Ossip Mandelshtam - Poema




A Era


Minha era, minha fera, quem ousa,
Olhando nos teus olhos, com sangue,
Colar a coluna de tuas vértebras?
Com cimento de sangue - dois séculos -
Que jorra da garganta das coisas?
Treme o parasita, espinha langue,
Filipenso ao umbral de horas novas.


Todo ser enquanto a vida avança
Deve suportar esta cadeia
Oculta de vértebras. Em torno
Jubila uma onda. E a vida como
Frágil cartilagem de criança
Parte seu ápex: morte da ovelha,
A idade da terra em sua infância.


Junta as partes nodosas dos dias:
Soa a flauta, e o mundo está liberto,
Soa a flauta, e a vida se recria.
Angústia! A onda do tempo oscila
Batida pelo vento do século.
E a víbora na relva respira
O outo da idade, áurea medida.


Vergônteas de nova primavera!
Mas a espinha partiu-se da fera,
Bela era lastimável. Era,
Ex-pantera flexível, que volve
Para trás, riso absurdo, e descobre
Dura e dócil, na meada dos rastros,
As pegadas de seus próprios passos.



Tradução de Haroldo de Campos
Imagem retirada da Internet: flauta

Ferreira Gullar - Poema



Homem Comum 




Sou um homem comum
de carne e de memória
de osso e esquecimento.
Ando a pé, de ônibus, de táxi, de avião
e a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
cessar.

Sou como você
feito de coisas lembradas
e esquecidas
rostos e
mãos, o guarda-sol vermelho ao meio-dia
em Pastos-Bons,
defuntas alegrias flores passarinhos
facho de tarde luminosa
nomes que já nem sei
bandejas bandeiras bananeiras
tudo
misturado
essa lenha perfumada
- que se acende
- e me faz caminhar

Sou um homem comum
brasileiro, maior, casado, reservista,
e não vejo na vida, amigo,
nenhum sentido, senão
lutarmos juntos por um mundo melhor.
Poeta fui de rápido destino.
Mas a poesia é rara e não comove
nem move o pau-de-arara.
Quero, por isso, falar com você,
de homem para homem,
apoiar-me em você
oferecer-lhe o meu braço
que o tempo é pouco
e o latifúndio está aí, matando.

Que o tempo é pouco
e aí estão o Chase Bank,
a IT & T, a Bond and Share,
a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton,
e sabe-se lá quantos outros
braços do polvo a nos sugar a vida
e a bolsa
Homem comum, igual
a você,
cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo.
A sombra do latifúndio
mancha a paisagem
turva as águas do mar
e a infância nos volta
à boca, amarga,
suja de lama e de fome.

Mas somos muitos milhões de homens
comuns
e podemos formar uma muralha
com nossos corpos de sonho e margaridas.



In.: Os melhores poemas de Ferreira Gullar. 1.ª ed. São Paulo: Global, 1983.

Imagem retirada da Internet: maçarico

Ferreira Gullar - Poema



O açúcar




O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.


Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.


Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira,
dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.


Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.


Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem
aos vinte e sete anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.


Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.

Imagem retirada da Internet: açucar

Manuel Bandeira - Poema



Profundamente




Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam, errantes

Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.


Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.


In. Antologia Poética M.B.,  Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Imagem retirada da Internet: fogueira

Valdivino Braz - Ensaio Crítico


 

Pelos labirintos de Joyce




Fruir o lúdico joyceano. É o mínimo que “Finnegans Wake” espera de nossa parca inteligência. Fruir (vide Aurélio) é “estar na posse de”. Se você não toma posse do texto, nada possui ou extrai dele; deixa, então, que o texto lhe possua. Esteja possuído, e já se dê por satisfeito. “Tirar de uma coisa todo o proveito, todas as vantagens possíveis, e, sobretudo, perceber os frutos e rendimentos dela”, prossegue mestre Aurélio, arrematando que fruir é desfrutar. Desfrute, ó falso leitor — “hypocrite lecteur”, diria Baudelaire.

