Chico Buarque de Holanda - Poesia



TROCANDO EM MIÚDOS


Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim
Não me valeu
Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim!
O resto é seu

Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis
As nossas melhores lembranças

Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter

Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado

Aliás
Aceite uma ajuda do seu futuro amor
Pro aluguel
Devolva o Neruda que você me tomou
E nunca leu

Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde.


Imagem retirada da Internet: Fita do Bonfim

Sinésio Dioliveira - Crônica


Goiandira deixa suas pegadas na areia



Tive o privilégio de entrevistar a artista Goiandira do Couto. Isso já faz um bocado de anos. Na época ela estava com 82 anos. Lembro que sugeri a vida da artista como pauta na reunião que acontecia toda segunda-feira no jornal, um semanário.

Minha sugestão, entretanto, não foi aceita pelo dono do jornal, pois, segundo ele, era dispendioso deslocar um carro até a Cidade de Goiás e junto a isso o fato de que o assunto “cultura” não gera lucros ao jornal. Tentei dissuadi-lo de sua pequenez jornalística. Foi, portanto, em vão.

Após me certificar com o dono do jornal de que pelo menos a matéria seria publicada, rumei para a Cidade de Goiás em meu próprio carro, acompanhado do fotógrafo Iris Roberto. Ainda bem que fui. Já chegando à cidade e ao avistar a Serra Dourada, onde a artista extraía os grãos de areia de centenas de cores para dar vida a suas obras, tematizadas nas casas e ruas de sua cidade, parei o carro e pedi ao fotógrafo que fizesse algumas fotos da serra. Como estávamos no mês de maio, a paisagem estava muito bela. O verde da vegetação era vigoroso.


Minha conversa com Goiandira durou quase três horas. Liguei para ela assim que entrei na cidade. Ao chegar em sua casa, encontrei duas portas abertas: a de sua casa e a de seu coração.
 Na verdade, eu já conhecia a artista, mas queria conhecer também a pessoa dentro da artista. Que pessoa maravilhosa!

Em meio à entrevista realizada pela manhã, isso após Goiandira passar um café fresquinho, que rescendeu deliciosamente pela cozinha, onde estávamos, ela ia me mostrando seus quadros, fotos de suas exposições. Falou de sua infância, mas sem o saudosismo romântico. Falou da importância de seus pais, da influência da mãe, que era pintora, em sua vida como artista plástica. Falou da importância do pai no estímulo pela leitura. Falou que cresceu rodeada de livros e que isso foi-lhe muito importante na lapidação de sua personagem. Até mencionou Castro Alves: “Bendito o que semeia livros!” Monteiro Lobato também é mencionado por Goiandira: “Um país se faz com homens e livros.”

A certa à altura da entrevista, quando falava das inúmeras personalidades políticas e religiosas que a visitaram, perguntei-lhe qual foi a mais importante. “Foi Chico Xavier, ele inclusive sentou-se na cadeira em que você está sentado agora.”

Voltei para Goiânia feliz em ter conhecido aquela mulher tão determinada, tão importante e de um coração tão grande. Ainda bem que ela gostou da entrevista, tanto que me mandou, dois dias após a publicação da matéria, uma bandeja de doces cristalizados.

Goiandira foi embora, mas deixa suas pegadas na areia...


Imagem retirada da Internet: Goiandira do Couto

Maria Elizabeth Fleury - Crônica

Goiandira do Couto
 Foto by Weimer Carvalho- O Popular


Terra linda e venturosa, terra amada de meus pais




 Somente corações generosos de coroadas cabeças da atual diretoria do SESI goiano,  teriam a sensibilidade de ceder uma condução com motorista, proporcionando, a pequeno grupo de intelectuais goianos a oportunidade de conduzir o casal de escritores e historiadores de Porto Alegre (RS), Moacir e Hilda Agnes Hübner Flores, para conhecer a outrora Vila Boa, antiga Capital de Goiás, hoje, orgulhosamente, Patrimônio Cultural da Humanidade. E, sob cálido sol matinal deste mês de agosto seguiram todos, quais adolescentes em recreio, rindo, conversando, cantando e recordando saudosas cantigas como a “Balada goiana” de Manoel de Amorim: Todos têm um amor na vida/que os inspiram a cantar/ eu só tenho a minha cidade/ minha terra, meu sonho, meu lar... Lá chegando, aos poucos, a cidade foi desvendada, mas dois desejos seriam primeiramente realizados: visita à casa de Cora e à arte em areia nos belos quadros de  Goiandira, fundadoras da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás-AFLAG.
       
