Hélio Pólvora - Conto



MISS BABY

As mulheres começaram a entrar na vida de Galileu numa tarde de domingo, no jardim público. Quem tinha dinheiro pegava o bonde à porta do internato e ia ao cinema; quem não tinha, caminhava até o parque, olhava os lagos, ouvia o sussurrar das árvores, contava os dias que faltavam para as férias e a volta a casa no interior, sobretudo olhava as meninas; outros, cujos nomes apareciam na lista negra de Mr. Keith, denunciados pelos bedéis, nem mudavam de roupa: metidos na farda, tomavam café, ouviam o serviço religioso, almoçavam e erravam a tarde inteira entre os muros do velho casarão. Não era preciso ler a lista para saber o nome dos condenados; bastava ver se estavam de farda ou se vestiam o terno domingueiro. 

Galileu era de Pilão Arcado; o pai o despachara no trem, com mala e tudo, e passara um telegrama a Mr. Keith, o diretor, pedindo a fineza de recolhê-lo. Quando o trem parou na estação da Calçada, em Salvador, Galileu viu e ouviu um gringo de cara vermelha e cabelos louros entoar em voz reboante de Paul Robeson: 

— Oh! Oh! Quem é aí o menino Galilu? 

Galileu ergueu o dedo, como o pai lhe mandara fazer, e se identificou: 

— Eu, Mr. Keith. 

Os primeiros dias foram difíceis. Puseram Galileu no dormitório dos médios, porque ele, apesar dos treze anos, era desenvolvido. Na rouparia, o bedel, que tinha atrás da orelha um caroço de carne e era chamado às escondidas de Catapulta (nome que alguns veteranos afoitos abreviavam, com o sacrifício de uma consoante), mandou-o escolher um escaninho e deu-lhe um cadeado. Galileu esvaziou a mala e procurava um lugar seguro para o vidro de perfume que a mãe lhe dera quando o vidro despencou e se fez em pedaços. Aí ele se lembrou da mãe, se lembrou de Pilão Arcado, das vadiagens gostosas, pensou nos dias incertos que o aguardavam e chorou com abandono e desconsolo, o corpo sacudido pelos soluços. Os médios que estavam no dormitório foram dar-lhe tapinhas nos ombros. Às seis horas o sino tocou e o bedel tangeu todo mundo para o banheiro, onde os corpos nus se organizaram em fila, porque havia apenas dois chuveiros. Entre dois veteranos inteiramente à vontade, e que penduravam a toalha mos membros intumescidos, Galileu se encolhia, se esticava na ponta dos pés, tentava evitar contatos abdominais, fricção de protuberâncias. Dormiu mal —as camas eram separadas por um pequeno espaço — e despertou no dia seguinte com a descrição que um vizinho de voz melíflua fazia da arte de beijar, aprendida, sem dúvida, na última sessão do Jandaia, em filme de Clark Gable. 

— A gente abarca a cintura da moça com o braço esquerdo — disse o tal, agarrando Galileu estremunhado, e semicerrando os olhos. — Alisa-se com esta outra mão o seu cabelo cheiroso — e alisou o cabelo revolto de Galileu. — Depois, une-se o corpo dela ao nosso...

A essa altura, Galileu deu-lhe um pontapé. O outro era mais forte e apertou-o. Galileu tentou soltar-se à custa de cotoveladas, movimentos de ombros, cabeçadas, novos pontapés. Rolaram no chão. O outro tentava pôr-se por cima de Galileu, que ia perdendo as forças e começava a chorar de raiva ao ver os pés dos médios que os cercavam e açulavam o veterano de voz melíflua. 

— Largue o calouro! 

Era a voz autoritária de Catapulta. O círculo rompeu-se, o aperto diminuiu e cessou, Galileu se levantou e quis brigar. O bedel ameaçou pôr os dois na lista negra — e como Galileu não soubesse ainda o que ela significava, imaginou um castigo duro, talvez uma expulsão, se encolheu e enxugou as lágrimas..Desde então passou a ser respeitado. E dentro de quinze dias já se sentia.ambientado, embora sem imitar aquele modo acintoso de carregar toalhas para o banheiro. No futebol ganhou o apelido de Cueca, porque vestia o calção sobre a cueca de algodãozinho. Já não voltava ao internato, nas tardes de domingo, gabando-se de só haver pago o bonde três vezes. Ao contrário, fingia-se alheio ou sustentava o olhar desconfiado do cobrador que sacudia diante dele a mão cheia de moedas: "Faz favor! " 
Numa tarde de domingo em que perambulava com outros pelo Campo Grande, Galileu arriscou o primeiro galanteio de sua vida. Sentado num banco de madeira, à sombra de uma amendoeira de folhas enferrujadas, viu passar uma menina que lambia um sorvete com a língua cor-de-rosa, chamou-a: 

— Princesinha! 

— Merda! 

