Pelos labirintos de Joyce
Fruir o lúdico joyceano. É o
mínimo que “Finnegans Wake” espera de nossa parca inteligência. Fruir (vide
Aurélio) é “estar na posse de”. Se você não toma posse do texto, nada possui ou
extrai dele; deixa, então, que o texto lhe possua. Esteja possuído, e já se dê
por satisfeito. “Tirar de uma coisa todo o proveito, todas as vantagens
possíveis, e, sobretudo, perceber os frutos e rendimentos dela”, prossegue
mestre Aurélio, arrematando que fruir é desfrutar. Desfrute, ó falso leitor —
“hypocrite lecteur”, diria Baudelaire.
Ousaria eu até dizer que, “a
priori”, não se trata tanto de entender o quebra-cabeça, mas de fruir e
deixar-se fluir com o “riocorrente” de Joyce. Girar com esta obra circular e
infinita, feito o fluxo de um oito; vertiginosa e contorcida tal uma
montanha-russa num parque de diversões. Trata-se, entre outras e tantas
peripécias, de uma liberta e libertina linguagem, libertinagem linguística. É
mesmo um labiríntico desafio, quebrando tabus, tradicionais convenções de
narrativa. O peralta irlandês nos armou uma direitinho. Até, desafiando a
sapiência crítica, deu prazo de trezentos anos para que “Finnegans Wake” seja
entendido. Se bem que, vamos e venhamos, a coisa não seja bem assim.
Talvez Joyce não seja para
qualquer um. Não se encrespem, estou brincando, dentro do espírito de que
“Finnegans Wake” é, por acréscimo, uma folia, um brinquedo linguístico
(literatura é, também, um brinquedo). Livro lúdico, lírico, telúrico, mítico,
ôntico, poliédrico, polissêmico, polifônico, é um florilégio literário, e um
sortilégio, no sentido de sedução e fascínio por artifícios do intelecto, no
reino febril da criação com idéias e palavras. Um jorro de figurações e
fulgurações, cristais e vidrilhos, fantasias, filigranas, epifanias,
mitologias, história, lendas, ficções e realidades múltiplas. Um artefato
mental de Joyce, estilhaçando o trivial da literatura. Tamanha riqueza para
tanta pobreza de leitura, ou de não-leitura, senão que de leitura nenhuma. Às
vezes penso que Joyce chega a ser um desperdício, seja pelas limitações do
nosso alcance, seja pelo excesso de inteligência, com uma linguagem possuída de
si mesma. Seja até pela nossa falta de paciência. E o que, para alguns, pode
parecer um desperdício de tempo (ler “Finnegans Wake”, por exemplo), para
outros é um outro tempo o que se retira do desperdício, e deste, uma outra
leitura.
Esses humanos é que são
fraquinhos demais, diria o poeta Delermando Vieira (Goiânia-GO), no cimo de
seus 14 livros premiados. E concordo com o mestre Carlos Augusto Silva
(Goiânia), quando diz: “Sim, pode-se ler ´Finnegans Wake´, divertir-se com seus
jogos de linguagem, suas onomatopeias, o lírico e belo início do capitulo
célebre Anna Livia Plurabelle. Eu percorri (nem digo que li) as páginas de ´Finnegans
Wake´, se for pensar na compreensão que tenho lendo Dostoiévski, não entendi
nem 5%, mas se for pensar no prazer linguístico, foi bom demais.” Este “prazer
linguístico”, referido por Carlos Augusto, remete-nos a Roland Barthes, sobre o
prazer do texto; o leitor em sua plenitude criativa
da fruição: “A escritura não é a comunicação de uma mensagem que
partiria do autor e iria até o leitor; é especificamente a própria voz da
leitura no texto, apenas o leitor fala.”
