SERES DA RECPEÇÃO


Por Francisco Perna Filho




Depois de vencer a oralidade, que foi fundamental para nos dar conta de um passado remoto, com seus ritos iniciáticos e escatológicos, suas crenças e mitos, o homem empreendeu pesquisas, as mais diversas, sempre buscando a melhor forma de expressão, que culminaria com a invenção da escrita pelos sumérios e egípcios, e evoluiria até o ano de 1522, com a publicação do primeiro caderno de caligrafia pelo italiano Ludovico Arrighi, para chegar aos nossos dias com as tecnologias mais avançadas.

Foram séculos de oralidade até esta maravilhosa invenção: a escrita e, posteriormente, as várias formas de publicação, de impressão. De lá para cá, o homem levou anos para aperfeiçoá-la, procurou compreender o seu tempo, comparar épocas, atitudes e comportamentos. Conheceu estilos, imitou-os, para depois desenvolver o seu. Um processo lento e solitário.

O percurso de uma construção escrita é, muitas vezes, complicado. Embrenha-se em matas densas, sentenças várias, tratados e aparentes irresoluções. Há de se buscar o melhor ângulo: ponto de vista, para chegar aonde se quer chegar. Escrever é necessário, principalmente quando se tem o que dizer, porquanto requer concentração, conhecimento, insistência e persistência, mesmo para o factual.

Escreve-se hoje para repercutir amanhã, um amanhã tão impreciso quanto aquilo que virá a ser fato. Um amanhã que se reportará ao hoje, que já será ontem e, mais uma vez, um outro fato, muito mais importante, ganhará status de novidade e tornar-se-á providencial para matar a sede de leitura (ou de informação) dos carentes leitores de uma vida sem graça: seres da recepção.

"Nenhum texto é gratuito", já disseram, mesmo porque as impressões que carrega refletem a intenção de quem o escreve, ou para quem se dirige. Afinal, toda impressão traz um ponto de vista e, ao leitor, cabe refazer os caminhos, buscar o foco, aceitar ou refutar o dito. Mas, para isso, há de se compreender o escrito, o que, de certa forma, proporciona a quem se aventura por esse campo, o da leitura, uma ampliação das coisas, dos fatos.

Escrever por vocação quase sempre é prazeroso. Mas não se pode deixar enganar ao acreditar que talento é tudo. Ledo engano, talento facilita, mas nada substitui o conhecimento pela leitura, pelo estudo. Escrever, como navegar, ao contrário de viver, deve ser preciso, caso contrário, corre-se o risco de ser abatido ou trombar em uma grande rocha da incompreensão.

Muitos tentam dizer, mas, infelizmente, patinam e não saem do lugar. Outros falam, falam; ou melhor, escrevem, escrevem e não dizem nada, obra da tautologia, do despreparo. Uns citam, citam e se perdem em remorsos. Quanto papel é depositário do lixo gerado à mercê da cola, da cópia, do sem-sentido. Quantos fantasmas perambulam à espera de algum endinheirado com vontade de “ser lido”. Pois, escrever também é forma de imortalidade. Não é preciso ter talento – como nos fazem crer as academias.

Depois de tanto caminhar, inquietar-se, procurar a melhor forma de expressão, vive-se, agora, a glória da instantaneidade, da precisão tecnológica, mas, ao mesmo tempo, parece haver um desinteresse pela matéria mais densa, pelo estudo mais aprofundado. As pessoas têm pressa em dizer, em viver, estão fartas de informação e fofoca, mas ausentes de criticidade e reflexão. Tropeçam na língua, na linha e morrem às margens do texto.



Foto by Rodolfo Ward-2009 - Flores Tropicais: bixáceas (Bixa orellana) - Urucum Verde

CHEERS


Francisco Perna Filho




O mar do bar tem cor móvel
adrede colocada nas garrafas de cervejas e tonéis de pinga,
por onde os homens passeiam
com suas máquinas de desilusões.
No Mar do Bar,
as ondas tiram ondas
nos lábios carnudos e gulosos da boca-da-noite,
quebram nos corpos,
quedam nos copos.
No mar do Bar,
de joelhos,
sou pescado.