Ousaria eu até dizer que, “a priori”, não se trata tanto de entender o quebra-cabeça, mas de fruir e deixar-se fluir com o “riocorrente” de Joyce. Girar com esta obra circular e infinita, feito o fluxo de um oito; vertiginosa e contorcida tal uma montanha-russa num parque de diversões. Trata-se, entre outras e tantas peripécias, de uma liberta e libertina linguagem, libertinagem linguística. É mesmo um labiríntico desafio, quebrando tabus, tradicionais convenções de narrativa. O peralta irlandês nos armou uma direitinho. Até, desafiando a sapiência crítica, deu prazo de trezentos anos para que “Finnegans Wake” seja entendido. Se bem que, vamos e venhamos, a coisa não seja bem assim.

Talvez Joyce não seja para qualquer um. Não se encrespem, estou brincando, dentro do espírito de que “Finnegans Wake” é, por acréscimo, uma folia, um brinquedo linguístico (literatura é, também, um brinquedo). Livro lúdico, lírico, telúrico, mítico, ôntico, poliédrico, polissêmico, polifônico, é um florilégio literário, e um sortilégio, no sentido de sedução e fascínio por artifícios do intelecto, no reino febril da criação com idéias e palavras. Um jorro de figurações e fulgurações, cristais e vidrilhos, fantasias, filigranas, epifanias, mitologias, história, lendas, ficções e realidades múltiplas. Um artefato mental de Joyce, estilhaçando o trivial da literatura. Tamanha riqueza para tanta pobreza de leitura, ou de não-leitura, senão que de leitura nenhuma. Às vezes penso que Joyce chega a ser um desperdício, seja pelas limitações do nosso alcance, seja pelo excesso de inteligência, com uma linguagem possuída de si mesma. Seja até pela nossa falta de paciência. E o que, para alguns, pode parecer um desperdício de tempo (ler “Finnegans Wake”, por exemplo), para outros é um outro tempo o que se retira do desperdício, e deste, uma outra leitura.

Esses humanos é que são fraquinhos demais, diria o poeta Delermando Vieira (Goiânia-GO), no cimo de seus 14 livros premiados. E concordo com o mestre Carlos Augusto Silva (Goiânia), quando diz: “Sim, pode-se ler ´Finnegans Wake´, divertir-se com seus jogos de linguagem, suas onomatopeias, o lírico e belo início do capitulo célebre Anna Livia Plurabelle. Eu percorri (nem digo que li) as páginas de ´Finnegans Wake´, se for pensar na compreensão que tenho lendo Dostoiévski, não entendi nem 5%, mas se for pensar no prazer linguístico, foi bom demais.” Este “prazer linguístico”, referido por Carlos Augusto, remete-nos a Roland Barthes, sobre o prazer do texto; o leitor em sua plenitude criativa da fruição: “A escritura não é a comunicação de uma mensagem que partiria do autor e iria até o leitor; é especificamente a própria voz da leitura no texto, apenas o leitor fala.”

Em socorro dos desarmados, vêm Introdução, Nota Preliminar e, após cada capítulo nos cinco volumes de “Finnegans Wake”, as Notas de Leitura, de Donaldo Schüler, podendo-se lê-las de uma vez, sequencialmente, e até previamente, num apanhado de acessível enredo, digamos assim, e assim como quem recolhe as peças de um mosaico e, na falta de algumas, compõe um desenho fragmentário. A edição é bilíngue, podendo-se, a quem domine o inglês, cotejar o original com a transcriação do tradutor. Como explica o mestre João Alexandre Barbosa, no primeiro volume da série: “O estilhaços de sessenta e cinco línguas diferentes (segundo a tradição dos estudos joyceanos), se espalhando nos sombrios intervalos entre consciente e subconsciente, contam a história do mundo e da literatura, sempre a partir da sensação de exílio e de estranhamento que, para Joyce, era a Irlanda. Por isso, a sua mais adequada leitura, talvez, seja mesmo a fragmentária, como perceberam os seus primeiros e argutos tradutores brasileiros: uma leitura também ´in progress´ e que, assim, nunca termina. Ou como a que agora propõe, em capítulos, que também são parágrafos de partes amplas, a ousadia notável de Donaldo Schüler.” Mestre Barbosa não diz, mas certamente se refere, por “primeiros e argutos tradutores” de Joyce, aos irmãos Augusto e Haroldo de Campos.

