Cleberton Santos - Poema


AMOR


O vestido preto
está dançando na esquina.
O amor é uma festa
mesmo em dia de luto




In. Lucidez Silenciosa. Salvador: EPP, 2005, p.61
Imagem retirada da Internet: Luto

Antônio Gonçalves Dias - Poema

Se se morre de amor!


Meere und Berge und Horizonte zwischen
den Liebenden - aber die Seelen versetzen
sích aus dem staubigen Kerker und treffen
sich im Paradiese der Liebe.
Schiller, Die Rüuber



Se se morre de amor! — Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre os festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n'alma,
Que embelezada e solta em tal ambiente
No que ouve, e no que vê prazer alcança!


Simpáticas feições, cintura breve,
Graciosa postura, porte airoso,
Uma fita, uma flor entre os cabelos,
Um quê mal definido, acaso podem
Num engano d'amor arrebatar-nos.
Mas isso amor não é; isso é delírio,
Devaneio, ilusão, que se esvaece
Ao som final da orquestra, ao derradeiro


Clarão, que as luzes no morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,
D'amor igual ninguém sucumbe à perda.
Amor é vida; é ter constantemente
Alma, sentidos, coração — abertos
Ao grande, ao belo; é ser capaz d'extremos,
D'altas virtudes, té capaz de crimes!
Compr'ender o infinito, a imensidade,
E a natureza e Deus; gostar dos campos,
D'aves, flores, murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa;
E à branda festa, ao riso da nossa alma
Fontes de pranto intercalar sem custo;
Conhecer o prazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o misérrimo dos entes;
Isso é amor, e desse amor se morre!


Amar, e não saber, não ter coragem
Para dizer que amor que em nós sentimos;
Temer qu'olhos profanos nos devassem
O templo, onde a melhor porção da vida
Se concentra; onde avaros recatamos
Essa fonte de amor, esses tesouros
Inesgotáveis, d'ilusões floridas;
Sentir, sem que se veja, a quem se adora,
Compr'ender, sem lhe ouvir, seus pensamentos,
Segui-la, sem poder fitar seus olhos,
Amá-la, sem ousar dizer que amamos,
E, temendo roçar os seus vestidos,
Arder por afogá-la em mil abraços:
Isso é amor, e desse amor se morre!


Se tal paixão porém enfim transborda,
Se tem na terra o galardão devido
Em recíproco afeto; e unidas, uma,
Dois seres, duas vidas se procuram,
Entendem-se, confundem-se e penetram
Juntas — em puro céu d'êxtases puros:
Se logo a mão do fado as torna estranhas,
Se os duplica e separa, quando unidos
A mesma vida circulava em ambos;


Que será do que fica, e do que longe
Serve às borrascas de ludíbrio e escárnio?
Pode o raio num píncaro caindo,
Torná-lo dois, e o mar correr entre ambos;
Pode rachar o tronco levantado
E dois cimos depois verem-se erguidos,
Sinais mostrando da aliança antiga;
Dois corações porém, que juntos batem,
Que juntos vivem, — se os separam, morrem;
Ou se entre o próprio estrago inda vegetam,
Se aparência de vida, em mal, conservam,
Ânsias cruas resumem do proscrito,
Que busca achar no berço a sepultura!


Esse, que sobrevive à própria ruína,
Ao seu viver do coração, — às gratas
Ilusões, quando em leito solitário,
Entre as sombras da noite, em larga insônia,
Devaneando, a futurar venturas,
Mostra-se e brinca a apetecida imagem;
Esse, que à dor tamanha não sucumbe,
Inveja a quem na sepultura encontra
Dos males seus o desejado termo!


Imagem retirada da Internet: amor

Carlos Moisés Soglia de Melo - Poema


GALOPE


Minhas mãos feitas de garças
agarram-se à saia do Universo:
cavaleiro, galopo estrelas




Ontologia do poema, segundo José Inácio Vieira de Melo:

Era uma vez, Moisés, Gabriel e eu galopando dentro da tarde – meus filhos e eu entrando na boca da noite. Passamos num açude para dar água aos nossos cavalos. E havia uma árvore cheia de garças, e as estrelas começavam a brilhar no firmamento. Foi quando Moisés trouxe para nós o seu poema “Galope”. E seguimos galopando, noite adentro.



Carlos Moisés Soglia de Melo, 10 anos, é filho do poeta/amigo José Inácio Vieira de Melo.

