Mário Faustino - Poeta


Breve Elegia



Só ardem neste sono
os círios da memória e do desejo.
E turvos
na memória revolta são teus gestos –
os únicos repletos de perdão.

É preciso esquecer
tanto amar, tanta amarga
expiação de tudo que guardamos
por não sabermos dar.
E obscura
                    pelas vagas do leito
                                                  - tua sombra –
nenhuma outra é digna deste abraço.

Pudesse eu divagar
pelos bosques teu reino, mergulhar
contigo em tua fonte, ou ascender
ao teu éter contigo, ao teu mistério ...
mas não há via larga rumo à noite.

Então, luz após luz remota, um sol atroz
atira-me do sonho aos recifes
reais donde diviso tua fuga:
Jamais a madrugada traz nos braços
relíquias de uma lua que adoramos.



Mário Faustino - Poeta


Sinto que o mês presente me assassina


Sinto que o mês presente me assassina,
As aves atuais nasceram mudas
E o tempo na verdade tem domínio
sobre homens nus ao sul das luas curvas.
Sinto que o mês presente me assassina,
Corro despido atrás de um cristo preso,
Cavalheiro gentil que me abomina
E atrai-me ao despudor da luz esquerda
Ao beco de agonia onde me espreita
A morte espacial que me ilumina.
Sinto que o mês presente me assassina
E o temporal ladrão rouba-me as fêmeas
De apóstolos marujos que me arrastam
Ao longo da corrente onde blasfemas
Gaivotas provam peixes de milagre.
Sinto que o mês presente me assassina,
Há luto nas rosáceas desta aurora,
Há sinos de ironia em cada hora
(Na libra escorpiões pesam-me a sina)
Há panos de imprimir a dura face
À força de suor, de sangue e chaga.
Sinto que o mês presente me assassina,
Os derradeiros astros nascem tortos
E o tempo na verdade tem domínio
Sobre o morto que enterra os próprios mortos.
O tempo na verdade tem domínio
Amen, amen vos digo, tem domínio
E ri do que desfere verbos, dardos
De falso eterno que retornam para
Assassinar-nos num mês assassino.







InJornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: Mário Faustino

Célio Pedreira - Poema


cantiga cria


um horizonte bateu em minha porta
e quando abri eram só dois olhinhos
a estender-me a mão
como fosse um pedido de rumo
desses que a gente acerta
até os caminhos do coração.


Imagem retirada da Internet: Infantil

Francisco Perna Filho - Poema

Somália


um mar de  gente sedenta,
                           faminta,
degusta palavras,
                          definha em sóis
de uma existência precária.
Somali,
só mal,
        de sol a sol,
sozinha,
     a criança brinca com os seios da mãe:      
sugando o inexistente,
brinca de ser eterna.

               

Imagem retirada da Internet: fome

Chico Buarque de Holanda - Poesia



TROCANDO EM MIÚDOS


Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim
Não me valeu
Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim!
O resto é seu

Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis
As nossas melhores lembranças

Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter

Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado

Aliás
Aceite uma ajuda do seu futuro amor
Pro aluguel
Devolva o Neruda que você me tomou
E nunca leu

Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde.


Imagem retirada da Internet: Fita do Bonfim

Sinésio Dioliveira - Crônica


Goiandira deixa suas pegadas na areia



Tive o privilégio de entrevistar a artista Goiandira do Couto. Isso já faz um bocado de anos. Na época ela estava com 82 anos. Lembro que sugeri a vida da artista como pauta na reunião que acontecia toda segunda-feira no jornal, um semanário.

Minha sugestão, entretanto, não foi aceita pelo dono do jornal, pois, segundo ele, era dispendioso deslocar um carro até a Cidade de Goiás e junto a isso o fato de que o assunto “cultura” não gera lucros ao jornal. Tentei dissuadi-lo de sua pequenez jornalística. Foi, portanto, em vão.

