Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) - Poema




    O meu olhar é nítido como um girassol



    O meu olhar é nítido como um girassol.

    Tenho o costume de andar pelas estradas

    Olhando para a direita e para a esquerda,

    E de vez em quando olhando para trás...

    E o que vejo a cada momento

    É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

    E eu sei dar por isso muito bem...

    Sei ter o pasmo essencial

    Que tem uma criança se, ao nascer,

    Reparasse que nascera deveras...

    Sinto-me nascido a cada momento

    Para a eterna novidade do Mundo...


    Creio no mundo como num malmequer,

    Porque o vejo. Mas não penso nele

    Porque pensar é não compreender...


    O Mundo não se fez para pensarmos nele

    (Pensar é estar doente dos olhos)

    Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...


    Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...

    Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,

    Mas porque a amo, e amo-a por isso

    Porque quem ama nunca sabe o que ama

    Nem sabe por que ama, nem o que é amar...


    Amar é a eterna inocência,

    E a única inocência não pensar...



    In. O Guardador de Rebanhos - Fonte: Insite
    Imagem retirada da Internet: caminhante

Leila Miccolis - Poema


SEREIA, JANAÍNA, IEMANJÁ




Vem meu veleiro navegar-me lendas
que abro oceanos nunca desbravados,
as portas líquidas dos meus reinados,
e armo de pérolas as nossas tendas...

Vê-me a nudez – afasta as alvas rendas,
que encontrarás tesouros afundados;
só que talvez, pra teres tais agrados,
ao mar pra sempre tua vida prendas.

Se mesmo assim o novo lar não temes,
se não recuas, e se ainda gemes,
por meu amor, sedento de paixão,

cheia de luzes, colorida amante,
eu verde, azul, e em brilhos deslumbrantes,
refratarei-me em tuas redes-mãos.



In. Jayrus

Imagem retirada da Internet: sereia

Leila Miccolis - Poema

Confissão




Dizem que o amor é cego,
não nego,
por isso te abro os olhos:
não tenho bens nem alqueires,
eu não sou flor que se cheire,
nem tão boa cozinheira,
(bem capaz que ainda me piches
por só comer sanduíches),
minha poesia é fuleira,
tenho idéias de jerico,
um cio meio impudico
como as cadelas e as gatas,
às vezes me torno chata
por me opor ao que comtemplo,
sei que sou péssimo exemplo,
por pouca coisa me grilo,
talvez por mim percas quilos,
eu não sei se valho a pena,
iguais a mim, há centenas,
desejo te ser sincera.
Mas no fundo o amor espera
que grudes qual carrapicho:
são tão grandes meu rabicho
e minha paixão por ti,
que não estão no gibi...
Ao te ver, viro pamonha,
sem ação, e sem vergonha
o meu ser inteiro goza.
Por isso, pra encurtar prosa,
do teu corpo, cada poro
eu adoro adoro adoro...



In. Jayrus

Imagem retirada da Internet:

Leila Miccolis - Poema


A Seco




Tem coisas que a gente só diz de porre,
se não o outro corre;
mas passada a bebedeira,
a gente acha que fez besteira,
não devia ter falado,
que se expôs adoidado,
à toa e foi tolice.
Finge-se então que se esquece o que disse,
culpa-se a carência, a demência, a embriaguez,
responsáveis por tamanha estupidez.
E é aceitando este estranho cabedal
que quando se volta ao "estado normal",
cada vez mais sós, na defensiva,
corroídos morremos de cirrose afetiva.




In. Jayrus

Imagem retirada da Internet: bebida

Luiz de Aquino - Poema


















RIO QUENTE E EU




Na minha terra existe um rio.

Pequeno curso, pequeno caudal

que deságua límpido

nas turvas águas do Piracanjuba.


Corre alegre, borbulhante,

mantendo constante

a água clara

a trinta e sete graus.


Persistente, meu pequeno Rio Quente!

Foi ele a imagem primeira

do que chamei de rio.


Mas não é ele, ainda,

um rio de verdade. É ribeirão;

e na cidade (pouco mais que vila),

o Córrego de Caldas,

miúdo e manso: hospitaleiro

para o banho, farto de lambaris

de ingênuas pescarias.

Rio mesmo

é o Corumbá, violento e forte.

Vem do norte

e reforça o Paranaíba,

que nasce em Minas.


Rios são assim, feito a vida. Tímidos

primeiro, crescentes depois.

E viram grandes

quando grandes somos também

tal como grande nos parece o mundo.


Saudade de ser córrego:

hospitaleiro e manso.


In. Luiz de Miranda

Foto by Ricardo Borges Gonçalves

Luiz de Aquino - Poema
















A CASA NASCE DAS ÁGUAS





A casa de Aninha, a casa grande

na beira da ponte,

dá mão ao tempo e espera outro século.


Mas a casa está só.

Não há mais quem lhe varra o chão

e espane pó das histórias.


O tacho de cobre não coze mais doces:

Aninha descansa em São Miguel.

Não mais as histórias dos becos nem livros de cordel.


Doce Ana doutros anos,

força e voz, tempo e tempero.


Foi-se Ana, a cordeleira, cordilheira feito humana,

canto e coro, coralina, voz menina, canto forte

cristalina voz poesia.


A casa nasce das águas

à beira da ponte, à beira do tempo.

A casa escura das águas.

Rio Vermelho resmunga.

Rio velho, triste...

Rabugento, o Rio Vermelho.



In. SARAU. Goiânia: Edição do autor, 2003. p.152.

Foto by Zemaria: Casa de Cora

Gilberto Mendonça Teles



História



Toda história tem seu texto
tem seu pretexto e pronúncia.
Tem seu remorso, seu sexto
sentido de arte e denúncia.



Tem um sujeito que a escolhe
que se encolhe e se confunde:
um lugar que sempre a tolhe
qui tollis peccata mundi.



Tem sua forma em processo,
tem seu recesso e cansaço,
e tem seu topo de excesso
no ponto extremo do escasso.


Tem sua língua felpuda,
a voz aguda e afetada.
R tem a essência que muda
e permanece, calada.



Toda história tem seu preço,
tem seu começo e seu dito.
É só virar pelo avesso,
ler o que está subscrito.


Imagem retirada da Internet - By Carlos Alexandre

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