Em socorro dos desarmados, vêm
Introdução, Nota Preliminar e, após cada capítulo nos cinco volumes de
“Finnegans Wake”, as Notas de Leitura, de Donaldo Schüler, podendo-se lê-las de
uma vez, sequencialmente, e até previamente, num apanhado de acessível enredo,
digamos assim, e assim como quem recolhe as peças de um mosaico e, na falta de
algumas, compõe um desenho fragmentário. A edição é bilíngue, podendo-se, a
quem domine o inglês, cotejar o original com a transcriação do tradutor. Como
explica o mestre João Alexandre Barbosa, no primeiro volume da série: “O
estilhaços de sessenta e cinco línguas diferentes (segundo a tradição dos
estudos joyceanos), se espalhando nos sombrios intervalos entre consciente e
subconsciente, contam a história do mundo e da literatura, sempre a partir da
sensação de exílio e de estranhamento que, para Joyce, era a Irlanda. Por isso,
a sua mais adequada leitura, talvez, seja mesmo a fragmentária, como perceberam
os seus primeiros e argutos tradutores brasileiros: uma leitura também ´in
progress´ e que, assim, nunca termina. Ou como a que agora propõe, em
capítulos, que também são parágrafos de partes amplas, a ousadia notável de
Donaldo Schüler.” Mestre Barbosa não diz, mas
certamente se refere, por “primeiros e argutos tradutores” de Joyce, aos irmãos
Augusto e Haroldo de Campos.
E mais nos diz o mestre: “O
leitor, que deve se preparar pacientemente para ser um releitor, indo e vindo
entre o texto original e a sua tradução, descobrindo em cada página as
contorções de língua e linguagem a que foi obrigado o tradutor, não está diante
apenas de um texto traduzido mas de uma arqueologia poética em que as camadas
de história e de significações traduzem palimpsestos que se desdizem pois, como
já se observou, em ´FW´ as escrituras subjacentes continuam vivas na
superfície.”
“Ser um releitor” não implica que
quem não goste de ler autores como Joyce esteja obrigado a lê-lo. Se não gosta
(permitam-me novamente brincar), sobra mais Joyce para quem goste, pois há
sempre Joyce a mais (por experiência própria) numa releitura.
“Pelos labirintos de Joyce” já
vinha pronto quando tive em mãos a edição de “O Popular”, do dia 14 de junho de
2010, com a crônica intitulada “Proust e outros chatos”, do escritor e mestre
de filosofia Flávio Paranhos, que estimo e admiro. Ele brinca e provoca,
arrolando-me entre os chatos, pelo fato de eu sempre repetir o que é vero: que
já “li” os cinco volumes de “Finnegans Wake” e também, por quatro vezes, o
“Ulisses” de Joyce, além de mapas e roteiros sobre os quais me debrucei para
melhor acompanhar o périplo de Leopold Bloom pelas ruas de Dublin. E ainda há
que seguir-se, em “Ulisses”, um paralelo com a “Odisseia” de Homero, e são
outros quinhentos ao longo de oitocentas e tantas páginas. A fundo, nem me
preocupei com essa parte. E mais, além de cada capítulo relacionado a um
episódio da “Odisseia”, atente-se para a localidade de cada cena em Dublin, a
hora local, um órgão do corpo humano, uma arte, uma cor, um símbolo e a técnica
utilizada por Joyce. Haja atenção para tais e tantos detalhes!
Na crônica do mestre Paranhos, a
referência a mim é engraçada: “Mentem também, e com gosto, os que, como o
grande escritor Valdivino Braz, dizem que leram o ´Ulisses´ e o ´Finnegans
Wake´de Joyce. Mentira. E o Braz ainda tem o desaforo de afirmar que leu mais
de uma vez. O que ele faz? Dá-se 50 chicotadas todos os dias? Ajoelha no milho?
As duas coisas ao mesmo tempo?”.
Vai daí que, se eu aqui repetir
que já li (na superfície, e com prazer), os cinco volumes de “Finnegans Wake”,
e que pretendo relê-los (por prazer), ao longo do que me resta de vida, “temo”
ser novamente conceituado como chato ou chatíssimo, senão que tachado de
esnobe, ou masoquista, além de mentiroso. Estou beirando os 70 anos de idade, e
já me foram não 50 chicotadas diárias, mas 50 anos de assídua leitura, de
autores de tudo quanto é banda. E, veja, até hoje não concluí (mas pretendo) os
sete volumes de Proust, que não considero chato, antes “finess”, envolvente e
marco de um tempo (e assim, cada qual com o seu autor, ou seus autores
prediletos).