Fonte da imagem: http://www.prof2000.pt/users/crigaspar/images/boca1.gif

DE OLHOS BEM ABERTOS - A que conclusões cheguei

Francisco Perna Filho







Que rumo tomara o mundo,
visto da minha janela,
parece-me o espelho de muitas gerações.
E os meus olhos, como estampas,
guardados no parapeito do tempo
não enxergam mais que o simples
carbono dos acontecimentos,
decodificando os olhares e gestos
amontoados por muitos séculos.


Não matei as esperanças,
tampouco intensifiquei o otimismo,
já que o meu coração transborda incertezas.
Para onde foram todos eles?
A sala permanece vazia, a mesa continua posta,
no entanto, a virtude de cada um tem seu lugar e assento.

Aqui estou, plantada como arranha-céu,
enorme na minha solidão.
Tão sólida e fincada no desejo humano
de solidificar a sua crueldade.
A cidade embebera-se em incertezas:
os semáforos enlouquecidos arrastam os carros ao desespero,
e o meu sonho de menina é igual: são bois em disparada
e uma criança perdida chora o seio da mãe.

Os livros
talvez não compreendam o espaço que habitam:
ali postos, amarfanhados, amarelecidos,
desconsiderando, estáticos e intocados, a fome de alheios olhos
que perscrutam a solidão da casa.
Não tardarão os homens,
e quando vierem, elouquecidos e chorosos,
assim como eu, perceberão que tudo não passa de ilusão
e eu, assim como todos, também terei sabido
de muitas outras coisas.



In. As Mobílias da Tarde. (Última parte do livro) Goiânia: Perna&Leite, 2006,p.103-105.

Foto by Francisco Perna Filho-2009 - Caminito de La Boca, Buenos Aires.

TEXTO - Francisco Perna Filho


Do paterno sou mulher rendeira,
sentada na esteira,
minha perna encolhida, minha perna dobrada,
minha perna estirada.
Minha saia sungada, minha coxa de fora
batendo os meus bilros
tecendo, marcando pontos
de uma renda do norte, uma renda sem fim.

(Cora Coralina)



Ser camisa ao avesso,
costura da qual se veem os pontos,
tecido ordinário nas mãos da tecelã.
Vida que se cruza entre um bilro e outro,
no tecido das grandes fazendas, na tintura de urucum.
Ser pano rasgado,
esquecido nas achas de lenha,
no choro de menino nascido,
no bordado da vida: renda.
Ser costura de rio,
na linha de vento,
tecendo em cada porto as manhãns de banzeiro,
em pontos de rede de pescador


Ser...
e costurar o enredo dos homens,
na procissão das idéias,
no sal amargo dos bóia-frias,
em pontos de cruz.
Tecido de entranhamento,
de estranhamento,
de cascalho da estrada,
sob o esguio olhar de quem anda a pé.
Reticência no texto-não-feito,
dos que definitivamente nunca serão.
Costura.
Ponto.
Entre uma vírgula e outra o ser pasma
no alheamento de sua existência.


In.Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p. 22-23.

Foto by Rodolfo Ward -2009 - Flores Tropicais: Alpinia Purpurata.

PRIMAVERA


Francisco Perna Filho








Amá-la

ou amar ela

são duas formas válidas de amar.

a primeira, culta;

a segunda, popular.

Amá-la, fechada por ser mala.

Amar ela, aberta por ser cor:

AMARELA.



Imagem: http://lh4.ggpht.com/_uDIMwYHYffg/Rfi-bDcfOVI/AAAAAAAAAU4/-wchAGD4-eM/100_0446.jpg

MEMÓRIA - Entrevista com Affonso Romano de Sant'Anna






Originalmente, esta entrevista foi publicada no Jornal Opção www.jornalopcao.com.br e na Revista Bula www.revistabula.com, em julho de 2004, tendo como entrevistadores o poeta e professor universitário Francisco Perna Filho (Chico Perna), o poeta e jornalista Carlos Willian Leite, o poeta João de Aquino, e a publicitária Tainá Corrêa.