Para melhor apresentação da cidade, buscamos os versos de Rosarita Fleury, uma de suas amorosas filhas que, ainda, menina-moça a deixou, sem nunca esquecê-la. Saudosa, registra em poemas e romances sua história, sua beleza, usos e costumes de sua gente simples, hospitaleira, inteligente e honrada... Aos pés de verdes morros a cidade se estende cintilante/ nos dizer do poeta é pérola engastada no verde-jade de concha fascinante... Ponte da Lapa, do Carmo, Cambaúba altaneira, rio Vermelho, as pedras, as lavadeiras... Cruz do Anhanguera, de tão distante era! / o Palácio Conde dos Arcos, o bom Colégio Sant’ana/a Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte/ a Catedral por fazer, tão sem sorte... / o sino do Rosário badalando, convidando... convidando.../ /Igreja D’Abadia, de Nossa Senhora do Carmo e São Francisco/ Rua Nova, tão velhinha, Rua Direita, tortuosa, de todas a mais tortinha!...No entanto a saudade grande é da Rua Rosa Gomes/ onde por anos morei e onde há, nos quintais/ tanta fruteira bonita plantada por meus pais... (do poema Goiás Recordação).


Entrando na casa de Cora Coralina, fomos recepcionados por seu retrato em tamanho natural e lá nos mergulhamos nos séculos XIX e XX, vendo-a em gravações e ouvindo-a declamar seus poemas de mulher sofrida, altaneira, guerreira. E, enquanto conhecíamos todos os ambientes, suas seculares paredes nos espreitavam, nos questionavam, fazendo-nos reféns de sua poética... Goiás minha cidade/eu sou aquela amorosa/de tuas ruas estreitas, curtas, indecisas/saindo uma das outras./Sou aquela menina feia da ponte da Lapa/sou Aninha/ Sou Cora Coralina/Venho do século passado e trago comigo todas as idades./Despojada,apedrejada/sozinha e perdida nos caminhos incertos da vida fui caminhando,caminhando.../Fiz um nome bonito de doceira, glória maior/E nas pedras rudes de meu berço gravei poemas...(versos de vários poemas) Depois de um almoço tipicamente goiano no Restaurante Ipê, com direito à sobremesa, levaríamos nossos visitantes a conhecer a beleza ímpar dos quadros pintados com areias coloridas da Serra Dourada, arte/criação de nossa internacional Goiandira do Couto.


Veio a decepção: O casarão, que foi de seus pais, hoje a Casa de Goiandira, um verdadeiro palácio da cultura, estava fechado. É lá que ela guarda inúmeros de seus quadros, assim também o atelier construído por ela para abrigar suas obras e receber os turistas. Numa sala em sua casa, onde trabalhava, há para visitação dos turistas 515 potinhos de areia com as cores matizadas da Serra Dourada - o precioso material de sua pintura. Tudo isso, orgulho e riqueza goiana, sempre mantida por ela, mesmo doente e hospitalizada em Goiânia.  Quantas vezes ela abriu mão de seu descanso, atendendo turistas ou amigos mesmo em crise de labirintite?  Informada por familiares, soubemos que somente meados do mês passado (julho) é que o funcionário foi dispensado, estando agora tudo fechado. Que pena!... Nossa visita fica para outra oportunidade. Sabemos que seu estado de saúde é delicado e ela,  com seus noventa e tantos anos de dedicação completa à sua arte, muito já fez, levando o nome de Goiás por todo Brasil e internacionalmente.


Depois de um cafezinho amigo na Chácara Baumann, visitamos o Palácio Conde dos Arcos, o Museu de Arte Sacra e tantos outros pontos turísticos, locais de que muito nos orgulhamos pelo zelo, limpeza,  organização e competência dos funcionários. Despedimos da cidade saboreando os tradicionais sorvetes e picolés de frutas tropicais da Praça do Coreto e o desejo de um breve regresso. Hoje (22,ago), enquanto relia esta crônica para encaminhá-la ao DM, recebo a notícia que Goiandira não mais vive entre nós. Sua alma cansada subiu ao Céu, deixando-nos a riqueza de sua arte única e maravilhosa. Descanse em paz, querida confreira e amiga.
                                                      
Maria Elizabeth Fleury – membro da AFLAG, UBE, ATLECA e ABLAC.