E mais nos diz o mestre: “O leitor, que deve se preparar pacientemente para ser um releitor, indo e vindo entre o texto original e a sua tradução, descobrindo em cada página as contorções de língua e linguagem a que foi obrigado o tradutor, não está diante apenas de um texto traduzido mas de uma arqueologia poética em que as camadas de história e de significações traduzem palimpsestos que se desdizem pois, como já se observou, em ´FW´ as escrituras subjacentes continuam vivas na superfície.”

“Ser um releitor” não implica que quem não goste de ler autores como Joyce esteja obrigado a lê-lo. Se não gosta (permitam-me novamente brincar), sobra mais Joyce para quem goste, pois há sempre Joyce a mais (por experiência própria) numa releitura.

“Pelos labirintos de Joyce” já vinha pronto quando tive em mãos a edição de “O Popular”, do dia 14 de junho de 2010, com a crônica intitulada “Proust e outros chatos”, do escritor e mestre de filosofia Flávio Paranhos, que estimo e admiro. Ele brinca e provoca, arrolando-me entre os chatos, pelo fato de eu sempre repetir o que é vero: que já “li” os cinco volumes de “Finnegans Wake” e também, por quatro vezes, o “Ulisses” de Joyce, além de mapas e roteiros sobre os quais me debrucei para melhor acompanhar o périplo de Leopold Bloom pelas ruas de Dublin. E ainda há que seguir-se, em “Ulisses”, um paralelo com a “Odisseia” de Homero, e são outros quinhentos ao longo de oitocentas e tantas páginas. A fundo, nem me preocupei com essa parte. E mais, além de cada capítulo relacionado a um episódio da “Odisseia”, atente-se para a localidade de cada cena em Dublin, a hora local, um órgão do corpo humano, uma arte, uma cor, um símbolo e a técnica utilizada por Joyce. Haja atenção para tais e tantos detalhes!

Na crônica do mestre Paranhos, a referência a mim é engraçada: “Mentem também, e com gosto, os que, como o grande escritor Valdivino Braz, dizem que leram o ´Ulisses´ e o ´Finnegans Wake´de Joyce. Mentira. E o Braz ainda tem o desaforo de afirmar que leu mais de uma vez. O que ele faz? Dá-se 50 chicotadas todos os dias? Ajoelha no milho? As duas coisas ao mesmo tempo?”. 

Vai daí que, se eu aqui repetir que já li (na superfície, e com prazer), os cinco volumes de “Finnegans Wake”, e que pretendo relê-los (por prazer), ao longo do que me resta de vida, “temo” ser novamente conceituado como chato ou chatíssimo, senão que tachado de esnobe, ou masoquista, além de mentiroso. Estou beirando os 70 anos de idade, e já me foram não 50 chicotadas diárias, mas 50 anos de assídua leitura, de autores de tudo quanto é banda. E, veja, até hoje não concluí (mas pretendo) os sete volumes de Proust, que não considero chato, antes “finess”, envolvente e marco de um tempo (e assim, cada qual com o seu autor, ou seus autores prediletos).

Tenho três edições do “Ulisses”, duas delas, em brochura, bastante sublinhadas por mim (hábito meu, de leitura), e uma de capa dura (da Abril Cultural) que eu não quis sublinhar mas tem meus rastros de leitor, sendo a mesma tradução de Antônio Houaiss que, em 1982, em brochura, saiu pela Civilização Brasileira (com este fiz besteira, precisado de dinheiro, vendi-o ao sebo, juntamente com outros livros; recuperei-o com edição do ano seguinte, 1983, e é este que tenho de capa dura). Foram, mesmo, quatro leituras do “Ulisses”, acredite-se se quiser. Uma das edições que tenho (2005), em brochura, é a tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro. Também os cinco volumes do “Finnegans” estão marcados pelo muito que neles fui sublinhando. Não que eu queira “humilhar” a ninguém, como brinca, numa passagem de sua crônica, o mestre Paranhos, mas sim que sou realmente um leitor, ao meu modo e dentro dos meus limites.    