Após me certificar com o dono do jornal de que pelo menos a matéria seria publicada, rumei para a Cidade de Goiás em meu próprio carro, acompanhado do fotógrafo Iris Roberto. Ainda bem que fui. Já chegando à cidade e ao avistar a Serra Dourada, onde a artista extraía os grãos de areia de centenas de cores para dar vida a suas obras, tematizadas nas casas e ruas de sua cidade, parei o carro e pedi ao fotógrafo que fizesse algumas fotos da serra. Como estávamos no mês de maio, a paisagem estava muito bela. O verde da vegetação era vigoroso.


Minha conversa com Goiandira durou quase três horas. Liguei para ela assim que entrei na cidade. Ao chegar em sua casa, encontrei duas portas abertas: a de sua casa e a de seu coração.
 Na verdade, eu já conhecia a artista, mas queria conhecer também a pessoa dentro da artista. Que pessoa maravilhosa!

Em meio à entrevista realizada pela manhã, isso após Goiandira passar um café fresquinho, que rescendeu deliciosamente pela cozinha, onde estávamos, ela ia me mostrando seus quadros, fotos de suas exposições. Falou de sua infância, mas sem o saudosismo romântico. Falou da importância de seus pais, da influência da mãe, que era pintora, em sua vida como artista plástica. Falou da importância do pai no estímulo pela leitura. Falou que cresceu rodeada de livros e que isso foi-lhe muito importante na lapidação de sua personagem. Até mencionou Castro Alves: “Bendito o que semeia livros!” Monteiro Lobato também é mencionado por Goiandira: “Um país se faz com homens e livros.”

A certa à altura da entrevista, quando falava das inúmeras personalidades políticas e religiosas que a visitaram, perguntei-lhe qual foi a mais importante. “Foi Chico Xavier, ele inclusive sentou-se na cadeira em que você está sentado agora.”

Voltei para Goiânia feliz em ter conhecido aquela mulher tão determinada, tão importante e de um coração tão grande. Ainda bem que ela gostou da entrevista, tanto que me mandou, dois dias após a publicação da matéria, uma bandeja de doces cristalizados.

Goiandira foi embora, mas deixa suas pegadas na areia...


Imagem retirada da Internet: Goiandira do Couto

Maria Elizabeth Fleury - Crônica

Goiandira do Couto
 Foto by Weimer Carvalho- O Popular


Terra linda e venturosa, terra amada de meus pais




 Somente corações generosos de coroadas cabeças da atual diretoria do SESI goiano,  teriam a sensibilidade de ceder uma condução com motorista, proporcionando, a pequeno grupo de intelectuais goianos a oportunidade de conduzir o casal de escritores e historiadores de Porto Alegre (RS), Moacir e Hilda Agnes Hübner Flores, para conhecer a outrora Vila Boa, antiga Capital de Goiás, hoje, orgulhosamente, Patrimônio Cultural da Humanidade. E, sob cálido sol matinal deste mês de agosto seguiram todos, quais adolescentes em recreio, rindo, conversando, cantando e recordando saudosas cantigas como a “Balada goiana” de Manoel de Amorim: Todos têm um amor na vida/que os inspiram a cantar/ eu só tenho a minha cidade/ minha terra, meu sonho, meu lar... Lá chegando, aos poucos, a cidade foi desvendada, mas dois desejos seriam primeiramente realizados: visita à casa de Cora e à arte em areia nos belos quadros de  Goiandira, fundadoras da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás-AFLAG.
       