Morre aos 95 anos a artista plástica goiana Goiandira do Couto

Artista Plástica Goiana - Foto de arquivo
(by Walter Alves - O Popular)


A artista plástica goiana Goiandira do Couto morreu de falência múltipla de órgãos, no fim da tarde desta segunda-feira (22), em Goiânia, aos 95 anos. Ela sofreu complicações de um acidente doméstico, no dia 29 de julho, quando fraturou o fêmur. Inventora de uma técnica que a tornou famosa internacionalmente, Goiandira do Couto extraía 551 tonalidades da areia da Serra Dourada para criar telas em que destacava a paisagem da Vila Boa em Goiás.  Professora aposentada e fundadora da Escola de Artes Veiga Valle, a artista plástica vendeu praticamente todas as telas  que produziu, a maior parte para  personalidades como presidentes, governadores e artistas. Goiandira Couto também foi fundadora da Igreja Messiânica na cidade de Catalão (GO).
O sepultamento deve acontecer na cidade de Goiás, na terça-feira (23), em horário a ser definido. Natural de Catalão, Goiandira completaria 96 anos no dia 12 de setembro.

Fonte G1

Maisa Lima - Conto

Na Curva da Maria Bárbara


No começo, todo mundo pensava que não tinha nada. Depois, foi pior: deram-se conta que não tinham nada mesmo. E desgraça das desgraças: orgulhosos. Em suma, uma gente fadada a não sair do lugar.

Aqueles que julgavam ter se livrado do visgo da pasmaceira estavam afundados nele até o pescoço. Se acreditavam melhores que o resto do mundo. E por resto do mundo, entenda-se a beira de serra em que viviam.

O resto não importava. Até porque, eles não existiam para o resto. Era gastar arrogância à toa. Mas, até mesmo onde o nada cruza com lugar nenhum, há aqueles que fazem o povo andar. Zé Esteira era desses.

Olhando pro seu carro estacionado no quintal, a gente só não dizia que estava num desmanche porque era só um. Se não contasse, é claro, com a carreta do carro de boi. Tão abandonada, que se a chuva continuasse era capaz de virar lenha.

O carro do Zé tinha chassi, rodas, volante e, luxo dos luxos, bancos! Quando ia pra cidade, só não usufruía da civilização quem não quisesse. Levava todo mundo. Só que a civilização também usufruía do Zé: bebia até cair os dentes. Mas, nunca matou ninguém.

Até que Daltiva, desgostosa da vida que levava com Aelcio Abacaxi (só o raio dessa fruta crescia no areal que o homem escolheu a dedo da terra que o pai deixou de herança para a prole de 14 filhos), tentou se matar afogada no lamaçal da Curva da Maria Bárbara. Mas não com o Zé. Outro só ia achar que era mais um cupim no chapadão, com um ar engraçado de nortista. Mas o Zé, não.

Ele gosta de conversar, mas gosta mais ainda que o freguês concorde com suas justíssimas palavras. Aliás, quanto mais bêbado, mais justas.

Quando Daltiva sequer lhe respondeu com o habitual – hum!, notou que algo não ia bem. Só demorou cinco quilômetros para se dar conta que, ou o planeta Chupão tinha sugado Daltiva (sorte do Aelcio, mas ele não merecia), ou tinha comprado passagem só de ida para o Vale dos Suicidas, ou, pior de tudo, tinha deixado o Zé falando sozinho. Essa última possibilidade fez com que reagisse. Um homem tão bom não merece esse tratamento! Ainda mais que Daltiva era a única que arriscou de voltar com ele e não gostava que o povo o visse falando sozinho.

Daltiva, que nunca foi apresentada a qualquer lei da física – nome lindo pra uma vaca! – não firmou no banco e foi ver de perto porque o chapadão é terra boa pra soja.

Zé não agüentou a desfeita. Com o ar mais sério do que o de Zumbi quando assumiu o lugar de Gangazumba em Palmares (isso é por minha conta. Zé nunca ouviu falar em nenhum dos dois. Mas é preto e eu, um daqueles que, em vão, tento transformar a pasmaceira em verniz), declarou:

-Sou bão demais, Daltiva. Carona dou pra todo mundo. Mas gosto que me avisa quando vai descer.

Daltiva, digna, apesar da lama que pingava da sobrancelha, voltou para o chassi com rodas. Com o orgulho em frangalhos, mas voltou. O chapadão não era famoso pela animação (os gaúchos ainda não eram praga) e 17 quilômetros são de se respeitar. Ainda mais que até os brincos – ouro puro da Bahia – estavam marrons e ela não queria ser confundida com um tatu-peba fashion.

