PANDEMIA


Francisco Perna Filho










Meu gato Pan,

de noite,

Mia.

Com sede,

Mia.

Com sono,

Mia.

Pan, de noite,

Mia.

Pan, de dia,

Mia.

Mia é a sua mãe.

Todos chamam-no

de Pan de MIA [PANDEMIA].



Foto by Francisco Perna Filho - Gato Chico.

Palavras de um morto










Francisco Perna Filho



O que seria a loucura para vós?
um homem voltado ao vazio,
nas ruas grávidas de gente?
meu coração parte-se.
E a mudez que o estampido rompe,
não desfaz minha fé nos homens,
nas palavras.
Tivésseis carregado vossas armas de boas intenções,
por certo, o medo não rondaria nossos caminhos.
Não vos acuso pela loucura do mundo,
mas não posso admitir
que façais tombar a esperança
de campos floridos,
de crianças correndo brilhatemente pelos bosques,
de janelas abertas prenhes de um novo dia.
Há um grito em cada verso meu,
grito abafado, mas sereno.
Um grito continental,
de clamor e piedade pela humanidade.
De que artes & manhas são feitas as guerras,
irmãos meus?
talvez da racionalidade humana,
porquanto loucos não declinam maldades,
apenas perseguem vazios.




In.Refeição. Goiânia:Kelps, 2001, p.89.

Imagem: http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=8797139806311672068

Espelhado de céu muito sereno














Por Francisco Perna Filho





Depois de morar em São Luis do Maranhão, Cuiabá, Palmas, Goiânia e Fortaleza, Jádson Barros Neves voltou à sua pequena cidade, Guaraí-TO, para uma jornada de intensas leituras e escritas.Leitor de William Cuthbert Faulkner, estudioso contumaz das nossas Letras, traz na alma, um tanto quanto inquieta, os causos, lendas e mitos da Região Norte, principalmente do sul do Pará, onde trabalhou como vendedor de secos e molhados, juntamente com seu pai, já falecido.

Jádson, ao longo dos seus quarenta e dois anos de existência, vem construindo um trabalho de fôlego na narrativa contemporânea brasileira, mais particularmente na categoria conto. Detentor de diversos prêmios literários, tanto no Brasil, como no exterior, valendo destacar o Concurso Guimarães Rosa/Radio France Internationale.

Enquanto o primeiro livro não chega (ainda é para este ano) Jádson vai se firmando como escritor, conquistando novos leitores e novas premiações, como recentemente o fez, nos 40 anos da UNICAMP, quando teve o seu conto “O Funil” incluído no livro “CONTOS – UNICAMP ano 40” (Editora da Unicamp,2007).

Ambientado num vilarejo qualquer, às margens de um rio qualquer, da memória do autor, o conto nos fala de companheirismo e perdas. Conta a história de Suzana, viúva de Orlando, e a do seu cunhado, José, na incansável busca para encontrar o irmão que fora tragado pelo rio quando nadava de volta para canoa, após recuperar a sua vara de pesca que caíra na água.

Narrada em terceira pessoa, intercalada por idas e vindas, irrompendo, às vezes, o discurso direto e o discurso indireto livre. O tempo narrado compreende quatro dias na vida dos personagens, desde a Sexta à tarde, quando Orlando caiu no rio, o Sábado e Domingo de buscas, até Segunda feira, quando o corpo foi encontrado.

Já de início, pode-se ver a força narrativa de Jádson, as belas imagens com que trabalha, consubstanciadas pela força lírica do seu texto. Como se pode conferir neste trecho:

“José havia remado a tarde inteira, por mais de dez quilômetros, rio abaixo, e também havia procurado ao longo do delta, nos baixios e nos remansos e agora estava exausto. Subia a ladeira que dava no vilarejo, onde uma lua gorda, amarela, nascia atrás da colina da igreja. Quando passava, as pessoas olhavam-no em silêncio, e José as cumprimentava e baixava a cabeça e as pessoas também baixavam a cabeça. Era um coro só, o coro do silêncio. José vinha adoecido daquele crepúsculo rápido e sangrento, daquele fim de inverno chuvoso, que ainda repercutia no horizonte em forma de relâmpagos esparsos.(...)”.

Com assomada capacidade perceptiva Jádson Barros Neves consegue, pela plasticidade de suas imagens, compor a atmosfera propícia para o fato narrado, como quando descreve a velha casa onde moram José e Suzana e, outrora, Orlando:

“A casa onde ela morava era velha, pintada de um amarelo corrompido pela ação das intempéries e descascada pelo sol. Esquecida, quase abandonada há anos, suas duas portas, suas três janelas fechadas, com fendas na madeira, guardando o silêncio e a poeira de muito tempo de esquecimento”.