Affonso Romano de Sant'Anna

Chico Perna - Hoje em dia, assistimos à banalização da violência: Guerras, tráfico de drogas, assaltos, seqüestros, tudo isso tem contribuído para que o cidadão sinta-se cada vez mais inseguro e desprotegido. A natureza tem sido brutalmente agredida, principalmente pelas grandes potências. No Brasil, o que tem sido feito na área de preservação é ainda incipiente; com relação à violência, vivemos uma verdadeira guerra civil. Diante desse panorama que se nos afigura, há espaço para poesia? Qual é o papel do poeta?

Affonso - Estamos vivendo uma situação insólita, e não é só no Brasil essa questão da violência enlouquecida e aleatória. O que me preocupa no nosso caso é algo que se realizou uma profecia que fiz há vinte e tantos anos.Eu havia escrito um artigo intitulado: “A história de um país é também a história de seus bandidos”, onde propunha que à maneira dos estudos sobre as diversas gerações/autores/estilos em literatura, fazer uma “história” de nossos bandidos nos ajudaria a entender melhor o país. Daí, que quando houve aquele episódio do Tim Lopes e publiquei a crônica “Nós os que matamos Tim Lopes” (que muitos acharam que era um poema, por ter anáforas),um editor pediu-me para reunir num livro, que levou aquele título (Ed.Expressão e Cultura)- as crônicas sobre violência. Espantei-me. Pois ao recolhê-las, dei-me conta de que havia, sem saber, de alguma maneira, escrito a história da violência e dos bandidos do país. Até eu fiquei chocado. Por outro lado, dei-me conta que muitos de meus poemas relatam também essa história, que passou do plano militar-guerrilheiro para o descalabro na sociedade civil. Num poema de quase 30 anos atrás “Crônica policial”, eu terminava pateticamente dizendo:

Minha porta já em 100 trincos

Depois de 6 revólveres, comprarei 5 bazucas

8 granadas

12 miras telescópicas

embora nada me garanta que não me ponham a porta abaixo

com seus tanques.

Mas fora isto, não sei ainda o que fazer.

Mas não vou ficar aqui como um personagem de Hemingway

Que cansado de fugir

Se deita velho como um cão

Aguardando que me trucidem

A mim , minha família

E mandem a foto autografada ao Presidente

Como sinal da mais estima e elevada consideração.”

Carlos Willian - O Texto “A Implosão da Mentira” que foi imortalizado por Tônia Carrero no cd da “coleção Poesia Falada”, remete às mentiras cotidianas que ouvimos e retransmitimos todo o tempo. Em sua opinião, o Brasil do governo Lula continua sendo um país de mentiras?

Affonso - Sabe que para minha tristeza, toda vez que leio esse poema em apresentações públicas há um vigoroso aplauso que interpreto como revolta e protesto contra algo inerente aos governos. Ainda agora vim do Chile, onde passei dez dias falando poemas em diversas cidades, dentro das comemorações do centenário de Neruda. E lia sempre o poema. E a reação era idêntica. Um tradutor americano me dizia que esse poema retrata o governo Bush e que deveria ser publicado no “The New York Times”- o que me agradaria muito. Quanto ao Brasil, reconheço que tem havido uma melhora ética com esse governo. Mas é própria da política a fala ambígua e dupla o negar afirmando. como disse em “Sobre a atual vergonha de ser brasileiro”- escrito no governo Figueiredo:

“Este é o país do diz e do desdiz

onde o dito é desmentido

no mesmo instante em que e dito.

Não há lingüista e erudito

Que apure o sentido inscrito

Nesse discurso invertido.

Aqui o discurso se trunca.

O sim é não

O não, talvez

O talvez

-nunca.”

Chico Perna - Como o senhor vê a atuação do governo Lula com relação à área cultural, mais especificamente ao setor de bibliotecas públicas, já que o senhor, à frente da Biblioteca Nacional, fez um trabalho belíssimo, valendo destacar o PROLER, que tanto contribui para difusão do livro e da leitura?