Era a palavra mais doce que já ouvira de uma mulher, fora do círculo familiar de Pilão Arcado. A princípio, escandalizou-se: as meninas bem educadas não diziam palavras feias. Depois, riu-se da resposta em cima da bucha, da coragem da resposta e do modo tranqüilo com que ela fora dita, assim como quem repete um cumprimento habitual, como quem dá boa-tarde. Seguiu a menina a distância conveniente e viu que morava na casa ajardinada da esquina. Menina estabanada, ainda inconsciente dos encantos do corpo, afastava pretendentes com uma palavra que em outra boca soaria áspera, mas na sua se revestia-se de insuspeitada doçura. 

Já Eugênia agia como mulher. Na sala de aula, sentada ao lado da irmã, gorducha, Galileu admirava-lhe a curva macia da saia azul-marinho no baixo-ventre. Estudiosas e aplicadas, traziam a lição decorada, erguiam-se e declamavam, de faces rosadas, definições difíceis, mas se uma pergunta quebrava o ritmo da exposição trazida na ponta da língua, elas se atrapalhavam, gaguejavam, emudeciam. As blusas eram brancas, com ligeiros debruns de azul na gola e nas mangas curtas, e os botões, também azuis, escalavam a saliência do busto. O internato feminino ficava um quarteirão adiante, e era possível ver-lhe o jardim, do muro do internato dos homens. Trepado no muro, Galileu acenou uma tarde para Eugênia — e a.mão gorducha, que costumava segurar a caneta bem rente à pena e sujar-se de tinta, respondeu ao aceno. Na segunda-feira, no intervalo entre a aula de inglês e a de geografia, introduziu um bilhete no caderno dela, perguntando-lhe se queria namorar com ele. Eugênia folheou o caderno à procura das últimas anotações, deu com o bilhete, espantou-se, desdobrou-o e tingiu-se de encarnado. A irmã quis tomar-lhe o papel, mas ela, num movimento rápido, enfiou-o na blusa. Afogueada, esqueceu a lição decorada com perseverança, trocou o nome de rios, misturou os períodos arqueológicos, pôs um vulcão ativo da Polinésia em plena América Central, e começou a enviesar-se na carteira. Queria olhar Galileu, sentado meio de banda, dar a esse reconhecimento um ar de casualidade, de fortuito encontro de olhos: inclinava-se para a direita, ganhava alguns centímetros no assento estreito, torcia o pescoço, que parecia duro; afinal a perna bateu no suporte da cadeira, imobilizou-se; desesperada, Eugênia acabou de girar o pescoço, encontrou Galileu, um sorriso confuso banhou-lhe o rosto cheio, os lábios tremeram. Iniciara-se entre eles um romance sem palavras, alimentado por bilhetinhos, sonetos, acenos de muro a muro, olhares esquivos na sala de aula, no culto de domingo à noite, que terminava sonolento com um apelo do Dr. Godinho: "Façamos a oração". Romance que se esbraseava nas tardes de quarta-feira, quando os internos eram obrigados pelos bedéis a evacuar o pátio onde as internas, vestindo calções de boca de elástico que lhes desnudavam as coxas, na ginástica, curvavam-se segurando arcos, mexiam os quadris, sacudiam os seios. Galileu saltava pela janela da sala de aula do quarto ano ginasial, colava os olhos a um orifício, distinguia pedaços do pátio. As coxas de Eugênia"eram grossas e brancas como roscas, quando ela corria as seios tremiam e os lábios se abriam em rachaduras de romã sobre dentes pequenos e alvos. Nos intervalos das aulas, pela manhã, a aproximação que parecia fácil e natural esbarrava na vermelhidão de Eugênia, na zombaria dos colegas. O namoro mudo espalhara-se, chegara ao conhecimento dos professores. Despeitado, Galileu entrou a imitar-lhe a voz gaguejante nas lições, o corpo pesado, o rosto manso que só se encrespava na hora da argüição. Pensava já em mancar bilhete idêntico a outra moça quando caiu doente, atravessou febril uma manhã solitária no dormitório, até que o Dr. Godinho, alto, sério e pálido, superintendente da Escola Dominical, examinou-o e diagnosticou : 

— Papeira.

Uma bola inchava na garganta, em forma de papo. Alguns pândegos imitavam o taco de bilhar, cutucavam a excrescência: 

— Bola sete na caçapa. 

Outros davam-lhe conselhos: tivesse cuidado para que a inchação não descesse a partes mais delicadas do corpo e o impedisse de andar. Galileu foi removido para o sótão. Emiliano, o servente, conduziu-o por uma escada em caracol, de onde ele avistou por uma porta aberta, ao subir os primeiros degraus, um velho esqueleto quase desconjuntado, boiões e frascos em prateleiras, e identificou um odor penetrante de éter. A escada findava num cômodo baixo e amplo, com três camas, telhado poeirento e uma janela. Era noite, a luz acesa penetrava-lhe nos olhos. As outras camas estavam ocupadas: a papeira já fizera antes dele duas vítimas. 