Imagem retirada da Internet: cavalo

Carlos Moisés Soglia de Melo - Poema


SINFONIA




É cheio de estrelas
o silêncio do maestro.
Dança a lua cheia.



Ontologia do poema, segundo o Poeta José Inácio Vieira de Melo, pai de Carlos Moisés:


Um dia ouvíamos a “Sinfonia Coral” (Nona Sinfonia) de Beethoven, sentados à beira de uma fogueira, lá na fazenda Pedra só e, de repente, quando os cantores líricos cantavam a “Ode à Alegria” de Schiller, Moisés (10 anos)* trouxe do âmago do seu ser o poema “Sinfonia”. Não sabia ele que havia feito um hai-kai.

*Carlos Moisés fez 10 anos, ontem,26. Parabéns!

Imagem retirada da Internet: Nona Sinfonia






Antônio Gonçalves Dias - Poema


Ainda uma vez — Adeus


I


Enfim te vejo! — enfim posso,
Curvado a teus pés, dizer-te,
Que não cessei de querer-te,
Pesar de quanto sofri.
Muito penei! Cruas ânsias,
Dos teus olhos afastado,
Houveram-me acabrunhado
A não lembrar-me de ti!



II


Dum mundo a outro impelido,
Derramei os meus lamentos
Nas surdas asas dos ventos,
Do mar na crespa cerviz!
Baldão, ludíbrio da sorte
Em terra estranha, entre gente,
Que alheios males não sente,
Nem se condói do infeliz!



III


Louco, aflito, a saciar-me
D'agravar minha ferida,
Tomou-me tédio da vida,
Passos da morte senti;
Mas quase no passo extremo,
No último arcar da esp'rança,
Tu me vieste à lembrança:
Quis viver mais e vivi!



IV


Vivi; pois Deus me guardava
Para este lugar e hora!
Depois de tanto, senhora,
Ver-te e falar-te outra vez;
Rever-me em teu rosto amigo,
Pensar em quanto hei perdido,
E este pranto dolorido
Deixar correr a teus pés.



V


Mas que tens? Não me conheces?
De mim afastas teu rosto?
Pois tanto pôde o desgosto
Transformar o rosto meu?
Sei a aflição quanto pode,
Sei quanto ela desfigura,
E eu não vivi na ventura...
Olha-me bem, que sou eu!



VI


Nenhuma voz me diriges!...
Julgas-te acaso ofendida?
Deste-me amor, e a vida
Que me darias — bem sei;
Mas lembrem-te aqueles feros
Corações, que se meteram
Entre nós; e se venceram,
Mal sabes quanto lutei!



VII


Oh! se lutei! . . . mas devera
Expor-te em pública praça,
Como um alvo à populaça,
Um alvo aos dictérios seus!
Devera, podia acaso
Tal sacrifício aceitar-te
Para no cabo pagar-te,
Meus dias unindo aos teus?



VIII


Devera, sim; mas pensava,
Que de mim t'esquecerias,
Que, sem mim, alegres dias
T'esperavam; e em favor
De minhas preces, contava
Que o bom Deus me aceitaria
O meu quinhão de alegria
Pelo teu, quinhão de dor!



IX


Que me enganei, ora o vejo;
Nadam-te os olhos em pranto,
Arfa-te o peito, e no entanto
Nem me podes encarar;
Erro foi, mas não foi crime,
Não te esqueci, eu to juro:
Sacrifiquei meu futuro,
Vida e glória por te amar!



X


Tudo, tudo; e na miséria
Dum martírio prolongado,
Lento, cruel, disfarçado,
Que eu nem a ti confiei;
"Ela é feliz (me dizia)
"Seu descanso é obra minha."
Negou-me a sorte mesquinha. . .
Perdoa, que me enganei!



XI


Tantos encantos me tinham,
Tanta ilusão me afagava
De noite, quando acordava,
De dia em sonhos talvez!
Tudo isso agora onde pára?
Onde a ilusão dos meus sonhos?
Tantos projetos risonhos,
Tudo esse engano desfez!



XII


Enganei-me!... — Horrendo caos
Nessas palavras se encerra,
Quando do engano, quem erra.
Não pode voltar atrás!
Amarga irrisão! reflete:
Quando eu gozar-te pudera,
Mártir quis ser, cuidei qu'era...
E um louco fui, nada mais!