Affonso - Eu teria gostado mais se desde o princípio tivessem surgido ações concretas no sentido de retomar o Proler. Só agora estou sabendo que chamaram Galeno Amorin (ex-secretário de Cultura de Ribeirão Preto) e o Edmir Perroti para atuarem nessa área. Estão tentando recuperar o tempo perdido, que foi esse interregno entre 1996 e 2004. Oito anos perdidos, é uma lástima. Mas a tragédia maior foi durante FHC e o desastroso equívoco chamado Weffort. De resto, no dia em que o governo ao invés de apenas dizer que o livro e a cultura são importantes, desenvolver ações concretas e inovadoras acabaremos com o que chamo de “discurso duplo”: Fala-se uma coisa e faz-se outra.

Tainá Corrêa - O senhor publicou poemas de cunho político nos principais jornais do país durante a ditadura militar. Um exemplo: “Que país é este” que foi traduzido para diversos idiomas, transformado em pôster e colocados em universidades e sindicatos. Essa atitude contestadora que marcou toda a sua trajetória poética não lhe trouxe problemas? Sobretudo com a censura?

Affonso - Uma vez uma cerimônia de formatura foi interrompida porque o formando resolveu ler um dos meus poemas. O prefeito se retirou da mesa, acabou a festa. De outra feita, eu tinha que fazer conferência em Furnas e o presidente da instituição ficou assustadíssimo e tentou me desconvidar. Quando fui convidado para dar aulas na Alemanha, o governo brasileiro cortou a ajuda que dava tradicionalmente ao “leitor brasileiro”, porque o SNI não recomendava meu nome. Enfim, há vários episódios. Não faziam censura explícita como com a música popular, porque a poesia literária atinge um público menor, mas havia coibições de várias ordens.

Carlos Willian - Ainda jovem, o senhor foi considerado pelo critico Wilson Martins como sucessor de Carlos Drumonnd de Andrade. Como foi carregar esse fardo?

Affonso - Complicado, primeiro porque descobri que havia muitos candidatos a esse título que passaram a se sentir “despossuídos”. Em segundo lugar, o Wilson Martins depois ,em outro artigos, desenvolveu melhor esse pensamento ressaltando que eu vinha do que ele chama de “linhagens” poéticas, às quais pertencia também Drummond. Realmente minha obra dialoga com a tradição e procurando avançar. Há pessoas por aí que acham que estão reinventando tudo, a poesia, o verso, a história. É o messianismo literário. Dentro dessa questão da “sucessão” também seria até interessante ressaltar uma coisa, uma síndrome: temos que parar com essa idéia de que a poesia brasileira é uma monarquia, com príncipes herdeiros. A toda hora vem alguém dizer que “agora” o maior poeta é fulano, como se só houvesse lugar para cada um de uma vez. Tem pelo menos uns 10 poetas do primeiro time por aí.

João Aquino - Guardadas as diferenças e avultadas as semelhanças, o que há na sua poesia que remeta a Carlos Drummond de Andrade?

Affonso - Isto ficaria melhor na fala de analistas e não na minha voz. Posso insinuar algumas diferenças. Primeiro, de temperamento: sou uma pessoa que adora viajar mundo afora, e CDA ficou plantado aqui. Minha poesia está cheia de referências a todos os lugares do mundo por onde tenho passado. Ainda agora estou voltando do Irã, e alguns poemas relativos a isto estarão no meu próximo livro. Em segundo lugar, uma das minhas vertentes é a batida do versículo bíblico, devido à minha formação protestante. Outra diferença: CDA diferia muito sua poesia de sua prosa. Ao contrário, misturo poesia e prosa na minha crônica. Muitos poemas foram extraídos delas. E quem pesquisar verá uma simbiose, vasos comunicantes, entre esses dois gêneros, em mim. Tem nas crônicas versos esparsos que recapturei na poesia. Mesmo minha crônica é mais participante, acho que o cronista pode e deve interferir no cotidiano. Acho que também o tratamento da temática amorosa é diferente. A imagem da mulher em minha poesia, a relação entre homem-mulher é diferente. Ele vem de uma formação de filho de fazendeiro, de uma geração mais machista. Eu venho de outra, aquela que nos anos 60 tinha outra visão de mulher, casamento e sexo.