Uma semana antes da espirituosa crônica de Flávio Paranhos, ainda me encontrava “digerindo” uma viagem que acabara de fazer à Europa: Holanda (Amsterdã e outras localidades), depois Londres, Paris e Bruxelas/Bélgica, e não vi a referida edição de “O Popular”, e só recentemente eu soube da crônica. Não fosse isso, teria retrucado, de imediato, a gostosa “provocação”. Eu diria: “Mas olha só, quem está falando!”, pela “chatice” do mestre (com o meu respeito e reconhecimento ao seu talento), que tanto reprisa Woody Allen (vide revistabula.com), uma espécie de deus para ele, a mim me parece. Wood Allen, a meu ver (dá-me que eu também provoque), tem alguma coisa de chato, mas ainda estou tentando descobrir o que é.

E Joyce criou “Finnegans Wake”, não que ele seja Deus, mas foi ele que, à queda de Finnegans, traduziu o som, (“a voz”) do trovão de Deus  bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoordenenthurnuk!), com 100 letras. Simboliza a queda do homem (Finnegans/Adão e outros). Impossível memorizar, mas se alguém ler isso aí sem tropeçar, já estará de bom tamanho. Comece treinando com aquela do analgésico Cibalena, com apenas 34 letras: dimetilaminofenildimetilpirazolona. Que zona!  Entre a voz do povo e a voz de Deus (a voz do dono do trovão), foi bom ouvir a voz de Joyce, saber-lhe o timbre, num vídeo postado pela Bula. Viva! Joyce está vivo!

Particularmente, desenredado de enredo, busco a linguagem que se cria, e a sua forma, (ou técnica) de criação, imagética, poética, beleza, sabedoria, verdades de vida, ainda que em partículas, numas frases bem construídas, na beleza de palavras adequadamente conjugadas. Enredo por enredo, basta-me o que se enreda na linguagem então criada, ainda que eu também não a entenda além de 5% e tenha que recorrer às Notas de Leitura. Já me tenho um pouco enfarado com romances lineares, cronológicos, do tipo parágrafo, ponto, travessão, diálogo; prefiro as formas e falas e fatos ou coisas já tudo embutidas entre si. No sertão da minha infância, aprendi a abrir passagem desembaraçando cipós. Afeito a treliças imbricadas e embaraçosas, aprecio textos intricados, como certos trechos de Faulkner, e anárquicos como os de Joyce. Dá-me, antes, o estranhamento, depois o possível entendimento. E se não assim, não me apoquento, vale-me a leitura pelo que possa me dar, ou pelo mínimo que eu possa dela alcançar.

Algumas constelações menores não chegam ao “céu” de “Finnegans Wake”. Tentativas de imitação como o “Catatau” (1989), de Paulo Leminski, obra esta que também leio com prazer. O leitor-bicho-preguiça (não generalizo e não particularizo, antes pelo contrário, e ouço risos), que porventura se aventure ou se meta a ler “Finnegans”, talvez possa ou deva, por primeiro, exercitar-se por umas vias mais acessíveis, antes de defrontar-se com um colosso do porte e do naipe de um Joyce. Após ler o “Catatau”, deve buscar um segundo estágio com o livro “Paniedro”, de Herio Saboga (Massao Ohno, 1981), anterior ao de Leminski e mais complexo, de não se ter idéia do que seja, salvo que seja o que o próprio Saboga adianta: não há nenhuma narração, ou descrição, apenas diálogo, ou melhor, um constante triálogo, de três pessoas em torno de 75 anos, sendo um escritor, o seu editor e uma mulher, Desdêmona, que, junto a eles, vai tecendo comentários às suas respectivas vidas. Ao seu próprio editor, Saboga afirma que “o texto é realmente um absurdo completo”, sobre o qual ele próprio precisaria de horas a fio na tentativa de dar uma idéia do que é e do que poderá vir a ser.

