Trânsito


Francisco Perna Filho














Noite,

os carros disputam a volta,

os homens refletem o trânsito:

caos, crítica, crime.

Náufrago,

choro, o tempo atropela o desejo,

almas depositada.

Não há reação...

nos esguichos de vida

o corpo guarda o guarda.

Não há apito,

não há guincho.

De que adianta a direção?

no espaço de todos

a ausência de muitos.




In.Refeição.Goiânia:Kelps, 2001, p. 73

SAGRADA CEIA


Francisco Perna Filho

















A imagem,

carcomida,

age,

na ilusão da mesa,

na solidão do prato,

comportando olhos

peregrinos

e santos.

A imagem

da amanhecida ceia

ainda traz em si

uma serena alma

amarelecida em prantos.

A imagem,

que carcomida age

colhendo pratos,

revisa a fome

de santos e peregrinos.



In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p. 105.

Imagem: Pablo Picasso, Pintor e Escultor Espanhol (Cubismo), 1881-1973. Girl Before a Mirror [Femme au miroir],1932 - (Museum of Modern Art, New York)

GOIÂNIA


Para Celina Manso










Francisco Perna Filho

Goiânia,
ouço o teu grito,
como num eco, repetidas vezes,
nesse corredor vazio da Avenida Anhanguera,
nas mortes irrelevantes da Rua 90,
nos banheiros pobres da periferia
encardidos de amor barato,
de retalhos e esperanças,
cheirando a naftalina e eucalipto.
Eu contabilizo a tua dor
Nos barracões de lona preta,
Nas casas sem porta,
E nas goteiras da tua ilusão.
Eu vejo o olhar iluminado do césio 137
passeando num velho Fiat
pelas ruas esburacadas do nosso desencontro e,
deslumbrado, contemplando a natureza morta
nas tuas curvas e viadutos.
Eu choro o teu abandono,
o teu desprezo,
a tua impotência,
nos olhos paralisados dos meninos de rua,
tão vermelhos quanto os semáforos da Avenida Mutirão,
e mastigados pela cola que os consome.
Eu sofro com os teus vagidos
nas obscuras celas dos teus presídios e manicômios,
e na pálida alegria das tuas garotas de programa,
ao se sentirem importantes nas páginas dos classificados,
postadas como estampas de alguma correspondência barata.
Vejo-a daqui de cima, do Morro do Além,
e a fumaça que sobe dos teus prédios é da cor da alma dos teus algozes.
Vejo os teus mortos e desabrigados,
desiludidos e aviltados,
chorosos e maledicentes ao se virem enxotados de suas ilusões.
Goiânia,
Talvez o meu canto, de natureza triste,
de escombros e revoltas,
Pareça uma ofensa, mas não.
O teu lado belo, da Art Déco, todos conhecem.
As tuas praças floridas,
Tuas avenidas,
Os bairros nobres e condomínios fechados,
Já não são novidades.
Os teus hospitais, centros de excelência,
Tuas catedrais,
Teus palácios,
Aeroporto,
Rodoviária e shoppings.
Tudo isso nos enche de orgulho,
Mas não podemos quedar-nos diante do feio,
Da corrupção,
Do desmantelo.
Goiânia,
A tua história é canto de toda gente,
De todos os cantos,
De todos os povos,
Que aqui chegaram,
Vindos de outras terras,
Com olhares vários,
Com sonhos, costumes e tradições,
Deixando para trás o berço,
A família e o olhar,
Porque foste a eleita e,
Por ser assim, é que te queremos mais amada,
Menos amarga,
Porque fazes parte do mundo,
Porque trazes uma parte e uma fala de cada povo,
E em ti estão as feições de uma sociedade cosmopolita.




Foto by Francisco Perna Filho

POEMA HOMENAGEM



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Hoje cedo, tive a grata satisfação de receber esta homenagem do meu dileto amigo/irmão Sinésio de Oliveira, poeta, jornalista e fotógrafo.




Foto by Sinésio DeOliveira

New York



Francisco Perna Filho












O pássaro

vê a cidade

Lentamente/ letalmente

Mergulha.

O pássaro

É de metal

E só percebe o próprio vôo,

Desconsiderando as cores

E os sonhos que carrega.

O pássaro vê

Mas não ouve.

A cidade ouve

Mas não vê.

A vida imita a arte:

O pássaro explode

Em chamas,

A cidade

Chora escombros.




In.Refeição. Goiânia: Kelps, 2001.

TRANSFORMAÇÃO


Francisco Perna Filho












Peixe na linha,

rima de pescador.

Encontro de águas e arco-íris.

Rio quebrado nas voltas dos olhos,

no piscar dos barcos,

na manga de chuva.

Perpetuado no mormaço da existência.

Os olhos observam o ritmo:

na rima quebrada do peixe fugido,

na desalegria de morte escapada,

na deselegância de mesa-objeto, sem pão.

O rio continua

no riso pálido do pescador extático,

no hiato das culturas,

na incontinência dos jovens poetas.

Linha, água.

Peixe, anzol.

Pescador.



In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.37.

AUTOBIOGRAFIA



Francisco Perna Filho


Nasci,

tomei conhecimento do mundo

e de mim.

Além dos outros,

somente eu:

UM.

Um a contabilizar os dias,

os goles e os livros,

a jurar amores

às cartomantes.

A correr sem medo,

sem dinheiro e sem rumo,

espantava a velhice escovando as horas.

Quando cresci,

fui jogado no mundo,

bati com a cabeça na vaidade alheia,

conheci mulheres

e espelhos,

e descobri-me sobrevivente

ao brindar com o inimigo.

Acumulei perdas

e desilusões.

Talvez, por ter nascido bem mais tarde,

não me calaram a voz.

Chorei.

Persegui amores,

como os cães do interior

perseguem carros:

uma luta vã.

Sobrevivi,

tive bem mais sorte

do que o Latim.

Historicamente me fizera,

na repetição dos dias

e dos filhos,

descobri o amor.



Foto by Tainá Corrêa

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