 Mas ficou mais de mês sem ir pra civilização. O Zé não percebeu, porque, graças a Deus, pinga apaga qualquer desfeita. E o Aelcio, coitado, pensou que era amor.


* Maísa Lima é Jornalista, Editora de Economia do Jornal do Tocantins.

Imagem retirada da Internet: Humortalha

Romério Rômulo - Poema



pontes, ouro preto


as pontes que martelo e que atormento
carregam uma espécie de ungüento
que vila rica deixou em cada delas.

o sujo, o não calado, o renitente
perderam a vida, a mão, a língua, o dente
por discordar do que havia sobre elas.

quantos soberbos sobre as pontes disfarçaram
suas viagens de quem nasceu do ouro
e o ferro em apetite aguçaram.

tiveram, em pindorama, estes senhores
que carregar na consciência, se a tiveram,
o grito amargo das dores que causaram!
                                    (de quantas pontes vive ouro preto?)



In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: Ouro Preto

Lêdo Ivo - Conto


A resposta




Seu nome era Serafim Costa. Mas nome de quem, ou de que? Na cidade pequena , decerto a sua figura deveria ter se cruzado, muitas vezes, com a do menino fardado, de camisa branca e curtas calças azuis extraídas das velhas casimiras paternas. Ele, o comerciante abastado, talvez comendador, não conhecia o garoto. E este jamais poderia ligar o nome à pessoa. Assim, Serafim Costa era apenas um nome — a belíssima sonoridade de um estilhaço de mitologia, uma flor aérea que, em vez de pétalas, possuía sílabas.

Ele morava no Farol, exatamente onde o bonde fazia a última curva. Os muros brancos, que cercavam o quarteirão, semi-escondiam a casa, também branca, além do jardim que aparecia entre as grades, e em cujos canteiros florejavam espessuras e certas musguentas flores amarelas, e um imenso besouro zoava. A casa era um palacete de dois andares, crivado de sacadas e cegas janelas, e que parecia desabitada. Possivelmente essa incorrigível falsária, a Memória, a pintou, sem tir-te nem guar-te, com a sua branca tinta adúltera, substituindo a verdade nativa, feita de alvorentes azulejos pintalgados de azul, por alguma caprichosa arquitetura rococó. De qualquer modo, de outro lado do muro reto, sem dúvida encimado por afiados cacos de garrafas para impedir o salto dos ladrões, a gente via as copas das mangueiras, cajueiros, palmeiras e outras árvores sob as quais alguns cães esperavam, impacientes, que a rotina bocejante do dia se esfarelasse para que eles pudessem latir, na noite raiada de estrelas, como que lembrando a Serafim Costa — que interromperia por meio minuto o seu sono tranqüilo e patriarcal — as suas presenças vigilantes.

— Aqui mora Serafim Costa devia ter-me dito meu pai, num daqueles crepúsculos em que, de bonde, voltávamos para casa; ele com a sua velha pasta que inexplicavelmente não o acompanhou ao túmulo (o que talvez não o fizesse ser de pronto reconhecido no Paraíso), e nós ainda guardando nos ouvidos o bulício vesperal do instante em que, aberta a porta do grupo escolar, as crianças escoavam para a praça e se perdiam nas escurentas ruas tortuosas.

O palacete branco vulgava riqueza, luxo, secreto esplendor. Além das portas fechadas, das presumíveis estatuetas de mármore, do aroma das dálias, do fino palor dos azulejos, das mudas venezianas, havia decerto um universo de opulência, que a nossa fantasia de meninos pobres mal podia imaginar. A tarde transcurecia; o portão fechado validava-se como o brasão de uma existência que, terminados os diálogos inevitáveis de seu ofício de grande comerciante sempre atarefado e vigilante, suspendia qualquer tráfico com as mesquinharias diurnas, igual a um navio que, após todo o baixo ritual da estiva, readquire a sua dignidade perdida sulcando o mar sem amarras.