Assim como a descrição encimada, muitos outros belos trechos são marcadamente inesquecíveis, como o que segue:

“Ela concordou mais uma vez com a cabeça e José foi fechando os olhos lentamente, contemplando a imensa lua amarela que sangrava perto da janela e lembrando do quanto era bonita a chuva no delta. Vira-a à tarde, uma cortina escura, que cavalgou escurecendo o horizonte”.

Percebe-se aqui, pelas passagens lidas e superficialmente analisadas, o pleno domínio da narrativa curta por Jádson Barros, a primazia com que tece as tensões nas suas histórias, sempre carregadas de muita reflexão e humanidade. Um voltar-se sobre si mesmo, revelando e encobrindo, causando no leitor a vontade de seguir adiante, como bem nos ensina Wendel Santos:

“O conto forma-se sob o anseio de duas tensões: o de revelar e o de encobrir. Tais tensões podem compor-se de modo o mais diverso. Há o conto que alterna revelação e encobrimento; há o conto que, de início, revela um mínimo suficiente para despertar a curiosidade leitora e, em seguida, numa ordem de crescimento constante, encobre seu objeto até o ponto em que é necessário outra vez revelá-lo(...)”

Jádson sabe muito bem do que fala Wendel Santos. Ele tem pleno domínio da técnica e da arte da escrita, sem falar no seu apurado senso estético. Adentrar a sua obra é permitir-se participar desse jogo, dessas tensões, para uma jornada de acontecimentos. O leitor está convidado a conhecer mais de perto o poder criativo deste autor tocantinense, que, sem medo de errar, faz parte do que de melhor há na Literatura Brasileira. Boa leitura!.





Imagem: Selfportrait - Maurits Cornelis Escher, Illustrador Holandês - 1898-1972.

Um olhar sobre as diferenças




A muda da minha rua falou-me das estrelas,
com ela aprendi a escutar o rio da minha infância










Por Francisco Perna Filho




Ao nascermos, a primeira leitura que fazemos do mundo é a leitura sensorial: os sons, as cores, os cheiros, a temperatura, as texturas, os sabores. Daí, passamos para abstração do mundo, começamos a sair do concreto para o abstrato, vamos eliminando as figuras; passamos ao simbólico, às sentenças, ao descortínio do que se nos apresenta implícito, nas entrelinhas. Tornamo-nos críticos do mundo e das coisas, senhores do nosso nariz, da nossa boca, do nosso paladar, do nosso cheiro, do nosso som. Espelhos de uma sociedade perfeita, aparelhada de um estado perfeito, de uma justiça perfeita, de um legislativo perfeito, portanto de homens perfeitos. Democraticamente perfeitos.

Descoberto um mundo não tão perfeito, ou quase imperfeito, modificamos a nossa crença, antes absoluta, para um aprendizado de realidades outras: os nossos pares são tão imperfeitos quanto nós, mas não se dão conta disso, até serem colocados à prova da convivência, quando os pré-conceitos afloram, quando a razão é imperativa e degrada, alija e maltrata.

Começamos a nos redescobrir como seres sensíveis, dotados de sentidos e de intuição; capazes de sentimentos e de reflexão. Passamos a valorizar o que somos e o que temos. Passamos a olhar o mundo, outra vez, com os olhos infantis para o descortino de um tempo ainda não corrompido. Um mundo vibrante, de formas e cores; de sons e cheiros. Redescobrimos a beleza do simples, para uma contemplação de plenitudes.

Reabilitamo-nos para a convivência plena: sem preconceito, sem discriminação, sem qualquer estigma. O outro nas suas particularidades, com as suas diferenças, com as suas idiossincrasias. O outro que - ao nos mostrar aquilo que somos - nos habilita para recifração de um mundo mais humano e pleno.




Imagem: Pieta - Jan Saudek, Fotografo Tcheco - born 1935-

Olhando o homem, o peixe se reconhece




Por Francisco Perna Filho






Há dias em que estamos mais leves, longe dos problemas comuns, libertos de toda preocupação, quando movidos pela busca da paz, da tranquilidade, buscamos nos acomodar à beira de um riacho, de um lago; à sombra de uma árvore ou guarda-sol, para deleitar as horas de harmonia com o universo.

Ciceroneado pelo amigo, poeta e jornalista, Sinésio Dioliveira, conheci um pesque-pague dos mais aprazíveis, em Goiânia, mais precisamente ao lado da Vila Muitirão. Foi uma surpresa, pelo fato de antes ele haver me convidado e eu nunca ter aceitado, ou melhor, nunca ter dado certo para que eu fosse conhecer aquele lugar tranquilo, de paz e muitas surpresas, a começar pela pescaria em si, atividade que o meu amigo Sinésio, segundo ele mesmo, é um expert.

