GUIMARÃES ROSA |
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Notas gramscianas sobre o grande sertão: VEREDAS |
Roberto Penedo do Amaral
A concepção gramsciana de filosofia justifica as premissas e a conclusão do silogismo que dá título a deste artigo. Pois, para esse grande pensador marxista italiano do século passado, havemos que, em primeiríssimo lugar, buscar superar um preconceito há muito difundido em nossa cultura ocidental de que a filosofia é uma matéria demasiado hermética e que só a alguns eleitos, detentores de um saber ex traordinário, é que estaria destinado o labor com a mesma. Nesse sentido, a polêmica afirmação de Gramsci (1891-1937) de que “(...) todos os homens são ‘filósofos’ (...)” (Gramsci, p. 93) parte de fundamentos outros que uma determinada filosofia clássica teria apresentado como critérios para o estabelecimento de quem é ou não filósofo ou do que é ou não filosofia. No entanto, se a controversa tese de Gramsci não parte de um cânone clássico, também não deixa de circunscrever essa “filosofia espontânea” característica a todo e qualquer ser humano, e, que, segundo ele,
“(...) está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e, conseqüentemente, em todo sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por “folclore”. (Gramsci, p. 93)
Ao dar a devida atenção aos fundamentos, consubstanciados em enunciados simples, porém, reveladores, de que Gramsci parte para o assentamento de sua assertiva, começamos a perceber a profundidade e a grandeza dos mesmos. Senão, vejamos. A importância que ele dá à linguagem, tratando-a como um conjunto de “noções e conceitos determinados” e não, tão-somente, como “palavras gramaticalmente vazias de conteúdo”, confirmam a compreensão que também temos acerca da mesma, como sendo a verdadeira instauradora e mantenedora de nossa humanidade. Poderíamos afirmar, sem sombra de dúvida, que o ser humano e a humanidade se constituem e dão sentido às suas existências pela linguagem, posto que, através dela, é que se estabelecem os valores, as crenças, as regras, as relações, os saberes. Dessa forma, a linguagem nunca se dá de forma impune, vazia, imparcial, neutra, já que, desde a sua enunciação, está carregada de sentidos, escolhas, opiniões e verdades. Ou, como afirmou Guimarães Rosa, num diálogo com o crítico alemão Günter W. Lorenz, “a linguagem e a vida são uma coisa só” (in Lorenz, p. 339). Nas palavras de Gramsci, “na ‘linguagem’ está contida uma determinada concepção de mundo” (Gramsci, p. 93).
Evidentemente, o questionamento sobre o caráter crítico ou alienado de uma determinada concepção de mundo, manifestada por uma determinada linguagem, pode vir a ser suscitado, — e é salutar que isso ocorra, desde que não se apresente a partir de um ponto de vista intransigente e enviesado; — porém, isso não invalida a complexa capacidade humana de escolher e acreditar em algo que dê sentido à sua própria existência e ao grupo social a que está vinculado.
Diante do quadro apresentado acerca da profundidade e densidade presentes na linguagem humana, não é forçoso que concordemos com Gramsci sobre uma determinada filosofia “espontânea” ser uma característica de todo ser humano, daí a decorrência de todos os homens serem “filósofos”, “ainda que, segundo Gramsci, a seu modo, inconscientemente” (Gramsci, p. 63). Nesse ponto, é importante que tenhamos a clara compreensão do que o pensador italiano nomeia de inconsciente: a ausência, numa pessoa, de uma visão crítica de si e de suas circunstâncias.
Se há um elemento com o qual podemos justificar, amparados pelo traçado gramsciano, a procedência do silogismo que encima esse texto, promovedor do jagunço Riobaldo a filósofo, é justamente o topos da complexidade, da criatividade e da vitalidade da linguagem. Riobaldo é um personagem que transfigura metaforicamente, através de sua narrativa, a crueza, a beleza, os dilemas, as incertezas, enfim, a profundidade mais abissal da complexidade da existência humana. Através de suas “falas”, ele ora revela-se, ora oculta-se em suas virtudes, em suas mazelas, em suas dúvidas, em suas verdades. Em outras palavras, a sua linguagem o torna um humano que escolhe, que age, que indica, que especula, que, enfim, pensa:
“De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantasêia. Mas agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos desassossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia” (Grande Sertão: Veredas, p.26).