Chico Perna - Ultimamente, pelo menos nos grandes jornais com exceção de O Globo, com Wilson Martins, não temos mais a figura do crítico literário, atividade que tem se restringido ao meio acadêmico, não chegando ao público em geral. A pergunta que eu faço é a seguinte: Em sua opinião, a crítica é necessária? No que ela pode contribuir para o engrandecimento do fazer literário?

Affonso - A crítica é essencial. Ela é o espelho social para o autor. E pode ser um guia estético. Se tivéssemos uns 10 bons críticos pelos quais passassem os principais livros lançados teríamos como avaliar melhor as coisas. Mas o que há é, de repente, uma pessoa que não tem lastro, não tem curriculum nem peso cultural apresentar o “corpus” da poesia brasileira como sendo a sua pequena e mesquinha visão. Por outro lado, o que há hoje, como já disse, são reportagens e entrevistas. O leitor vê uma pagina inteira com foto imensa de um autor e vai achar que isto é sinal de valorização. O jornal transformou-se muito em revista, voltado para o espetacular. Falta ao Brasil um bom número de publicações literárias. Imagine que Portugal tem o “Jornal de Letras”, quinzenal, que dá um painel democrático do que ocorre na literatura portuguesa. Aqui não conseguimos nem isto. E dentro das revistas universitárias, o que há são estudos acadêmicos, e não a critica que tem que se arriscar a opinar sobre o que está surgindo.

Tainá Corrêa - Quem é o maior poeta brasileiro vivo?

Affonso- Tá vendo? Eu nem sabia que essa pergunta ia pintar aqui em baixo e disse aquelas coisas lá em cima. Veja bem: se os próprios poetas mortos têm o seu valor constantemente renovados e questionados, o que dizer dos poetas vivos tão sujeitos às deformações da política literária?

João Aquino - Com exceção de Gilberto Mendonça Teles, o que o senhor conhece da poesia goiana?

Affonso - Mantive contato com muitos poetas do estado durante décadas. E estive aí com vários deles.

Tainá Corrêa - Ainda existe espaço para metalinguagem na poesia?

Affonso -Claro, sempre haverá. O que tem ocorrido com a modernidade é que os poetas começaram a falar para dentro, para si mesmos e perderam o elo com o leitor e com o público. Já não se trata nem de hermetismo, senão de um equívoco e perversão literária. Algo perto da masturbação poética.

Carlos Willian - Recentemente o senhor falou de um lirismo envergonhado na poesia brasileira, isso deve ser atribuído a quê?

Affonso - Aos concretistas paulistas que trouxeram para a poesia brasileira censura institucionalizada, um AI-5, que dizia que o verso acabou, que a lirismo morreu, enfim, uma série de coisas tolas ditas de maneira pomposa, e que não resistiram a dois segundos de vida. Tanto assim que todos eles voltaram arrependidos sobre os próprios passos e ficam traduzindo Rilke e outros “líricos”, porque têm vergonha de assumir a própria poesia.

João Aquino - O poeta Alexei Bueno disse em entrevista: "O normal da nossa poesia atual é a poesia cocô de cabrito, sequinha, apertadinha e idêntica." Concorda com ele?

Affonso - Quem disse isso (também) foi o Bruno Tolentino. É um tipo de poesia que provem de uma leitura pobre de Oswald de Andrade, que era um poeta menor e ocasional, que nunca desenvolveu uma obra poética como projeto, que teve apenas uma interferência momentânea no princípio do modernismo. Em geral, os críticos que se detêm muito sobre Oswald, são pessoas que não gostam de poesia. Vingam-se da poesia através dele. E os poetas que vivem fazendo esse poesiazinha optaram pelo facilitário.