Despertou de manhã com o toque do sino e julgou-se no dormitório, onde se acordava com um jeito mole no corpo; acordava-se só nos olhos abertos, não se avançava logo a mão na coberta para desvendar o corpo quente. Ficava-se estirado, de olhos fixos nas traves do teto, sem pensamentos, restos de sono grudados nos membros que renasciam. Era preciso que Catapulta avançasse até o meio do dormitório e batesse palmas. Não pronunciava urna só palavra: cabeça quadrada, lábios abertos a formão, inspecionava os quatro cantos, as mãos estalavam, compassadas. No sótão o torpor podia prolongar-se, unir dia e noite. Galileu começou a contar o tempo: alguns internos já estariam aglomerados no portão para ver as meninas entrar, comboiadas por dois contratorpedeiros, a diretora e a vice-diretora do internato feminino. Os vasos de guerra, pesados, ferro-velho a pedir estaleiro, marchavam ao lado; Os internos marcavam a cadência um-dois, um-dois, as meninas sorriam, Eugênia bamboleava o corpo gorducho.

À luz do dia Galileu viu que o telhado caía para os lados até morrer rente ao forro, em recantos escuros e sujos; viu que os companheiros de sótão eram do dormitório dos maiores, deviam andar no terceiro ou quarto ano ginasial, estudar física e química, provavelmente já conheciam mulher. Quando a sineta das aulas bateu pela segunda vez — deviam ser nove horas — eles ficaram nervosos; saíram da cama e arrastaram-se para o canto sombrio da direita. 

— Você não vem? — perguntaram. 

— Ver o quê? 

— As moças no toalete. 

E deram-lhe instruções: teria de andar de quatro pés, só por cima dos caibros, pois o forro era velho, não agüentaria o peso do corpo. Avançaram arfantes sobre o madeirame carcomido, por entre teias de aranha, deitaram-se e colaram os olhos às frestas. Embaixo surgiu, como um alçapão, o ladrilho do toalete, mas os vasos sanitários estavam fora de vista. Moças entravam, ajeitavam o cabelo ao espelho ovalado, apertavam a saia nos quadris, mexiam por baixo das saias em peças íntimas. Algumas alisavam a blusa — e era tudo: as portas vedavam o mais interessante. O forro estalava, a madeira podre dos caibros parecia afundar. Galileu imaginou o estrondo como um pedaço de céu que se rasga, depois a queda entre as saias azuis, aos pés de Eugênia surpreendida no ato de empalmar os seios; cabelo despenteado, rosto chupado de doente, uma inchação gorda e brilhante na garganta, ele seria de meter medo; as moças correriam aos gritos, era bem provável que Eugênia desmaiasse. Mr. Keith o arrastaria então pela gola do pijama, dando-lhe pontapés e cachações, talvez alguns socos, porque ele lutara boxe em Princeton; no dia seguinte seria expulso. Galileu arrastou-se de volta à cama, estava na hora do Dr°. Godinho aparecer e tornar-lhe o pulso. O suor pingava no forro corno goteiras ácidas, corrosivas. 

De tarde, imerso na febre que o acalentava, ouviu pedaços de conversa, gravou um nome que ia e vinha na boca dos companheiros de doença: Miss Baby. Vasculhou a memória e não encontrou nenhuma Miss Baby do seu conhecimento. O nome era engraçado: Senhorita Bebê. Urna filha de Mr.Keith que houvesse chegado dos Estados Unidos? O apelido da secretária de Mr. Keith, que não bulia com os quadris ao andar? Alguma mulher descrita em livro? Arrastou-se para a beira da cama, sustentou com o cotovelo a cabeça que lhe parecia oca que nem cabaça. 

—- Quem é essa Miss Baby? 

Os veteranos riram. 

— Quantos anos você tem? 

— Treze. 

— Nada feito. 

— Sou do dormitório dos médios. 

Eles então lhe contaram. Disseram-lhe que entre os passageiros do bonde que passava em frente ao internato havia urna insuspeitada contorcionista, que não o apanhava no meio do percurso, e, ao contrário dos outros passageiros, preferia o banco de trás, o último, de onde via deslizar pedaços cinzentos, espelhantes ou lívidos, da cidade. Mulher miúda, já idosa, porém esgalga, de pele tensa esticada sobre os ossos corno fios de arame. Uma pele quase diáfana, quase rósea, apesar de certas manchas de ferrugem. 

Os movimentos dessa mulherzinha são oblíquos, de réptil cuidadoso apanhado a descoberto em amplas clareiras, e quando ela se senta às vezes finca os cotovelos nas coxas e escora a cabeça nos punhos cerradas; parece então um sapo de atalaia no banhado, seduzido pelo encantamento de uma serpente — ou à beira da fonte, hibernando na longa friagem. Deve morar nos contornos da cidade, nesses lugares onde a vida talvez escorra mansa, quem sabe no Rio Vermelho, talvez em Amaralina; e é possível que tenha filhos, quem sabe terá um homem; um homem que lhe admira ainda o corpo desempenado e resvaladiço, filhos que lhe ignoram a secreta ocupação que a faz sair de casa todos os dias no começo da noite e emboscar-se no último banco do bonde. Indo ou voltando, porque o centro da cidade é a sua meta, ela não é a mesma: retorna transfigurada, como se um halo a envolvesse — o paiol de fracos refletores assestados no palco, a desvendar-lhe os segredos dos braços e pernas que adquirem na sombra a consistência esponjosa de membranas. A emoção do espetáculo que os refletores focalizam e desvendam subsiste apenas nos dedos da contorcionista; dedos que tremem e se grudam como ventosas no maço de cédulas de pouco valor, separando o necessário para pagar o bonde, descer no ponto final, apanhar outro bonde e finalmente entrar na casa silenciosa onde o marido e os filhos ressonam. 