Tenho três edições do “Ulisses”,
duas delas, em brochura, bastante sublinhadas por mim (hábito meu, de leitura),
e uma de capa dura (da Abril Cultural) que eu não quis sublinhar mas tem meus
rastros de leitor, sendo a mesma tradução de Antônio Houaiss que, em 1982, em
brochura, saiu pela Civilização Brasileira (com este fiz besteira, precisado de
dinheiro, vendi-o ao sebo, juntamente com outros livros; recuperei-o com edição
do ano seguinte, 1983, e é este que tenho de capa dura). Foram, mesmo, quatro
leituras do “Ulisses”, acredite-se se quiser. Uma das edições que tenho (2005),
em brochura, é a tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro. Também os cinco
volumes do “Finnegans” estão marcados pelo muito que neles fui sublinhando. Não
que eu queira “humilhar” a ninguém, como brinca, numa passagem de sua crônica,
o mestre Paranhos, mas sim que sou realmente um leitor, ao meu modo e dentro
dos meus limites.
Uma semana antes da espirituosa
crônica de Flávio Paranhos, ainda me encontrava “digerindo” uma viagem que
acabara de fazer à Europa: Holanda (Amsterdã e outras localidades), depois
Londres, Paris e Bruxelas/Bélgica, e não vi a referida edição de “O Popular”, e
só recentemente eu soube da crônica. Não fosse isso, teria retrucado, de
imediato, a gostosa “provocação”. Eu diria: “Mas olha só, quem está falando!”,
pela “chatice” do mestre (com o meu respeito e reconhecimento ao seu talento),
que tanto reprisa Woody Allen (vide revistabula.com), uma espécie de deus para
ele, a mim me parece. Wood Allen, a meu ver (dá-me que eu também provoque), tem
alguma coisa de chato, mas ainda estou tentando descobrir o que é.
E Joyce criou “Finnegans Wake”,
não que ele seja Deus, mas foi ele que, à queda de Finnegans, traduziu o som,
(“a voz”) do trovão de Deus bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoordenenthurnuk!),
com 100 letras. Simboliza a queda do homem (Finnegans/Adão e outros).
Impossível memorizar, mas se alguém ler isso aí sem tropeçar, já estará de bom
tamanho. Comece treinando com aquela do analgésico Cibalena, com apenas 34
letras: dimetilaminofenildimetilpirazolona. Que zona! Entre a voz do povo e a voz de Deus (a voz do
dono do trovão), foi bom ouvir a voz de Joyce, saber-lhe o timbre, num vídeo
postado pela Bula. Viva! Joyce está vivo!
Particularmente, desenredado de
enredo, busco a linguagem que se cria, e a sua forma, (ou técnica) de criação,
imagética, poética, beleza, sabedoria, verdades de vida, ainda que em
partículas, numas frases bem construídas, na beleza de palavras adequadamente
conjugadas. Enredo por enredo, basta-me o que se enreda na linguagem então
criada, ainda que eu também não a entenda além de 5% e tenha que recorrer às
Notas de Leitura. Já me tenho um pouco enfarado com romances lineares,
cronológicos, do tipo parágrafo, ponto, travessão, diálogo; prefiro as formas e
falas e fatos ou coisas já tudo embutidas entre si. No sertão da minha
infância, aprendi a abrir passagem desembaraçando cipós. Afeito a treliças imbricadas
e embaraçosas, aprecio textos intricados, como certos trechos de Faulkner, e
anárquicos como os de Joyce. Dá-me, antes, o estranhamento, depois o possível
entendimento. E se não assim, não me apoquento, vale-me a leitura pelo que
possa me dar, ou pelo mínimo que eu possa dela alcançar.