Tainá Corrêa - Hoje os universitários estudam através de textos xerocopiados. Qual a conseqüência de só estudarmos trechos e não toda a obra de um escritor?

Affonso - Este é um problema complexo. Quando dirigi a BN participei de seminários nacionais e internacionais sobre a questão do xerox, analisando soluções. No caso brasileiro a ausência de livrarias, o fraco poder aquisitivo, a pobreza das bibliotecas, a dificuldade de achar obras esgotadas explicam o uso do xerox. Isto não é um mal em si. Se o professor estiver dando um curso sistêmico o aluno juntará as partes em sua cabeça. Nos Estados UNIDOS, em cada andar de uma biblioteca universitária tem dezenas de maquinas xerox que você usa colocando um cartãozinho lá dentro. Copia o que quiser.

Carlos Willian - Como foi sua experiência de lecionar literatura brasileira nos Estados Unidos, Alemanha e França?

Affonso - Complexa e rica.O aluno americano tem à sua disposição as melhores bibliotecas do planeta.Ele faz as tarefas todas que você passa.Quando lá estive a primeira vez (1965) o português era uma das 5 línguas estratégicas recomendadas pelo Departamento de Estado, e havia muito aluno. Hoje caiu muito. Mas são produzidas teses interessantes. Diria mesmo que há uma produção sobre a literatura brasileira lá fora, que aqui não se conhece. A Alemanha foi o país onde me senti mais estrangeiro. Também com essa cara de marroquino! Aliás, na França, no primeiro dia que cheguei em Aix-en-Provence e saí com a família para comer na rua, fui perguntar por um restaurante e me mandaram para um restaurante marroquino. É uma experiência estranha lecionar fora, porque nos obrigam a ver o país de fora para dentro, rever valores e redescobrir outros.

Chico Perna - Recentemente, o senhor visitou o Irã, e o que pude constatar pelos seus relatos ensaísticos em O Globo, é que naquele país a figura do poeta é muito valorizada, cultuada pelas pessoas, sem distinção de classe social. Aqui, o poeta, para ter certa visibilidade, precisa aparecer nos grandes jornais, ou pertencer a uma comunidade acadêmica, caso contrário ele jamais chegará a uma grande editora. Qual é a razão disso tudo? Por que a poesia não é valorizada no Brasil?

Affonso - Aqui há uma coisa curiosa. Vejam o que ocorreu com Drummond, virou um ícone. Vinicius é outro exemplo de ligação com o público, pelo menos com a classe média. Em todos os países a ascensão de um poeta, socialmente, é complexa. Mas a sociedade faz questão de eleger e cultuar seus poetas. No meu restrito espaço tenho recebido demonstrações comoventes de leitores. Mas há uma coisa que hoje é característica, você tem razão, o autor tem que passar pela mídia, enquanto elemento legitimador. No tempo de Castro Alves e Bilac a mídia não era tão forte, mas havia outras instâncias igualmente legitimadoras. No Brasil, por outro lado, a poesia de cordel e a própria poesia na música popular é bastante reverenciada e estudada.

João Aquino - A mídia, especialmente a televisão, contribui para o conhecimento ou banaliza as grandes obras poéticas?

Affonso - Depende de como é apresentada. Quando comecei a fazer poemas para TV, me lembro que o Henfil me alertou: “cuidado!” E eu sabia. E tinha consciência de que estava produzindo algo que não era mais a poesia literária convencional, mas um produto diferente, novo, que somava jornalismo, literatura, cinema etc.. Você tem que produzir textos dentro de um determinado tempo, tamanho, com imagens e ser entendido. Mas quando pegam o “Morte e vida Severina”, como fizeram, e dão um tratamento digno, o resultado é excelente.

Tainá Corrêa - O senhor já recebeu inúmeras premiações. O que um prêmio pode dar ao escritor? O prêmio é necessário?