Pois bem, chegamos ao local, ao pesque-pague, logo na entrada estava escrito: “Tambaquis e Tucunarés, só para pesca esportiva”. Entramos, o Sinésio pediu uma isca, algumas cervejas e fomos para a labuta; e que labuta! Armamos a tralha toda: anzol, chumbada, vara de pescar, carretilha e isca, tudo o que era preciso para uma boa tarde de pescaria, segundo os entendidos.

O meu amigo atirou a isca aos peixes, um silêncio apoderou-se da tarde, fez-nos contemplativos e esperançosos: dois homens e a vastidão do mundo, assombrados com o encantamento do lago, com a solidão da espera, prestes a refletir o peixe no seu morredouro: “morrer pela boca”, como diriam os nossos pais.

Estávamos ali, numa expectativa de águas, espectadores serenos da longa espera do peixe que não vinha; da linha frouxa a deslizar pela água fria, quando virei-me para ele, para dizer que talvez fosse eu o empecilho, talvez a minha energia o estivesse impedido de pegar muitos peixes, como era de costume, já que não sou afeito a jogos e pescarias, esta última só praticava quando criança, no Rio Tocantins. No que ele me tranqüilizou: “fique calmo, sempre que eu venho aqui pesco um bocado, logo vamos fisgar um”.

Após ser tranquilizado pelo amigo, continuamos nossa peleja: o homem, a linha, o lago e os peixes. Mais uma vez a isca fora atirada a esmo. Enquanto isso, a menos de duzentos metros, um senhor fazia a festa na pesca esportiva: pescava e soltava os pescados, ou melhor, os grandalhões, principalmente as Caranhas. E nós? nada! Continuávamos na longa espera, fisgados pelos peixes que tentávamos pescar, já que alguns deles, à nossa frente, alegres e saltitantes pareciam saber do nosso intento e, por isso, ironizavam a nossa labuta.

O amigo Sinésio, na sua paz e calma interior, tranqüilizou-me dizendo que era assim mesmo, logo fisgaríamos um grande. Tentamos, fisgamos dois, mas eram fortes e escaparam, um deles levou o anzol. Ficamos boquiabertos, mas tudo era festa, confraternização. O amigo saiu, foi ao bar e pediu para fritarem um peixe do estoque deles, por sinal, muito saboroso. Continuamos na lida: isca aos peixes, cerveja como refresco; peixe na linha, só no pensamento.

Já escurecia, quando a linha ficou tesa, sentiu-se um puxão, e ali estava o bruto, o gigante, o inominado prêmio das águas, um peixe pesando “meio quilo”, uma Caranha de dar água na boca, para alegria do meu amigo, que já se tinha como um grande contador de histórias, história de pescador.


Impression, Sunrise, 1872 - Claude Monet, Pintor Francês (Impressionismo) - 1840-1926 - (Musee Marmottan, Paris)


Ouvindo a própria voz



Por Francisco Perna Filho












Tudo foi muito estranho e engraçado, lembro-me bem, eu estava na rodoviária de Miracema do Norte, não posso precisar o ano, década de 70, quando vi pela primeira vez um gravador e ouvi a gravação que dele saía. Fiquei encantado. Como seria possível aquilo?

Cheguei em casa deslumbrado com o novo conhecimento, com a nova tecnologia. Meses depois, meu Pai foi a Goiânia e nos presenteou com um belo gravador, último tipo, genuinamente japonês, uma maravilha. Passamos a gravar todos os sons que encontrávamos, que fazíamos acontecer, desde batidas em latas, até o som da descarga do banheiro, tudo com muito entusiasmo e graça.

Passamos a gravar as nossas conversas, as conversas dos vizinhos. Brincávamos de espiões, cantávamos e nos dizíamos cantores, artistas. Enquanto isso, uma montoeira de fitas K-7 ia se acumulando nas estantes da casa, compondo a nossa coleção. O certo é que éramos puro entusiasmo, o mesmo que tínhamos pelos inúmeros livros da minha infância.