O porteiro da boate não a cumprimenta quando e1a resvala pela porta e adentra a escuridão em lestas contorções de braços, pernas e ancas; sequer leva a mão à pala do boné, na saudação habitual dos porteiros, nem mesmo faz um gesto para empurrar a folha da porta; apenas deixa-a passar, contornar as mesas, procurar o camarim penumbroso, ver-se no espelho rachado reencontrar-se nos vidros de tintas e cosméticos. Ali, diante do espelho, enquanto lhe chega esmaecido o som sincopado de tangos, ela se mete numa pele esverdeada, e enquanto suas roupas jazem no chão como a pele tisnada que uma serpente largou no caminho, fuma um cigarro e espera a hora de entrar no palco. 

Atrás da cortina que a sujeira, o pó e o tempo tornam mais pesada, há um frêmito de vida, tinir de copos, um longo sussurro de homens e mulheres que se encontram e desencontram em confabulações amorosas. De pé, agora, atrás da cortina, a contorcionista atira no chão o toco de cigarro, perfila-se.Lá na frente alguém anuncia seu número, a orquestra ataca uma valsa lenta. E ela, com um salto. está nas trevas do palco, o refletor passeia, colhe-a, detém-se. 

. Ela já se habituou a essas palmas frias, a esses olhares curiosos que cedo se apagam e se desviam ou se recolhem sobre as mesas, olhares que refletem o amor, o perdido ou encontrado ou procurado amor, pensa Galileu, que não faz uma hora, dias depois, em plena convalescença, pulou o muro do internato e afinal tem diante de si a revelação da mulher, e vê que de repente os homens e mulheres percebem que a orquestra continua tocando a mesma valsa, perguntam a si mesmos se a contorcionista ainda está no palco, e guiados pelos refletores eles a redescobrem, uma massa verde e acaçapada, a mulher-sapo de todas as noites. 

A contorcionista não se apressa, não se ilude; sabe que haverá um instante em que a verdade haverá de doer, nas conversas dos homens e mulheres, e os forçará a olhá-la; aí então, quando recolhe o olhar do seu público, ela se esmera: o corpo se desconjunta, os ossos se distendem sem que se ouça um estalo, e ela se transmuda e se transforma, se enrosca e se arqueia. A valsa anima-se, chega a adquirir um ritmo de marcha; como as palmas aumentam, o corpo da contorcionista freme na inventiva de novos meneios e de novas ânsias, empenha-se na derradeira flexão, os refletores apagam-se. 

Vem o segundo número e a contorcionista é agora uma tímida cantora americana, comboiada pelo pai e pela mãe, os três dispostos a um sarau familiar. 
— Miiisss Bêêiibi! 

Surge no palco o trio, recebido com palmas: uma senhora gorda, loura, de olhos azuis, vestida de cor-de-rosa como uma adolescente; um senhor de ar alheado, que se esquece de sorrir e é cutucado pela mulher; e uma esgalga adolescente amorenada que só pode ser a Miss. O senhor e a senhora sentam-se a um canto e passam a orgulhar-se do rebento que arranha o português; a Miss cumprimenta o generoso público com um good evening que Galileu traduz logo, com orgulho — orgulho que o locutor, mulato de cabelo esticado a brilhantina, deita a perder: 

— Ela está dando boa noite! 

Miss Baby, americana que começou a fazer turnê em Belém do Pará e veio descendo o litoral, dá um beliscãozinho no queixo do locutor, que se vira para a platéia e alardeia num sorriso alvar a intimidade do beliscão aplicado sem dúvida com unhas pontiagudas, que devem doer. Depois, ela começa a cantar, sob os olhares distraídos do papai e o encanto renovado da mamãe.

— I am going to sing I Want To Be Evil. All right, Mom? 

E a senhora gorda condescende: 

— Go ahead, Baby. 

Ao cabo de uns três ou quatro números, Miss Baby consulta a platéia: 

— Estar mutcho calorr, non?

Todos concordam: realmente está quente, quentíssimo, embora seja noite de junho. Miss Baby sorri e encolhe um ombro para despir o bolero que lhe descobre dois dedos na zona equatorial da barriga. Mas arrepende-se da precipitação do gesto, pede consentimento à mãe: 

— AlI right, Mom? 

E a boa senhora, um pouco assustada, mas compreendendo que o público exige o sacrifício, reluta um pouco, acaba concordando: 

— Go ahead, Baby. 

O momento ansiosamente esperado: Galileu concentra todos os sentidos, músculos e nervos, na força do olhar. Miss Baby encolhe o ombro, liberta o braço. A orquestra toca um lullaby. Miss Baby encolhe o outro ombro, puxa o bolero num gesto de suprema renúncia, revela um busto pequeno acomodado num pedaço de pano estampado. Galileu aplaude de pé. 