Affonso - Drummond falava da “injustiça dos prêmios”. Tem autores com dezenas e dezenas de prêmios que não conseguem ser legitimados no sistema. Há quem não tenha ganhado nada e seja bem citado. No Brasil o prêmio não significa, como na Europa, que o livro vai vender mais. Só agora estão começando a valorizar o Jabuti, botar algo sobre os livros assinalando isto. O prêmio deveria ser um sinal de rito de iniciação para certos autores. Quanto a mim, já ganhei, já perdi e até já ganhei e perdi ao mesmo tempo. Houve um prêmio, por exemplo, que me foi dado e depois retirado, quando o júri descobriu meu nome. Quer dizer, isto também passa pela indisfarçável política literária.

Carlos Willian - Qual o maior poeta de todos os tempos?

Affonso - Não sei. Cada poeta que leio me serve alguma coisa, me alimenta de alguma maneira. Às vezes um verso reorienta nossa vida. Acho que os maiores poetas são aqueles que são necessários à nossa vida e não aqueles que satisfazem nossa erudição.

João Aquino - O poeta brasileiro da atualidade está cumprindo com o seu papel social?

Affonso -Eu tento cumprir o meu.

Chico Perna - O senhor, sem dúvida alguma, é um dos grandes poetas brasileiros, com uma poesia de fôlego e com alto teor crítico. Qual é análise que o Senhor faz do atual momento das letras brasileiras?

Affonso - Costumo dizer que o “sistema” literário brasileiro está meio como a maionese que desandou. Até os anos 70 tinha-se uma noção mais nítida do que estava acontecendo, quais os valores. Agora, acontece uma coisa que é boa por um lado: aumentou muito o número de autores novos. Mas, por outro lado, como o sistema não funciona (sistemicamente como deveria) não se tem noção exata de quem é quem e do valor de cada um. Em parte isto se deve também ao clima da chamada “pós-modernidadae”, que privilegia só o superficial. Veja as listas de best-sellers. Compare-as com as listas dos anos 70. Há trinta anos havia escritores na lista. Hoje há livros de auto-ajuda e humorismo. Baixou o nível. Por outro lado, a reportagem e a entrevista substituíram hoje a resenha e a crítica. E há muito espaço para livros estrangeiros, maior que para os brasileiros. Num seminário que Alberto Dines organizou no CCBB, há uns três anos, apresentei um texto analisando isto, que foi publicado

Carlos Willian - O que é poesia? O que é o poema?

Affonso- Estou há 50 anos tentando definir isto. Não sei quantos poemas fiz a respeito, e “A grande fala do índio guarani”, no fundo é uma grande pergunta sobre isto, a começar do primeiro verso: “Onde leria o poema de meu tempo?” A esse “onde”, adiciono depois o “como”, o “quando”, o “quem” etc. For a isto tenho um outro livro “Poesia sobre poesia”, onde há uma série de poemas- ensaios dobrados sobre essa questão

Saiba mais sobre o escritor na sua página oficial: http://www.affonsoromano.com.br/

Fonte da imagem: http://www.revistaogrito.com/page/wp-content/uploads/2008/11/affonso.jpg

LADRILHOS - PARA ASTOR PIAZZOLA


Francisco Perna Filho


















Todos os tombos,
a comiseração.
Abatido,
o homem perde-se.
Em si é algo alheio,
estrela em dissonância.
Alma, mar,
barco desfeito.
Tenta ser.
Espelho, desordem,
vinil num mundo moderno.
Velho,
pedaço,
vítima.

Nos ladrilhos do tempo,
ele espera.
Ãnos de soledad,
ninhos vazios,
asas quebradas.
Cansado, desespera-se.
Vaga em vão,
Voci[fera].
Como cães que
repetem as noites,
nadifica-se.



Imagem: "Café da Manhã de Um Homem Cego", de PABLO PICASSO. http://www.risconotempo.blogger.com.br/picasso8.jpg

Leia também

Valdivino Braz - Poema

Soldado ucraniano Pavel Kuzin foi morto em Bakhmut  - Fonte BBC Ucrânia em Chamas - Século 21                               Urubus sobrevoam...