XIII


Louco, julguei adornar-me
Com palmas d'alta virtude!
Que tinha eu bronco e rude
Co que se chama ideal?
O meu eras tu, não outro;
Stava em deixar minha vida
Correr por ti conduzida,
Pura, na ausência do mal.



XIV


Pensar eu que o teu destino
Ligado ao meu, outro fora,
Pensar que te vejo agora,
Por culpa minha, infeliz;
Pensar que a tua ventura
Deus ab eterno a fizera,
No meu caminho a pusera...
E eu! eu fui que a não quis!



XV


És doutro agora, e pr'a sempre!
Eu a mísero desterro
Volto, chorando o meu erro,
Quase descrendo dos céus!
Dói-te de mim, pois me encontras
Em tanta miséria posto,
Que a expressão deste desgosto
Será um crime ante Deus!



XVI


Dói-te de mim, que t'imploro
Perdão, a teus pés curvado;
Perdão!... de não ter ousado
Viver contente e feliz!
Perdão da minha miséria,
Da dor que me rala o peito,
E se do mal que te hei feito,
Também do mal que me fiz!



XVII


Adeus qu'eu parto, senhora;
Negou-me o fado inimigo
Passar a vida contigo,
Ter sepultura entre os meus;
Negou-me nesta hora extrema,
Por extrema despedida,
Ouvir-te a voz comovida
Soluçar um breve Adeus!



XVIII


Lerás porém algum dia
Meus versos d'alma arrancados,
D'amargo pranto banhados,
Com sangue escritos; — e então
Confio que te comovas,
Que a minha dor te apiade
Que chores, não de saudade,
Nem de amor, — de compaixão,


Imagem retirada da Internet: pássaro em despedida

Deu no Estadão - Harold Bloom e sua seleção de cem poemas

Harold Bloom discute sua seleção de cem poemas

Em entrevista, Bloom fala sobre sua seleção de cem derradeiros poemas de autores de língua inglesa

23 de outubro de 2010 | 7h 00
Lúcia Guimarães - O Estado de S. Paulo

Ele nunca decepciona seus interlocutores. Passional e provocador. Professoral, sempre. Num momento pede socorro à mulher porque derrubou o aparelho de audição ("Está tudo desmoronando por aqui!") e em seguida elogia, sedutor, o que chama de voz maviosa da repórter ao telefone.

Divulgação/Yale University
Divulgação/Yale University
Harold Bloom: 'o propósito de ensinar é estender a bênção da vida prolongada', diz o professor

Toda traquinagem será tolerada.

Harold Bloom acaba de completar 80 anos. No final de 2009, sua saúde o afastou por meses do convívio com os estudantes da Universidade de Yale, onde ocupa a mais famosa cadeira de crítica literária do país. Se você faz 80 anos e passou a vida lendo o melhor da poesia, então, "começa a saber que, diante do morrer e da morte, a imaginação é, ao mesmo tempo, nada e tudo".

Assim Bloom explica seu desejo de reunir cem poemas em Till I End My Song - A Gathering of Last Poems (Até Eu Terminar Minha Canção - Uma Reunião de Últimos Poemas). O título cita o verso repetido em Prothalamion, de Edmund Spenser, o poeta elisabetano, que abre a coletânea. O fim que une os poemas não é necessariamente o fim temporal.

O livro cobre 450 anos de poesia, de William Shakespeare a James Merrill, de Robert Frost a Robert Lowell e termina com o poema The Veiled Suite, de Agha Shahid Ali, indiano de Kashmir morto em Massachusetts, os 52 anos, em 2001 e incluído numa coleção póstuma publicada em 2009. Bloom considera os versos de The Veiled Suite entre os mais obsessivos que trataram da morte.

Apesar do tema e de sua avançada idade, Bloom está longe de se deixar abater pelo assunto. Comemora suas cinco décadas na academia - "Dei aula para cerca de 25 mil estudantes, o bastante para lotar uma cidade" - e conclui: "O propósito de ensinar é estender a bênção da vida prolongada."

Quando telefono para sua casa em New Haven, Connecticut, o professor contorna a primeira pergunta e já sai palestrando sobre a nova obra. "Sim, há um tom um pouco sombrio na obra que inclui poemas de amigos queridos, como Robert Penn Warren, morto em 1989, e Anthony Hecht, morto em 2004. Ainda sofro o luto por eles." E segue, entusiasmado com Till I End My Song. Acompanhe.

Qual é a distinção que o senhor faz entre a finitude da morte e a finitude que encontrou em certos poemas?