– I am going to sing a French song, C'est si bon. 

E Miss Baby ginga o corpinho, introduz na letra umas variações que falam em Cadillac car, il sera très crazy,non? Encerra a audição com um see you tomorrow night, ladies and gentlemen —- e some nos bastidores, recolhe a pele esverdeada que deixou no chão. Dentro da madrugada que se inaugura ela coleia, sobe no bonde, agacha-se no último banco. As ruas passam, o brilho lhe foge dos olhos. É apenas uma criatura de meia-idade, franzina, pequena, mulher cansada a caminho de casa, onde o marido e os filhos ressonam. 

Galileu compra ao porteiro um postal de mulher nua deitada na cama e volta ao internato. Sonha com Miss Baby, contorcionista e cantora. 

In. Estranhos e Assustados, 1966 - Fonte Jornal do Conto
Imagem retirada da Internet: Contorcionist

Bertolt Brecht - Poema


PENSAMENTOS  SOBRE 
DURAÇÃO DO EXÍLIO


1


Não coloque prego nenhum na parede
Jogue o casaco na cadeira.
Por que fazer planos para quatro dias?
Amanhã você volta.

Deixe a arvorezinha sem água.
Para que plantar mais uma árvore?
Antes que ela tenha um palmo de altura
Você irá embora, contente.

Desça o boné sobre os olhos, ao cruzar com as pessoas.
Para que estudar uma gramática estrangeira?
A notícia que o chama para casa
Está escrita numa língua conhecida.

Assim como o cal desprende da parede
(Nada faça quanto a isso!)
Apodrecerá a cerca da violência
Que foi erguida na fronteira
Para manter longe a justiça.

2


Olhe para o prego que colocou na parede:
Quando acha que voltará?
Quer saber o que pensa no mais íntimo?

Dia após dia
Você trabalho para a libertação.
Sentado no quarto, escreve.

Quer saber o que acha de seu trabalho?
Olhe a pequena castanheira no canto do jardim
Para qual você levou o jarro d'água


In.Bertolt Brecht: Poema 1913-1956. Trad.: Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34, p.207-208,2003.




Micheliny Verunschk - Poeta


  Do meu amor para a tua infância


O menino de porcelana
Brincava dentro da fotografia
Alheio
Ao meu fogo que o via de longe.
Ele, que não sabia da porcelana,
Cavalgava a árvore,
Seu cavalinho de pau
( As árvores são dois meninos


Há tempos imemoriais ).
Ele, que não sabia da porcelana,
Só conhecia a heráldica das arranhaduras
( Doloridos dragões de línguas rubras ).


Fonte Jornal de Poesia
Desenho by Francisco Perna Filho

Amadeus Amado - POema


Lonjura


Só vejo deserto,
areia e céu,
lonjura e imensidão.
vejo
o que não quero,
mas vejo,
mesmo quando fecho os olhos.