Essa fala de Saboga leva-nos a Ezra Pound e “Os Cantos”, em comentário do crítico norte-americano Michael Dirda (“O prazer de ler os clássicos”): “´Os cantos´ sugou tudo como um vórtice. Os fãs consideraram o resultado uma obra-prima difícil e enlouquecedora que premia uma vida inteira de estudos, o equivalente poético a ´Finnegans Wake`, de Joyce. Outros acham que o livro é como um amontoado de espelhos quebrados — o próprio Pound dizia que sua obra-prima era uma bagunça.” Já consabido que mais ele disse:  “Em toda a minha obra, o que tentei fazer foi escrever a epopeia da América. Creio que não consegui. Quem conseguiu foi o poeta de ´O País dos Mourões`”. Referia-se ao brasileiro Gerardo Mello Mourão e citava o segundo volume de uma trilogia épica, iniciada com “Os Peãs” e finalizada com “Rastro de Apolo”. Quem leu “Os Cantos”, que é de 1934, logo percebe a sombra influente de Pound em “Os Peãs”, de 1963. E se ninguém comenta, é porque desconhece, não leu sequer a boa obra de Gerardo Mello Mourão.

Na velhice, Pound dizia ter “estragado” a sua obra: “Minhas intenções eram boas, mas enganei-me na maneira de alcançá-las. Fui um estúpido. O conhecimento me chegou tarde demais. Muito tarde me chegou a certeza de nada saber.” Autocrítico e modesto Sr. Pound. E movido por “boas intenções”, do que se diz que o mundo está cheio. “Gênio e louco” (dizem dele), que saiu da prisão (por atitudes fascistas) e foi internado no hospício. Nem por isso deixar de ler “Os Cantos”, são apenas oitocentas e trinta e poucas páginas. E não se esquecer do que mais ele disse: “O mau crítico se identifica facilmente, quando começa a discutir o poeta e não o poema.” — O mesmo que discutir o autor e não a obra.

Particularmente, já apreciando Kafka, gosto de texto absurdo, e do absurdo, tanto quanto aprecio Samuel Beckett (foi secretário de Joyce, sofreu-lhe a influência, depois tomou seu próprio rumo). Ainda na infância e adolescência, em meio a fortes ventanias, fui apanhado por redemoinhos, e bem pode que daí advenha-me um certo gosto por textos caóticos e labirínticos, fragmentários e desconexos, feito vitral estilhaçado, mosaico, quebra-cabeça (“puzzle”) e “patchwork” (colcha de retalhos). Técnica, estrutura, texto, textura e tessitura (musicalidade), linguagem, imagética, densidade e atmosfera são elementos que me prendem, fácil, fácil, ao mais difícil, a desafiar-me a parca inteligência.

Transcrevo alguns fragmentos do “Paniedro” de Herio Saboga. Saca só: “alfacheire-as, assim as conhecemos, interegnamo-nos, sobre coisidades deletéreas, riscos altos de cair em sensaborréias, esqueci-o onde?, ah, estaquí-lo, caluda, não olhar-me com essa expressão abacatéia, sempre que vens da feira irmã Paula o que és, simulca, grases subindo, onde encontraste mesmo o caminhão de peixe?, encaras-me badejamente e nada refalasvelas?, nada, não gostarido, olhares mortalhais, odônticas ironias, já a avisei, lá vem ele hoje, ele mesmo, segurígidas isso aqui para mim, minuto, um prato cheio, acrostumo-me, são puras conclusões escadeosas, um mar vê-lo chegaricar pertotes, misgos, no bolsaco aí tens frutárias corracidas, um martiralívio, cerimonioso?, desde há tempo quanto? mingnoro, vosmitará aqui provavelmente seus pensadrapos idealicados, como sempre, conhece-te-lo, em feirados fingura sempre autocontroles calmirados, oh, ph, sim, crê-se pensábil, provalmente (sic) trará seu textículo, curvadocendo-se, um omelete, quando velho-lo satispara-me gloticamente gosto acramargoce, melaçucrado na boca, sim, compaixena à vista do antropáceo, cricriagens não tolero e bem sabertos, não o profanuncies de novo, favor, além mais olha-nos a casa como luxobre, sei lá, luxosa a dele, traz-nos sempre vinhos vacabundas, parcivareza halorando”