São agradáveis lembranças, mas, o mais agradável, o inusitado, o puro estranhamento, deu-se na fazenda Caridade, do meu avô materno, quando, à noite, nas reuniões que fazíamos, sob a luz dos candeeiros e lamparinas, no pátio da casa grande, o meu pai, Francisco Nolêto Perna; meus avós, vovô Antônio Nolêto e vovó Euzébia Nolêto; minha mãe, Adalgisa Nolêto; meus irmãos; meus amigos que levávamos; os vaqueiros; e os trabalhadores da fazenda estávamos conversando e, depois de muita conversa, após termos ouvido o pífaro de taboca do seo Tonhão, meu pai pediu silêncio. Todos silenciaram, e ele, meu pai, apertou o PLAY do gravador para ouvirmos as nossas falas, as conversas ali travadas, o som ancestral do seo Tonhão. Foi o êxtase total, uma cena indescritível, se considerarmos o rosto, o deslumbramento de cada um. Deus ali se manifestara, o mito, a cosmogonia, os espíritos ancestrais orquestravam aquele evento.

Talvez, se fosse hoje, nada de extraordinário aconteceria, ainda mais por se tratar de ouvir a própria voz, uma simples gravação não causaria tanto entusiasmo, numa época de instantaneidade, de tecnologias que capturam a voz, a imagem, os movimentos e, para muitos, a aura de cada um.

As lembranças da infância são para sempre, não se apagam, boas ou ruins, estarão sempre presentes, como podemos ver no filme O Caçador de Pipas (The Kite Runner), Direção de Marc Forster, baseado no romance do afegão Khaled Hosseini (2003), que conta a história de Amir (Khalid Abdalla), um garoto Pashtun rico de Wazir Akbar Khan, distrito de Cabul, que é atormentado pela culpa de ter traído seu amigo de infância, Hassan, filho do empregado do seu pai, Hazara Uma história comovente, de perdas encontros e desencontros.

Falo do filme, porque foi ele que me fez reviver este fato do gravador, uma história não de tristeza, mas de alegria, de boas lembranças, quando silenciávamos para ouvir a nossa voz, amparados pela luz das lamparinas, dos candeeiros e, muitas vezes, da lua cheia que nos acompanhava. Uma lembrança gostosa de descoberta e aprendizado.



Imagem: Vincent's Room, Arles, 1888 - Vincent Van Gogh, Pintor Holandês (Pós-Impressionismo) -1853-1890 - (Van Gogh Museum, Amsterdam, Netherlands).

Ternura, talvez seja o que nos falta


Por Francisco Perna Filho











Cada um deve comportar os seus abismos, apesar da insuficiência de muitos, que, a reboque, carregam uma dor bem maior do que suportam e, por isso, precisam de ajuda, de compreensão, de quem lhes garanta o pão de cada dia e a doce palavra de consolo.

Talvez não saibamos, ainda, da nossa impotência. Do tempo que, célere, nos conduz. Das tragédias diárias que teremos de enfrentar. Da dor progressiva de quem chora a depressão. Do triste olhar de quem há muito perdeu a esperança. Pouco sabemos da nossa desumanidade, já que o nosso interesse é pelo corpo, pela forma, pelo poder e dinheiro.

Se pouco sabemos, é porque a nossa ignorância é bem maior do que a vontade de enxergar a miséria humana - tão próxima de nós, tão dentro de nós – colocar-se no lugar do outro. Ser mais solidário, altruísta, sensato e irmão. Ninguém vence o mundo sem vencer-se a si mesmo. Ninguém dá carinho sem conhecê-lo.

Nada do que fazemos passa incólume aos olhos da natureza. Toda ação gera uma reação, isso é mais do que sabido. As nossas inimizades são do tamanho dos inimigos que possuímos. Os nossos delírios, aos olhos alheios, não passam de loucura. Ama-se o aprazível, o que é belo, o fácil.

Quantos se julgam dono do saber, do conhecimento, do estabelecimento que dirigem, da repartição onde trabalham. Quantos maltratam por insegurança, por incompetência e, por que não dizer, por pura maldade. Quantos, por inveja, desprezam, ofendem e, covardemente, perseguem.

Amar aquilo que se faz é, no mínimo, compreensível, agora, aceitar o outro nas suas diferenças, nos seus delírios, na sua impaciência, são atitudes enlevadas, dignas de humanidade, de sensatez, de libertação.

O mundo, as artes e o saber não têm donos, estão aí para os homens de fé, de coragem, de determinação e sensatez, apesar dos abutres que rondam as nossas cabeças tentando uma brecha para sua devoção.

Ternura, talvez seja o que nos falta, ou pelo menos, um pouco daquilo que necessitamos para enfrentar a turbulência da nossa desumanidade. Juntando a ela um pouco de carinho, afeto, atenção e empatia, sem sombra de dúvidas, o mundo tornar-se-ia mais mundo e menos imundo.




Imagem: The Helping Hand, 1881 - Emile Renouf, Pintor Francês - 1845-1894

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