Imagem retirada da Internet: lonjura

Urariano Mota - Conto


ENCONTRO DE AMIGOS


O motivo inicial foi o câncer. Descobriram, de repente, que um deles poderia desaparecer, definitivamente desaparecer. Que todos desaparecem, mais cedo ou mais tarde, não tinham nenhuma dúvida. Todos, algum dia, todos todos todos sem dúvida um dia iriam, num futuro remoto, sumir. De morte morrida, matada ou suicídio. Todos. Mas uma coisa, que só a lógica humana explica, uma coisa é todos desaparecerem. Outra, bem distinta, era desaparecer um deles, um indivíduo conhecido, com quem viveram, conviveram, alguém íntimo, sim, outra bem distinta era desaparecer aquele indivíduo chato, aborrecido, mas que tinha, “ah, todos temos”, algo de humano e amoroso. E como se não bastasse, um alguém com a embaraçosa qualidade de ser “um dos nossos”.
- Saturnino pegou um câncer!
- Como foi isso?
Era a pergunta imediata, que vinha como resposta. Isto queria dizer: o que foi que ele fez de errado? Sim, alguma e algumas ele deveria ter feito. Está vendo? não se cuidou, é o pau que dá: não se cuidou, usou e abusou de extravagância, está aí, câncer. E isto queria também dizer, nós, que nos cuidamos, que seguimos dietas saudáveis, que praticamos exercícios físicos, que caminhamos, que fazemos amor dentro dos limites, que bebemos pouco, que comemos só o necessário, nós, a caminho da imortalidade, nos cuidamos.
- Como foi isso?
Vamos, queriam dizer, comprove-nos o quanto ele errou, o quanto não erramos nós, o quanto ... não diziam, mas pela progressão da exigência de fatos explicadores, poderiam dizer, o quanto ele é culpado do câncer que pegou.
- Ele mesmo não sabe. Havia deixado de beber, fazia cinco anos que não fumava, fazia caminhada, vivia de casa para o trabalho, do trabalho para casa, estava com uma vida de santo. E câncer...
- Ele estava sentindo alguma coisa?
Era a pergunta seguinte, porque isto também queria dizer, diga, vamos, enumere urgente os sintomas que não temos.
- Nada, ele não sentia nada. Absolutamente nada. Entende? Nem uma só dorzinha, nem o mais leve mal-estar, nada.
Ah, e como um fel que se masca e mastiga, diziam ah, e isto queria dizer o quanto a doença era traiçoeira, o quanto ela avançava em silêncio, como um fila, pior, pior que um cão fila brasileiro, porque ao sentir as dores da mordida o indivíduo está no ponto final
Ah. Então foram lembrando, aos poucos, sem reunião, sem que se comunicassem, como uma reflexão coletiva, como um pensamento que corre sem que se enuncie, o quanto outros males vinham se anunciando. Ah. Todos haviam ultrapassado os cinqüenta anos. Bolívar estava com regurgitação, e isto queria apenas dizer que não podia mais comer como antes, o que engolia voltava, contra a sua vontade. (Mas isso era melhor que o câncer!) Elísio estava com uma palpitações estranhas no peito, depois que recebera umas pontes de safena. Três, três pontes, mas benditas, porque isto ainda era melhor que um câncer. Isaltino fizera uma cirurgia remodeladora do estômago, da vesícula, extraíra um dos rins, essas coisas secundárias, que não se sabe por que temos dois, que felicidade, divorciado de alguns órgãos, mas paciência, isto, ainda assim, era melhor que um câncer. Vespúcio, com receitas infalíveis de vida saudável, alimentação milagrosa, chás de ervas de qualidades ainda não descobertas, exercícios e meditação budista, estava a caminho de perder o outro equilíbrio, o mental. Demente, mas saudável, diziam-se. Será um atleta sênior, com um sorriso idiota, que fazer?, de qualquer modo, isto era ainda muito melhor que câncer.
Sim, mas ainda aqui, nesse levantamento em que tudo era o melhor dos mundos, porque ausente de câncer, e o mundo com tal ausência, dever-se-ia dizer, era o paraíso sem a oposição do satanás, ainda aqui, descobriram, se deixassem de ter como referência o mal maior, se voltassem os olhos para a vida de quando jovens, ah, se se comparassem aos que nada têm, ah. Era de amargar. Fel que não dava nem para mascar com aparência de jovens com chicletes. Ah. Porque então se deram conta, terrível novidade, que já haviam vivido mais que 70% dos seus melhores anos.
- Setenta? Olhe, você está sendo muito otimista, contestou Elísio. Olhe, para alguns de nós, estamos nos dez por cento finais.
Então decidiram fazer uma reunião de amigos. Um reencontro. A pretexto de uma solidariedade ao infeliz que sofrera o que não queriam , resolveram ter um reencontro, antes que fosse tarde. E aqui, somente aqui, nos dez por cento finais começa a nossa história. Porque aqui começam as nossas dificuldades.
A começar pela estrela, o canceroso. Não queria falar com ninguém. Danem-se! “Deixem-me em paz”, espalhem aos quatro cantos, “esqueçam-me”, eu quero ficar sozinho, eu quero morrer só, eu estou sentindo um fedor de hipocrisia, vão pra puta que os pariu.
- Ele não está bem do juízo, dizia a sua esposa, ao telefone.
- Por quê? Ele está agressivo, quero dizer, ele está mais agressivo do que antes?
- Não, ele só quer ouvir João Gilberto.
- Ah, então o caso é sério, e desligavam.
Mas não desistiram de, aqui e ali, fazerem uma ligação. E ele, melhorou? Diga-lhe que todos desejamos vê-lo, revê-lo, que todos torcemos por ele, que ele é muito importante para nós, e demais frases e fórmulas de adulação, que por serem corteses, educadas, são enganosas, mas guardam, por isso mesmo, o doce gosto de uma consolação.
- Como foi mesmo que ele disse? perguntava à esposa.
- Que você é importante para eles.
- Mas você disse antes que eu era “muito, muito importante”.
- Sim, eles disseram assim: ele é muito importante para nós.
- Só isso?
E continuavam o assédio, por mensagens, por mails. Exageravam, no estímulo: “Levante a cabeça, o câncer é uma doença como outra qualquer”. Isto muito, muito o irritava. Uma doença qualquer?! Respondia, no mesmo tom: “Recomendo ao amigo essa doença qualquer. É uma bobagem, é como uma gripe, um sarampo”. E vinha outro, com estímulo semelhante: “Todos vamos morrer...”. E vinha uma bondosa amiga: “Existem uns passes de energia, com os dedos, feitos com a proximidade das mãos, que conseguem uma cura revolucionária”. (E aqui, mesmo no esoterismo, não se perdia o jargão: passes de energia “revolucionários”.). E outro: “Melhore o humor, homem. Eu tenho uma tia, que com bom humor...”, o que seria algo, o paciente resmungava, algo como a cura do câncer pela risada. E se imaginava numa câmara de cócegas. Nela, um médico com máscara de cirurgião, como um boneco de marionetes, lhe anunciava: “A terapia das cócegas venceu a sua doença”.
Ao fim, no entanto, de 90 longos dias venceram. Aconteceu de repente, naquele que desejava ficar sozinho, morrer sozinho, como se a morte não fosse em si uma imensa solidão, aconteceu de repente no homem de vidro uma saudade, uma vontade de beber, um desejo imenso de rever os amigos, de entrar com eles num bar, num café do quadro de Van Gogh. De conversar bobagem, de ver suas caras, como se fosse pela primeira vez. Está certo, como se fosse a última ou penúltima vez. E pediu que marcassem o dia, o dia e a hora para o reencontro. Então os safados, surdina e quixotescamente, disseram-lhe, por mail, que as esposas não iriam. Que esse era um encontro tão-só e somente deles, sem mulheres, para melhor, não diziam, mas era isto, para melhor delas poderem falar. E quem sabe, talvez, possibilidades aos cinqüenta anos de idade abertas, se energias e fogo houvesse, talvez, quem sabe, a fuga para um bar que fosse um quadro de Toulouse-Lautrec.