Além desses, ainda há umas coisas algo similares, como “Os morcegos estão comendo os mamãos maduros” (1973), de Gramiro de Matos, tipo assim: “travessaram rua principal, um rapaz de lonvos cabelos e gonios olh´os azuis olhama mar mutante num antisignificante kom as cores do arco-íris carregado dimym ando planeta, conversava no caminho outra pedra y cara comendo pão”. E assim (“A Laranja Mecânica”, de  Anthony Burgess): “Mas tinha as golósses dos milicentes dizendo a eles pra calar a boca e esluchava-se até o esvuque de alguém sendo toltchocado realmente horrorshow e fazendo óóóóóóóó e era assim a golósse de uma ptisa estarre bêbada e não de homem.” A sombra de Joyce perpassa também o romance “Enderby Por Dentro”, do mesmo Anthony Burgess.

As ideias estão no ar, e uma coisa curiosa (ou deveria dizer mediúnica?, ouço risos) me aconteceu. Acredite se puder. Ainda um pouco antes da década de 80, já eu havia lido alguma coisa de teatro, e nada sabia de James Joyce. E comecei a conceber e escrever (olha só) o que seria uma peça em três atos, intitulada “A festa do morto” e algo parecida com a história de Finnegans, conforme constatei mais tarde. Um sujeito (não me lembro do nome que lhe dei) comemora seu aniversário, com a família e os amigos, bebe e extravasa toda a sua euforia, até sofrer o que se supõe que seja repentino e fatal infarto. A festa então se transforma no alvoroço da morte, e vem o velório; as pessoas ali perplexas, entristecidas, lamentosas. Repentino como fora o ato de sua morte, eis que o morto ressuscita, saindo, na verdade, do que não passou de um estado mórbido, cataléptico (enrijecimento dos membros, insensibilidade, respiração e pulso lentos, palidez cutânea), em que a pessoa parece morta. Ato contínuo, volta a euforia, e agora (brincam os amigos) a festa do morto. Mas eis que, daí a mais um pouco, o “ressuscitado” sofre outro ataque e morre, agora definitivamente.

Já eu me adiantava nos três tempos da peça (a festa; a morte; ressurreição e morte), quando descobri Joyce: “Dublinenses”, “Retrato do artista quando jovem” e, antes de chegar a “Ulisses” (de uma história banal, a obra colossal), o “Panorama do Finnegans Wake”, dos irmãos Campos. Depois a peça “Exilados”, também de Joyce, e seus poemas, e ainda “Giacomo Joyce”. Pelos Campos me dei conta da festa, da morte, do velório, do sonho de Finnegans. Então, com algum pesar, rasguei os esboços do que seria a minha pobre peça de teatro. Podendo que eu venha a sintetizá-la numa certa paródia linguística que premedito à sombra de “Finnegans Wake”, como parte de uma propalada e sempre protelada obra “in progress” há quatro décadas e meia (não de modo contínuo, mas a espaços esporádicos), a qual pretendo priorizar e concluir no decorrer do presente ano.


*Caricatura em acrílico, selecionada no 15º Salão Carioca de Humor em 2005 e que está no Catálogo do salão.  Este desenho foi gentilmente cedido pelo autor
Web: site:www.studioricardosoares.com.br
Blog: studioricardosoares.blogspot.com
*

Francisco Perna Filho - Poema



Foto by Sinésio Dioliveira


Manhã de Pássaro


O trinar do pássaro,
ao adejar as asas,
ignora o céu
para contemplar o chão
e fruir da flor
o abissal perfume que o paralisa.

A flor ardente,
que brota da terra,
acostumada a pássaros
abre-se em oferendas,
para também como pássaro
desfrutar o céu.

O que une o pássaro à flor
e a flor ao pássaro
é o desejo de ser pássaro e flor,
de ser flor e pássaro,
de fruir do voo o perfume
e do perfume o voo
que os eterniza.

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