Para melhor apresentação da cidade, buscamos os versos de Rosarita Fleury, uma de suas amorosas filhas que, ainda, menina-moça a deixou, sem nunca esquecê-la. Saudosa, registra em poemas e romances sua história, sua beleza, usos e costumes de sua gente simples, hospitaleira, inteligente e honrada... Aos pés de verdes morros a cidade se estende cintilante/ nos dizer do poeta é pérola engastada no verde-jade de concha fascinante... Ponte da Lapa, do Carmo, Cambaúba altaneira, rio Vermelho, as pedras, as lavadeiras... Cruz do Anhanguera, de tão distante era! / o Palácio Conde dos Arcos, o bom Colégio Sant’ana/a Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte/ a Catedral por fazer, tão sem sorte... / o sino do Rosário badalando, convidando... convidando.../ /Igreja D’Abadia, de Nossa Senhora do Carmo e São Francisco/ Rua Nova, tão velhinha, Rua Direita, tortuosa, de todas a mais tortinha!...No entanto a saudade grande é da Rua Rosa Gomes/ onde por anos morei e onde há, nos quintais/ tanta fruteira bonita plantada por meus pais... (do poema Goiás Recordação).


Entrando na casa de Cora Coralina, fomos recepcionados por seu retrato em tamanho natural e lá nos mergulhamos nos séculos XIX e XX, vendo-a em gravações e ouvindo-a declamar seus poemas de mulher sofrida, altaneira, guerreira. E, enquanto conhecíamos todos os ambientes, suas seculares paredes nos espreitavam, nos questionavam, fazendo-nos reféns de sua poética... Goiás minha cidade/eu sou aquela amorosa/de tuas ruas estreitas, curtas, indecisas/saindo uma das outras./Sou aquela menina feia da ponte da Lapa/sou Aninha/ Sou Cora Coralina/Venho do século passado e trago comigo todas as idades./Despojada,apedrejada/sozinha e perdida nos caminhos incertos da vida fui caminhando,caminhando.../Fiz um nome bonito de doceira, glória maior/E nas pedras rudes de meu berço gravei poemas...(versos de vários poemas) Depois de um almoço tipicamente goiano no Restaurante Ipê, com direito à sobremesa, levaríamos nossos visitantes a conhecer a beleza ímpar dos quadros pintados com areias coloridas da Serra Dourada, arte/criação de nossa internacional Goiandira do Couto.


Veio a decepção: O casarão, que foi de seus pais, hoje a Casa de Goiandira, um verdadeiro palácio da cultura, estava fechado. É lá que ela guarda inúmeros de seus quadros, assim também o atelier construído por ela para abrigar suas obras e receber os turistas. Numa sala em sua casa, onde trabalhava, há para visitação dos turistas 515 potinhos de areia com as cores matizadas da Serra Dourada - o precioso material de sua pintura. Tudo isso, orgulho e riqueza goiana, sempre mantida por ela, mesmo doente e hospitalizada em Goiânia.  Quantas vezes ela abriu mão de seu descanso, atendendo turistas ou amigos mesmo em crise de labirintite?  Informada por familiares, soubemos que somente meados do mês passado (julho) é que o funcionário foi dispensado, estando agora tudo fechado. Que pena!... Nossa visita fica para outra oportunidade. Sabemos que seu estado de saúde é delicado e ela,  com seus noventa e tantos anos de dedicação completa à sua arte, muito já fez, levando o nome de Goiás por todo Brasil e internacionalmente.


Depois de um cafezinho amigo na Chácara Baumann, visitamos o Palácio Conde dos Arcos, o Museu de Arte Sacra e tantos outros pontos turísticos, locais de que muito nos orgulhamos pelo zelo, limpeza,  organização e competência dos funcionários. Despedimos da cidade saboreando os tradicionais sorvetes e picolés de frutas tropicais da Praça do Coreto e o desejo de um breve regresso. Hoje (22,ago), enquanto relia esta crônica para encaminhá-la ao DM, recebo a notícia que Goiandira não mais vive entre nós. Sua alma cansada subiu ao Céu, deixando-nos a riqueza de sua arte única e maravilhosa. Descanse em paz, querida confreira e amiga.
                                                      
Maria Elizabeth Fleury – membro da AFLAG, UBE, ATLECA e ABLAC.


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