As mulheres não aceitaram , estava escrito. Dizia uma:
- Então eu sou boa para ser enfermeira. Mas não para companheira...
Dizia outra:
- O que vai fazer um bando de homens juntos?
Ao que outra completava:
- Procurar mulher, é claro.
A isto respondiam com protestos os amigos, com sentidos e ofendidos protestos:
- Que é isto? Assim você nos ofende. Mulheres já temos. Vocês já nos preenchem, completamente... (Até o pescoço, até a fronte, acenava um safado, por trás.)
E quando pensavam que haviam vencido, numa tola esperança, porque desconheciam que ao fim e ao cabo as mulheres sempre vencem, quando pensavam que com tais declarações de amor conjugal haviam vencido, eis que vinha a carga, mais pesada:
- Um bando de homem junto, sem mulher... Então vão dar o cu! Quem vai comer o cu de quem? Era bom saber. Quem come quem?
- Minha querida, em nossa idade....
- Não perca a esperança. Velhice é desespero!
Então houve um grau supremo de apelação. Os amigos proferiram discursos comoventes, que argumentavam com o mundo só de homens, de recordações só masculinas, de necessidade imperiosa de se fazer um balanço sentimental desde a infância, de se contar fatos vexatórios que os homens não contam às mulheres, “vocês também possuem o seu mundo, entendem?”, discursos verdadeiros e mentirosos, demagógicos e grandiosos, de ternura e de raiva em iguais proporções. Inútil. Como diria mais tarde o sociólogo do grupo, a passar a mão no ventre esvaziado do rim esquerdo e de pedaços dispensáveis do estômago, como diria ele, a passar a mão pelas cicatrizes do abdômen, “o impasse estava configurado”. E completava:
- O amor é guerra, bicho. Se você se fizer de fraco, a mulher monta, monta e não desce. Então eu virei a mesa, e gritei: “Eu vou, eu vou de qualquer forma e jeito! Eu vou sozinho, e fim!”.
Mas se o amor é guerra, o vencedor não é o que grita. Pelo contrário. Todos tiveram a generosa permissão de ir sozinhos, “era uma questão de princípio”, proclamavam. Mas sob a condição, o que não se disseram nem exaltaram, de deixarem a informação exata do bar, do local, da hora, e com os telefones celulares acesos, dentro da área de cobertura. Sozinhos, mas... Liberdade condicional, sob controle remoto e vigiada. Então chegaram.
Estavam jovens, joviais e serelepes. E aqui a mão que escreve oscila entre o cômico e a comoção. A flor breve da juventude havia murchado. Todos estavam de cabelos grisalhos, com exceção de um, cujos cabelos enegrecidos deviam ser objeto de muita tinta e cuidados. Ativos, pesados, ágeis, mas só no olhar, na rapidez com que os olhos evitavam questões desconfortáveis.
- Você é feliz?
- Eu sou um homem prático.
E se olhavam, e se mediam, “será que estou velho como ele?”.
- Você está com a mesma cara! (Era o supremo elogio, porque o corpo não era mais o mesmo). É impressionante.
- Você acha? A gente se acostuma com o espelho e não nota. É preciso que outra pessoa diga. Você acha mesmo, a mesma cara?
Feitas as “apresentações”, as retomadas dos contatos, voltaram então as brincadeiras, as ácidas e pesadas brincadeiras, ferinas, uma herança da adolescência.
- Como você faz para ficar assim, tão jovem?
- Eu? Alimentação, alimentação saudável e exercícios.
- Sei, pão, queijo e café?
- Não, eu já notei que você não come frutas. Vai ver que foi por isso...
Ia dizer que “pegou um câncer”, mas suspendeu a frase. Ao que o atingido responde:
- Então comi errado nos meus últimos cinqüenta e cinco anos. Sim, como devo comer? Ensine-me, como devo comer?
A ironia não é percebida, porque o cultivador de “saúde é tudo, em primeiro e perimeiríssimo lugar saúde”, passa a enunciar uma receita:
- Olhe, pela manhã, um copo de suco de laranja, uma folha de couve, uma fatia de pão de centeio. Seis ovos de codorna, uma xícara de chá preto. E limão. Pode usar e abusar do limão, se quiser. Limão é muito bom para as artérias, até pra potência.
- Limão? - Todos se interessam na mesa . - Limão?
- Sim, limão.
- Via oral, você quer dizer.
- Sim, e água, muita água. A receita da felicidade é a água.
- Água água?
- Sim, água, água. Bebam 8 copos de água por dia. Mas o ideal são dois litros de água. Limpa a pele, desintoxica, emagrece, lubrifica e dá tesão.
- Água mesmo, sem aditivo?
E entra-se então no capítulo de observações que se apresentam como gerais, como se dissessem respeito a outros.
- Há pessoas que na maturidade, no envelhecimento, não, porque todo velho é feio, mas há pessoas que na maturidade ficam melhores de aparência. Já notaram?
- Já, não é o teu caso.
- Mas você disse que a minha cara era a mesma.
- Então, isto mesmo: estás tão feio quanto antes.
Riem. E as vítimas rodam, substituem-se, como num jogo de bola, de “doidinho”, em que um indivíduo perde a bola para outro, e passa a tentar recuperá-la, que vai de um pé a outro, em roda.
- Você se lembra do dia em que o ladrão invadiu a sua casa?
- O ladrão jamais invadiu a minha casa.
- Então foi pior. Você pensava que o ladrão havia invadido. Você ficava a pular, de coluna a coluna da sala, com uma faca de mesa, sem ponta, a gritar para a sua filha: “o que é, porra?, o que é, porra?”. Aparentemente, era o chefe do lar a pôr ordem na histeria da filha, apavorada. Na verdade, eram anúncios para o ladrão, “vá embora, que estamos acordados”.
Riem.
- Mas o pior foi no outro dia. A filha lhe perguntou: “papai, por que o senhor ficou a pular, de uma coluna para outra?”. E a resposta: “era para o ladrão errar a pontaria do revólver, minha filha”. Mas dizes bem: jamais houve ladrão em tua casa. Houve só o pavor.
Então os casos, os “doidinhos” se sucedem. Até a exaustão, até o ponto em que os ridículos de cada um são mais do que conhecidos, e por isso perderam o interesse, ou então, são conhecidos, mas não se dizem, mesmo na bebedeira, porque ainda ferem, magoam, mesmo sendo cômicos. Ninguém diz, por exemplo, que a miséria humana, sexual, era tamanha na juventude que galinhas pretas, no quintal, eram adoradas pelas frestas do banheiro do quintal, em vigorosas masturbações. Ninguém diz tampouco que um deles recebeu um falso bilhete, onde uma enamorada marcava um encontro, e que ele ao comparecer ao local, perfumado e em sua melhor roupa, recebeu uma sonora vaia dos colegas. Isto não se diz. Nem tampouco a miséria material de outro, que para comer um prato de carne, deixou-se masturbar por um homossexual. Não, isto ninguém diz. Não se fala tampouco de casamentos que não deram certo, de filhos separados, fodidos, longe. Não se diz. Porque isto ficou além do ridículo. Há uma lâmina fina que separa o riso da dor. O limite talvez seja o ridículo que dói.
Então descobre-se que, por nada, os senhores cinqüentões ficaram sentimentais, estupidamente sentimentais, brutalmente sentimentais, que por nada choram, de repente choram, em meio a um relato aparentemente objetivo, trivial, perdem a voz, ficam com a voz embargada, e não conseguem avançar. Escondem o rosto, vão ao banheiro, e voltam com a cara inchada e os olhos vermelhos. E então se dá um silêncio, e uma vontade imensa de gritar:
- O que é, porra?
Mas não se grita, porque o grito seria um berro de menino sem mãe, órfão. Então sem aviso, começa-se a cantarolar, como se estivesse marcado, como se fosse uma música marcada no script do encontro, o Hino de Batutas de São José: 

