeonato, uma bola de fogo cruzou o céu da fazenda. À primeira vista, pensávamos que fosse fogos de artifício, algo a mais na comemoração da vitória do Brasil sobre a Alemanha, apenas pensamos, porque ela parecia repetir os movimentos do nosso filho. Ao sair do seu descanso aparente, zigzagueou por sete vezes, descendo em disparada de encontro ao peito dele, que se desfez em cinzas.

Imagem retirada da Internet: novo planeta

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