Algumas constelações menores não
chegam ao “céu” de “Finnegans Wake”. Tentativas de imitação como o “Catatau”
(1989), de Paulo Leminski, obra esta que também leio com prazer. O
leitor-bicho-preguiça (não generalizo e não particularizo, antes pelo
contrário, e ouço risos), que porventura se aventure ou se meta a ler
“Finnegans”, talvez possa ou deva, por primeiro, exercitar-se por umas vias
mais acessíveis, antes de defrontar-se com um colosso do porte e do naipe de um
Joyce. Após ler o “Catatau”, deve buscar um segundo estágio com o livro
“Paniedro”, de Herio Saboga (Massao Ohno, 1981), anterior ao de Leminski e mais
complexo, de não se ter idéia do que seja, salvo que seja o que o próprio
Saboga adianta: não há nenhuma narração, ou descrição, apenas diálogo, ou
melhor, um constante triálogo, de três pessoas em torno de 75 anos, sendo um
escritor, o seu editor e uma mulher, Desdêmona, que, junto a eles, vai tecendo
comentários às suas respectivas vidas. Ao seu próprio editor, Saboga afirma que
“o texto é realmente um absurdo completo”, sobre o qual ele próprio precisaria
de horas a fio na tentativa de dar uma idéia do que é e do que poderá vir a
ser.
Essa fala de Saboga leva-nos a
Ezra Pound e “Os Cantos”, em comentário do crítico norte-americano Michael
Dirda (“O prazer de ler os clássicos”): “´Os cantos´ sugou tudo como um
vórtice. Os fãs consideraram o resultado uma obra-prima difícil e
enlouquecedora que premia uma vida inteira de estudos, o equivalente poético a ´Finnegans
Wake`, de Joyce. Outros acham que o livro é como um amontoado de espelhos
quebrados — o próprio Pound dizia que sua obra-prima era uma bagunça.” Já
consabido que mais ele disse: “Em toda a
minha obra, o que tentei fazer foi escrever a epopeia da América. Creio que não
consegui. Quem conseguiu foi o poeta de ´O País dos Mourões`”. Referia-se ao
brasileiro Gerardo Mello Mourão e citava o segundo volume de uma trilogia
épica, iniciada com “Os Peãs” e finalizada com “Rastro de Apolo”. Quem leu “Os
Cantos”, que é de 1934, logo percebe a sombra influente de Pound em “Os Peãs”,
de 1963. E se ninguém comenta, é porque desconhece, não leu sequer a boa obra
de Gerardo Mello Mourão.
Na velhice, Pound dizia ter
“estragado” a sua obra: “Minhas intenções eram boas, mas enganei-me na maneira
de alcançá-las. Fui um estúpido. O conhecimento me chegou tarde demais. Muito
tarde me chegou a certeza de nada saber.” Autocrítico e modesto Sr. Pound. E
movido por “boas intenções”, do que se diz que o mundo está cheio. “Gênio e
louco” (dizem dele), que saiu da prisão (por atitudes fascistas) e foi
internado no hospício. Nem por isso deixar de ler “Os Cantos”, são apenas
oitocentas e trinta e poucas páginas. E não se esquecer do que mais ele disse:
“O mau crítico se identifica facilmente, quando começa a discutir o poeta e não
o poema.” — O mesmo que discutir o autor e não a obra.
Particularmente, já apreciando
Kafka, gosto de texto absurdo, e do absurdo, tanto quanto aprecio Samuel
Beckett (foi secretário de Joyce, sofreu-lhe a influência, depois tomou seu
próprio rumo). Ainda na infância e adolescência, em meio a fortes ventanias, fui
apanhado por redemoinhos, e bem pode que daí advenha-me um certo gosto por
textos caóticos e labirínticos, fragmentários e desconexos, feito vitral
estilhaçado, mosaico, quebra-cabeça (“puzzle”) e “patchwork” (colcha de
retalhos). Técnica, estrutura, texto, textura e tessitura (musicalidade),
linguagem, imagética, densidade e atmosfera são elementos que me prendem,
fácil, fácil, ao mais difícil, a desafiar-me a parca inteligência.