“Eu quero entrar na folia, meu bem
Você sabe lá o que é isso?
Batutas de São José, isto é parece que tem feitiço. 
Batutas tem atrações que ninguém pode resistir
Um frevo desses que faz demais a gente se distinguir.

Deixa o frevo rolar
Eu só quero saber 
Se você vai ficar
Ai, meu bem, sem você 
Ai, não há carnaval
Vamos cair no passo 
E a vida gozar”

E repete-se o refrão, com os braços nos ombros, os velhos, os jovens amigos:
- Vamos cair no passo, e a vida gozar.
Então a voz começa a fraquejar. Então começa uma saída para o banheiro. Então começam a virar a cara, uns para os outros, a se ficarem de costas, a buscar um lenço.
- O primeiro a chorar é bicha. O primeiro a chorar é veado. Certo?
- Certo.
E o banheiro começa a se encher de amigos. Até que um deles desaba, literalmente desaba, e se põe num pranto alto. O choro contagia, todos os amigos se contaminam. Num fiozinho de voz, alguém diz:
- O nosso mundo está indo. O nosso mundo está se acabando.
Cai uma chuvinha fina, de fim de tarde, no bar que seria o Café de Van Gogh, se fosse de noite, em Arles, em setembro de 1888. Mas é um bar em Olinda, onde o mar bate, insensível àquele bando de velhos que acenam para um mundo que não volta. Um celular toca. Toca, chama, em vão. Silêncio, só murmúrio dos homens que choram. Todos estão fora da área de cobertura.


Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: velho

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