Veja que não é uma coleção de poemas sobre a morte e sim uma coleção de poemas que lidam com a incerteza. Todos nós queremos e não queremos saber quanto tempo temos de vida, e esta é a incerteza. Reuni três tipos de "últimos" poemas. Os poemas cronologicamente finais são minoria. Há poemas que marcam o fim de uma carreira. E queria me concentrar também no que considero o auge - o final - de um processo de imaginação.

Por que o senhor diz no livro que estava interessado em conhecimento e não na piedade, no pathos ligado à morte?

Sim, por que dizemos isso? Queria deixar claro que o fim é uma parte importante do conhecimento. Montaigne, o ensaísta maior, nos dá o melhor conselho: "Não percam tempo aprendendo a morrer. Quando chegar a hora, vamos saber morrer direito."

O senhor destaca que os poemas se colocam contra a morte e não contra o morrer.

Sim, a morte é uma ideia. O ato de morrer é diferente. É algo que todos vamos experimentar. Mas a ideia é complicada. Como a ideia da morte não é um modo de existência, a poesia pode nos esclarecer sobre ela.

Por que o senhor considera importante desfazer a mitologia da morte?

Falo da minha própria metafísica. Três poetas que sempre celebrei, Percy Shelley, Walt Whitman e Wallace Stevens, são românticos lucrecianos. Eles seguem a metafísica epicurista, em que a morte é exposta como um filamento da imaginação, um bicho-papão que as pessoas impõem sobre si mesmas. O W.H. Auden e eu discutíamos sobre isso. Ele nem considerava aqueles três poetas, tinha um temperamento forte.

O senhor concorda que o medo da morte é o oposto do gosto por viver?

Com certeza. Não existe essa coisa chamada morte. Shakespeare é o mestre em tratar disso. Como nas palavras finais de Hamlet, "o resto é silêncio".

Na introdução, o senhor manifesta uma esperança de renascimento na Era de Obama, "depois de anos no mato" ("In the bush", trocadilho com o nome do último presidente.)

Eu nunca quero falar em política. Mas confesso que fui um pouco otimista e me arrependo. Eu não imaginava o que ia acontecer. Por favor, pode me citar: os EUA ficaram completamente malucos. Talvez possamos nos recuperar depois que Obama for reeleito. No dia 2, vamos ter eleições e ninguém com acesso à mídia tem a honestidade ou a decência de dizer a verdade. O Tea Party é o nosso movimento fascista. Nem adianta falar em "neo", como neonazistas. É fascismo mesmo. Vários candidatos deles vão se eleger e os democratas vão perder a maioria entre os deputados. Haverá uma total paralisia legislativa. Eles vão instalar comitês de investigação. Se puderem, vão tentar o impeachment de Obama. Os próximos dois anos serão assim. Depois, tenho confiança que aquela mulher magnífica vai ser candidata a presidente e perder. Sarah Palin (Bloom parece estar na sala de aula), uma peça bem acabada de fascismo populista.

Till I End My Song - A Gathering Of Last Poems

Organizador: Harold Bloom

Editora: Harper Collins

(Importado; 379 págs., R$ 56,73)

Brasigóis Felício Brasigóis Felício - Poeta

Um poeta incomum


Helvécio de Azevedo Goulart, ou simplesmente Helvécio Goulart, como assinava seus textos literários: eis um poeta marcado pela singularidade de uma linguagem que, sendo especialmente sua, é comunicável em sua universalidade, mesmo remetendo o leitor sensível a uma atmosfera lírica incomum, muito longe do trivial. Foi mantendo-se sempre igual a si mesmo, que este mineiro de Itajubá construiu uma história literária em terras goianas, pontificando como dos maiores poetas brasileiros escrevendo em nosso rincão.

Seu currículo literário é vasto, expressivo. Mas foi ele também um homem público de destaque. Ocupou cargos públicos de grande responsabilidade, e em todos demonstrou grande valor e dignidade. Foi Ouvidor Geral do Estado de Goiás, atuou junto ao tribunal de Contas do Estado, Foi chefe do gabinete civil do Governo Leonino Caiado e da gestão de Índio Artiaga, à frente da Prefeitura de Goiânia.