Transcrevo alguns fragmentos do
“Paniedro” de Herio Saboga. Saca só: “alfacheire-as, assim as conhecemos,
interegnamo-nos, sobre coisidades deletéreas, riscos altos de cair em
sensaborréias, esqueci-o onde?, ah, estaquí-lo, caluda, não olhar-me com essa
expressão abacatéia, sempre que vens da feira irmã Paula o que és, simulca,
grases subindo, onde encontraste mesmo o caminhão de peixe?, encaras-me
badejamente e nada refalasvelas?, nada, não gostarido, olhares mortalhais,
odônticas ironias, já a avisei, lá vem ele hoje, ele mesmo, segurígidas isso
aqui para mim, minuto, um prato cheio, acrostumo-me, são puras conclusões
escadeosas, um mar vê-lo chegaricar pertotes, misgos, no bolsaco aí tens
frutárias corracidas, um martiralívio, cerimonioso?, desde há tempo quanto? mingnoro,
vosmitará aqui provavelmente seus pensadrapos idealicados, como sempre,
conhece-te-lo, em feirados fingura sempre autocontroles calmirados, oh, ph,
sim, crê-se pensábil, provalmente (sic) trará
seu textículo, curvadocendo-se, um omelete, quando velho-lo satispara-me
gloticamente gosto acramargoce, melaçucrado na boca, sim, compaixena à vista do
antropáceo, cricriagens não tolero e bem sabertos, não o profanuncies de novo,
favor, além mais olha-nos a casa como luxobre, sei lá, luxosa a dele, traz-nos
sempre vinhos vacabundas, parcivareza halorando”
Além desses, ainda há umas coisas
algo similares, como “Os morcegos estão comendo os mamãos maduros” (1973), de
Gramiro de Matos, tipo assim: “travessaram rua principal, um rapaz de lonvos
cabelos e gonios olh´os azuis olhama mar mutante num antisignificante kom as
cores do arco-íris carregado dimym ando planeta, conversava no caminho outra
pedra y cara comendo pão”. E assim (“A Laranja Mecânica”, de Anthony Burgess): “Mas tinha as golósses dos
milicentes dizendo a eles pra calar a boca e esluchava-se até o esvuque de
alguém sendo toltchocado realmente horrorshow e fazendo óóóóóóóó e era assim a
golósse de uma ptisa estarre bêbada e não de homem.” A sombra de Joyce perpassa
também o romance “Enderby Por Dentro”, do mesmo Anthony Burgess.
As ideias estão no ar, e uma
coisa curiosa (ou deveria dizer mediúnica?, ouço risos) me aconteceu. Acredite
se puder. Ainda um pouco antes da década de 80, já eu havia lido alguma coisa
de teatro, e nada sabia de James Joyce. E comecei a conceber e escrever (olha
só) o que seria uma peça em três atos, intitulada “A festa do morto” e algo
parecida com a história de Finnegans, conforme constatei mais tarde. Um sujeito
(não me lembro do nome que lhe dei) comemora seu aniversário, com a família e
os amigos, bebe e extravasa toda a sua euforia, até sofrer o que se supõe que
seja repentino e fatal infarto. A festa então se transforma no alvoroço da
morte, e vem o velório; as pessoas ali perplexas, entristecidas, lamentosas.
Repentino como fora o ato de sua morte, eis que o morto ressuscita, saindo, na
verdade, do que não passou de um estado mórbido, cataléptico (enrijecimento dos
membros, insensibilidade, respiração e pulso lentos, palidez cutânea), em que a
pessoa parece morta. Ato contínuo, volta a euforia, e agora (brincam os amigos)
a festa do morto. Mas eis que, daí a mais um pouco, o “ressuscitado” sofre
outro ataque e morre, agora definitivamente.
Já eu me adiantava nos três
tempos da peça (a festa; a morte; ressurreição e morte), quando descobri Joyce:
“Dublinenses”, “Retrato do artista quando jovem” e, antes de chegar a “Ulisses”
(de uma história banal, a obra colossal), o “Panorama do Finnegans Wake”, dos
irmãos Campos. Depois a peça “Exilados”, também de Joyce, e seus poemas, e
ainda “Giacomo Joyce”. Pelos Campos me dei conta da festa, da morte, do
velório, do sonho de Finnegans. Então, com algum pesar, rasguei os esboços do
que seria a minha pobre peça de teatro. Podendo que eu venha a sintetizá-la
numa certa paródia linguística que premedito à sombra de “Finnegans Wake”, como
parte de uma propalada e sempre protelada obra “in progress” há quatro décadas
e meia (não de modo contínuo, mas a espaços esporádicos), a qual pretendo
priorizar e concluir no decorrer do presente ano.
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