Era o palácio de Serafim Costa. E o nome, a magia desse nome que ocupou toda a minha infância, e era o preâmbulo mágico das encantações, demorava-se em mim, .solfejando-se no ar eternamente perfumado pelo Oceano. Meu pai, então guarda-livros de um armazém de tecidos, conhecia Serafim Costa, e nos mostrava a sua residência. "Aqui mora Serafim Costa." Não nos nomeava uma forma definida de casa (sobrado, bangalô, palacete); e certo aquela moradia, uma das mais luxuosas da pequena cidade, refugia às denominações irreversíveis. Ignoro se Serafim Costa era alagoano ou um dos muitos imigrantes portugueses que, estabelecidos em Maceió, enriqueceram em tecidos ou em secos e molhados e terminaram comendadores — mas em seu palacete, na exuberância do jardim equatorial, no chão assombrado de árvores enlanguescidas pelo mormaço, havia algo que era a fusão improfundável dos mais faustosos elementos nativos com uma substância remota e avoengueira, como que a reprodução de antiga planta deixada do outro lado do mar e tacitamente reconstruída pela poupança e ambição do imigrante afortunado. Por isso, meu pai dizia aqui, querendo assim significar tudo o que era o império de Serafim Costa: as grades do jardim, os sinuosos canteiros colmeados de folhas e flores, os calangros e insetos, a água espatifada de uma fonte, os familiares que não apareciam às janelas, talvez para não confundir a visão de todos os que, como eu, o imaginavam reinando solitário em sua mansão, sem quinhoar ostensivamente com ninguém o resultado, de sua vida vitoriosa, feita de zelo e siso.

Embora eu não tivesse conhecido Serafim Costa, tornou-se-me familiar aos olhos um dos empregados de seu armazém. Era um velho corcunda, de fiapos brancos na cabeça calva, e devoto. Alguns anos depois, quando já tínhamos deixado de morar no sítio e passáramos a habitar numa rua do centro da cidade, estávamos todos, no sótão, assistindo à passagem de uma procissão que enchia a monotonia da tarde de domingo. Súbito, identifiquei na multidão o corcunda velho e devoto, e exclamei:

— Olhe o Serafim Costa!

A exclamação fez espécie a meu pai, que se virou para mim, surpreendido com a notícia. Seu ar era mais do que de dúvida — decerto eu dissera uma heresia, que reclamava pronta corrigenda ou a aura de uma prova irretocável. Com o dedo, apontei o velho corcunda que, de casimira preta na tarde de sol fugidiço, vencia, na aglomeração, os. paralelepípedos da rua. Meu pai reconheceu o empregado de Serafim Costa e exclamou, de bom rosto:


— Não é o Serafim Costa — e achou engraçado que eu confundisse o empregado humilde e devoto com o poderoso e mitológico patrão.

E assim ele ficou sendo, para mim, sempre e eternamente, um nome, inatingível figura do ar. Muitas vezes, passeando sozinho pelo sítio ou junto ao mar lampejante, eu repetia esse nome, despetalava-o na brisa como se ele fosse um malmequer, juntava de novo as pétalas das sílabas que cantavam mesmo momentaneamente esquartejadas. Serafim Costa! dizia eu bem alto para que os costados dos navios pudessem devolver-me, em forma de eco, essa primeira lição de poesia, essa infindável soletração do absoluto.

Muitos anos depois, desintegrada a infância, e já envolto numa névoa de estrangeiro, voltei à curva do bonde. Era ali que morava Serafim Costa — o portão fechado era sinal de que ele estava lá dentro, movendo-se possivelmente entre frutas maduras, gatos sonolentos e bojudas porcelanas azuis. Trinta anos se tinham passado desde os dias em que o bonde, na volta da escola, nos fazia ver a misteriosa morada, o universo branco e verde estriado de agudas grades negras e manchas róseas. O invisível Serafim Costa já deveria estar morando, e de há muito, em outra alvacenta morada... Mas parei diante do portão cerrado, espiei o jardim silencioso, os vasos de azulejos, as escadarias de mármore, as altas janelas que pareciam sotéias. E chamei: Serafim Costa!

Chamei a quem, a que? E ocorreu o milagre. O nome ficou suspenso no jardim onde se ocultava uma cobra papa-ovo, depois voou pelos ares, como um pássaro; chocou-se contra os costados dos cargueiros que, no destempo hirto, desembarcavam em Maceió os caixotes das mercadorias encomendadas, do outro lado do Oceano, pelo valimento comercial de Serafim Costa; e, metamorfoseado em eco, voltou de novo aos meus ouvidos, já agora na soberba hierarquia de um nome que não precisa mais de figura ou de anedota; e se tornou para sempre algo sonoro e puro, deslumbrante e enxuto.

E, assim, obtive a resposta.


In.  Ficção, nº 06, Rio de Janeiro, junho/1976, pág. 46.
Fonte: Releituras
Imagem retirada da Internet: Lêdo Ivo

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