Homem culto, dotado de refinada sensibilidade estética, ao poeta de A janela azul horrorizava toda e qualquer espécie de vulgaridade ou concessão ao mau gosto. Sua poesia tem apreciadores fiéis, cultivadores de sua imagética afeita aos devaneios descritos por Gaston Bachelard. A atmosfera de seus poemas, de um acento marcadamente surrealista, conservou-se a mesma, desde seu livro de estréia, até sua última publicação em poesia. Exemplo de seu lirismo aberto, aparentemente fácil, mas recheado de imagens de grande força metafórica: “Só os que amam compreendem/ só os que amam/loura fonte da vida/Eles se deitam no deserto estendido no chão para dormir/deserto de grandes dunas/do peito dos amantes das gargalhadas/ das lágrimas/ dos telhados amarelos da noite/do olho dos pássaros ocultos nos verdes beirais do sono/só os que amam.../”.

Em nossos encontros na academia, eu sempre lhe dizia que, quando minha atmosfera mental necessitava, para alimentar-se do poético, de beber da fonte de uma poesia pura, voltava a ler os seus livros. E volto a dizê-lo. Pois só se pode dizer que um fazedor de versos é grande poeta, da classe dos verdadeiros vates, quando outros poetas se inspiram em seus poemas. Poema que não inspira outro poema é um fruto peco, falhado, maduro á força – não tem o potencial criador e criativo de grande obra de arte.

Vejamos os versos de um de seus poemas: “Toco as romãs/ com as mãos de meu filho/o mundo se revela/enquanto as janelas se fecham/”. Em seu livro Poemas reunidos, da coleção Vertentes (Editora da UFG) podemos ler esta beleza de composição: “Fica onde estás/com o teu silêncio e o meu/a estreita ponte de palavras/”. Leiamos mais de seu lirismo encantador: “Cada um gasta seu tempo/em ciladas temerárias/como punhais de ouro/e gestos de silêncio/”. Quer maior verdade dita com tamanha beleza? Pois é sabido que a pátina dos dias lança muitos anzóis à passagem dos navegantes humanos – e é preciso lucidez e temperança, para não sucumbirmos ao fascínio dos abismos que o cotidiano lança aos nossos sentidos.

Em outro poema o poeta nos conclama: “Observa os objetos:/de todos eles/emanam respostas do efêmero/(...) Expressam-se todos em silêncio/a lembrança do tempo/que não cessa de rodar/suas pernas de mármore/e de ver a morte/através de cada coisa/com grandes olhos de veneno/e de fogo/invisíveis, abertos para sempre/”.

Helvécio Goulart é autor de uma poesia sensível, mesmo tendo vivido em um tempo anestesiado para a sensibilidade em relação às coisas que de fato importam na vida. Drummond o disse: “As coisas/que tristes são as coisas/consideradas sem ênfase/”. Pois que mesmo a poesia da vida em todas as coisas e em todos os momentos, é preciso ter olhos de ver, e ouvidos de escutar a canção da infinita, a vibrar em tudo o que é efêmero, no na pele das coisas e nos rios do devir.

Embora assumindo-se como poeta de inspiração surrealista, sua poesia não se assemelha à dos corifeus desta vertente estética: é toda dele. Helvécio não foi caudatário nem diluiu ninguém. Só um poeta original e autêntico, enquanto criador, publicaria um livro com o título A janela azul – pois assim ele inverte a direção comum do olhar, que vai da janela para a paisagem, e não o contrário. Outra mostra de sua dicção particularíssima: “Os cavalos sabem a solidão da noite/e talvez nem escutem/o ruído escuro que fazem/no silêncio incomunicável à solidão dos homens/”.

Em texto publicado no DM revista, em setembro de 1977, o poeta Gabriel Nascente assim se expressou, sobre a obra poética deste autor: “Falo de uma poesia que tem idoneidade estética, equilíbrio temático, elegância imagética, esmero, acuidade artesanal, arte, imaginação e fulgor. Sobretudo bom gosto, requintada, jorrante”. Da Janela azul à Memória das águas, um rio de imagens, de um poeta que propugnava pela aristocracia do espírito. Com a palavra o poeta que nos deixou enquanto criatura física, mas que deixou como legado uma riqueza poética que será mais e mais admirada, quanto mais tempo se passar sobre os mortos e os vivos:

“Sobre a mesa o aroma dos pinheiros ficava repousado/nela depositavam-se coisas/vinhos frutas pratos/ as sementes do vento/os olhos acesos da vigília./A hora armava espaços na mesa”.


Brasigóis Felício é Poeta e membro da Academia Goiana de Letras


Imagem retirada da Internet: barco

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