ALHEAMENTO



Francisco Perna Filho












Insabível.
É esta a palavra.
Talvez encolhido na sua timidez,
o cavaleiro não ultrapasse os riscos da ferradura.


Nunca.
É esta a palavra.
Ninguém, jamais ninguém,
saberá como dão-se os esquecimentos.


Asilo.
É esta a palavra.
Calar-se em ecos,
enquanto divide saudades.




In.Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.41


Foto by Francisco Perna Filho - Buenos Aires - Caminito de La Boca: tango.

VESTÍGIO



Francisco Perna Filho













Ubíquo mar,
sedento de barcos,
de seixos e seios.
Vesgo olhar de conchas,
tração de maresia.
Mar de algas.


ondeando em manchas de ódios
areando em arpões sonolento.
(recolhendo-se à espuma)


travesso mar,
de porões encardidos,
golpeando os náufragos
que a ti se lançam.
Mar de ferrugem,
de fuligem,
de ressaca.
Vestígio.



In.Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.35


RUMOS







Francisco Perna Filho






Multifários caminhos

que os olhos perseguem,

uns de puro concreto,

outros de água de rio.

Alguns deságuam no nada,

nenhum se perde.

Caminhos de Miracema

de infância travessa.

Caminhos de José Décio*

em vielas poéticas.

Doces caminhos,

de livrarias e discotecas.

Noltálgicos,

nos antiquários

e no mofo das bibliotecas.

Humanos, nas filas-de-bancos,

no aperto dos coletivos...

caminho.


*Poeta Vilaboense



In.Refeição. Goiânia:Kelps,2001,p.115.

Foto by Francisco Perna Filho. Buenos Aires: Luminária da Praça de Maio.

SERES DA RECPEÇÃO


Por Francisco Perna Filho




Depois de vencer a oralidade, que foi fundamental para nos dar conta de um passado remoto, com seus ritos iniciáticos e escatológicos, suas crenças e mitos, o homem empreendeu pesquisas, as mais diversas, sempre buscando a melhor forma de expressão, que culminaria com a invenção da escrita pelos sumérios e egípcios, e evoluiria até o ano de 1522, com a publicação do primeiro caderno de caligrafia pelo italiano Ludovico Arrighi, para chegar aos nossos dias com as tecnologias mais avançadas.

Foram séculos de oralidade até esta maravilhosa invenção: a escrita e, posteriormente, as várias formas de publicação, de impressão. De lá para cá, o homem levou anos para aperfeiçoá-la, procurou compreender o seu tempo, comparar épocas, atitudes e comportamentos. Conheceu estilos, imitou-os, para depois desenvolver o seu. Um processo lento e solitário.

O percurso de uma construção escrita é, muitas vezes, complicado. Embrenha-se em matas densas, sentenças várias, tratados e aparentes irresoluções. Há de se buscar o melhor ângulo: ponto de vista, para chegar aonde se quer chegar. Escrever é necessário, principalmente quando se tem o que dizer, porquanto requer concentração, conhecimento, insistência e persistência, mesmo para o factual.

Escreve-se hoje para repercutir amanhã, um amanhã tão impreciso quanto aquilo que virá a ser fato. Um amanhã que se reportará ao hoje, que já será ontem e, mais uma vez, um outro fato, muito mais importante, ganhará status de novidade e tornar-se-á providencial para matar a sede de leitura (ou de informação) dos carentes leitores de uma vida sem graça: seres da recepção.

"Nenhum texto é gratuito", já disseram, mesmo porque as impressões que carrega refletem a intenção de quem o escreve, ou para quem se dirige. Afinal, toda impressão traz um ponto de vista e, ao leitor, cabe refazer os caminhos, buscar o foco, aceitar ou refutar o dito. Mas, para isso, há de se compreender o escrito, o que, de certa forma, proporciona a quem se aventura por esse campo, o da leitura, uma ampliação das coisas, dos fatos.

Escrever por vocação quase sempre é prazeroso. Mas não se pode deixar enganar ao acreditar que talento é tudo. Ledo engano, talento facilita, mas nada substitui o conhecimento pela leitura, pelo estudo. Escrever, como navegar, ao contrário de viver, deve ser preciso, caso contrário, corre-se o risco de ser abatido ou trombar em uma grande rocha da incompreensão.

Muitos tentam dizer, mas, infelizmente, patinam e não saem do lugar. Outros falam, falam; ou melhor, escrevem, escrevem e não dizem nada, obra da tautologia, do despreparo. Uns citam, citam e se perdem em remorsos. Quanto papel é depositário do lixo gerado à mercê da cola, da cópia, do sem-sentido. Quantos fantasmas perambulam à espera de algum endinheirado com vontade de “ser lido”. Pois, escrever também é forma de imortalidade. Não é preciso ter talento – como nos fazem crer as academias.

Depois de tanto caminhar, inquietar-se, procurar a melhor forma de expressão, vive-se, agora, a glória da instantaneidade, da precisão tecnológica, mas, ao mesmo tempo, parece haver um desinteresse pela matéria mais densa, pelo estudo mais aprofundado. As pessoas têm pressa em dizer, em viver, estão fartas de informação e fofoca, mas ausentes de criticidade e reflexão. Tropeçam na língua, na linha e morrem às margens do texto.



Foto by Rodolfo Ward-2009 - Flores Tropicais: bixáceas (Bixa orellana) - Urucum Verde

CHEERS


Francisco Perna Filho




O mar do bar tem cor móvel
adrede colocada nas garrafas de cervejas e tonéis de pinga,
por onde os homens passeiam
com suas máquinas de desilusões.
No Mar do Bar,
as ondas tiram ondas
nos lábios carnudos e gulosos da boca-da-noite,
quebram nos corpos,
quedam nos copos.
No mar do Bar,
de joelhos,
sou pescado.

Fonte da imagem: http://www.prof2000.pt/users/crigaspar/images/boca1.gif

DE OLHOS BEM ABERTOS - A que conclusões cheguei

Francisco Perna Filho







Que rumo tomara o mundo,
visto da minha janela,
parece-me o espelho de muitas gerações.
E os meus olhos, como estampas,
guardados no parapeito do tempo
não enxergam mais que o simples
carbono dos acontecimentos,
decodificando os olhares e gestos
amontoados por muitos séculos.


Não matei as esperanças,
tampouco intensifiquei o otimismo,
já que o meu coração transborda incertezas.
Para onde foram todos eles?
A sala permanece vazia, a mesa continua posta,
no entanto, a virtude de cada um tem seu lugar e assento.

Aqui estou, plantada como arranha-céu,
enorme na minha solidão.
Tão sólida e fincada no desejo humano
de solidificar a sua crueldade.
A cidade embebera-se em incertezas:
os semáforos enlouquecidos arrastam os carros ao desespero,
e o meu sonho de menina é igual: são bois em disparada
e uma criança perdida chora o seio da mãe.

Os livros
talvez não compreendam o espaço que habitam:
ali postos, amarfanhados, amarelecidos,
desconsiderando, estáticos e intocados, a fome de alheios olhos
que perscrutam a solidão da casa.
Não tardarão os homens,
e quando vierem, elouquecidos e chorosos,
assim como eu, perceberão que tudo não passa de ilusão
e eu, assim como todos, também terei sabido
de muitas outras coisas.



In. As Mobílias da Tarde. (Última parte do livro) Goiânia: Perna&Leite, 2006,p.103-105.

Foto by Francisco Perna Filho-2009 - Caminito de La Boca, Buenos Aires.

TEXTO - Francisco Perna Filho


Do paterno sou mulher rendeira,
sentada na esteira,
minha perna encolhida, minha perna dobrada,
minha perna estirada.
Minha saia sungada, minha coxa de fora
batendo os meus bilros
tecendo, marcando pontos
de uma renda do norte, uma renda sem fim.

(Cora Coralina)



Ser camisa ao avesso,
costura da qual se veem os pontos,
tecido ordinário nas mãos da tecelã.
Vida que se cruza entre um bilro e outro,
no tecido das grandes fazendas, na tintura de urucum.
Ser pano rasgado,
esquecido nas achas de lenha,
no choro de menino nascido,
no bordado da vida: renda.
Ser costura de rio,
na linha de vento,
tecendo em cada porto as manhãns de banzeiro,
em pontos de rede de pescador


Ser...
e costurar o enredo dos homens,
na procissão das idéias,
no sal amargo dos bóia-frias,
em pontos de cruz.
Tecido de entranhamento,
de estranhamento,
de cascalho da estrada,
sob o esguio olhar de quem anda a pé.
Reticência no texto-não-feito,
dos que definitivamente nunca serão.
Costura.
Ponto.
Entre uma vírgula e outra o ser pasma
no alheamento de sua existência.


In.Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p. 22-23.

Foto by Rodolfo Ward -2009 - Flores Tropicais: Alpinia Purpurata.

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