Nesse pequeno trecho da obra maior rosiana, podemos verificar a riqueza de informações acerca do inventário cultural de Riobaldo. As suas palavras revelam-nos aspectos importantes de sua formação e de sua concepção de mundo. Podemos notar que na sua atividade de jagunço havia pouco tempo para que ele se dedicasse a pensar de forma mais tranqüila e profunda sobre sua existência. Afundado num pragmatismo exacerbado, consumido em mil e uma ações de combate, fugas e travessias longas e exaustivas pelos caminhos e descaminhos do sertão dos Gerais, da Bahia e de Goiás, não lhe era permitido folgar na imaginação e na contemplação. Como ele mesmo diz, quem mói no áspero, não fantasia. Afastado da jagunçagem, situado agora como um fazendeiro bem-sucedido, com o tempo estabelecido e determinado por ele próprio, pode se permitir às especulações humanas e mundanas. É o que Riobaldo tem a oportunidade de fazer com toda ênfase e ousadia, na presença de um interlocutor possuidor de “(...) toda leitura e suma doutoração” (Grande Sertão: Veredas, 2001, p. 30). Eis a sinopse de Grande Sertão: Veredas.
Se ouvirmos a narração de Riobaldo com ouvidos de mercador, ou seja, encarcerados desde a metalinguagem dos compêndios gramaticais, certamente não sairemos do lugar, e poderemos considerar a obra rosiana como uma saga natimorta, já que seu protagonista não teria nada a nos dizer com seu tosco tartamudear sertanejo. Porém, se transcendermos as palavras e, humildemente, procurarmos enxergá-las para além de palavras ocas de um asséptico estado de dicionário e de enciclopédia em que elas deveriam estar, então poderemos vislumbrar, ainda que de forma bruxuleante, os estonteantes vôos e os abissais mergulhos que a linguagem riobaldiana pode nos proporcionar.
No dizer de Gramsci, “se é verdade que toda linguagem contém os elementos de uma concepção do mundo e de uma cultura, será igualmente verdade que, a partir da linguagem de cada um é possível julgar a maior ou menor complexidade da sua concepção do mundo” (Gramsci, p. 95).
Nada mais verdadeiro que o caso de Riobaldo. No entanto, se julgarmos que a linguagem de Riobaldo é, paradoxalmente, simples (em seu aspecto gramatical) e complexa (em sua intencionalidade) — e uma brevíssima interpretação da mesma assevera esse veredicto — implica que sua concepção de mundo também o é, o que nos leva a crer, ao contrário de Gramsci, que a complexidade não reside numa determinada concepção de mundo, mas no próprio ser humano, possuidor de uma linguagem também complexa. Vejamos, por exemplo, o que o próprio Riobaldo nos diz sobre sua formação:
“Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e doutoração. Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho tracei bonitos mapas. Ah, não é por falar: mas, desde do começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia — que também diziam. Tempo saudoso! Inda hoje, apreceio um bom livro, despaçado (Grande Sertão: Veredas, p. 30).
Se julgássemos Riobaldo apenas pelo aspecto gramatical de sua linguagem, certamente não vislumbraríamos as complexas atualidades e potencialidades que ele possui, mas, se nos permitirmos um átimo de paciência e atenção às palavras que esse sertanejo enuncia, em quanta sabedoria penetraremos! Exercitemos, então, um pouco dessa paciência e dessa atenção às suas palavras.
Riobaldo nos diz que navega mal nas “altas ideias”, ou seja, julgando-se um simplório sertanejo não se vê com erudição bastante para discutir certos temas e assuntos que caberiam, sim, segundo ele, a pessoas de “muita leitura e suma doutoração”. Por essa afirmação, ele reconhece e reproduz um lugar comum presente em nossa cultura, o da separação entre os que sabem e os que não sabem e entre os que pensam e planejam e os que executam. Quando afirma que não está analfabeto, que possuiu um mestre e que teve acesso a um currículo mínimo, composto por gramática, as operações, regra de três, geografia e estudo pátrio, Riobaldo revela-nos, também, um outro chavão amplamente difundido e, quiçá, cristalizado no imaginário de tantos outros riobaldos, de que há um lugar específico e privilegiado para o alcance da “suma doutoração”: a escola.
Pensamos, no entanto, que é importante ressaltar, aqui, a necessidade de não absolutizar a vinculação entre processo educacional e escola, para que não reduzamos o sentido amplo e profundo do conceito de educação. Ou seja, o âmbito escolar não é o único e, muitas vezes, nem é o melhor espaço para a formação humana. E nisso,
Riobaldo — “O senhor sabe: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo”(Grande Sertão: Veredas, p.24) — e Gramsci — “Não sou conhecido fora de um círculo bem estreito: o meu nome é estropiado de todos os modos mais inverossímeis: Gramasci, Granusci, Grámisci, Granínsci, Gramásci, até Garamácon, com todos os intermediários mais bizarros” (In: Bosi, 2003, p. 432) — concordam plenamente.”
Mencionemos aqui — é óbvio que com télos diferenciados — uma aproximação interessante entre o olhar de Riobaldo e o ponto de vista gramsciano acerca da importância da instituição escolar. Riobaldo, a partir de sua breve e rudimentar experiência com a escola, passa a perceber a mesma, como uma escala — hierárquica e discriminadora — necessária para o alcance de níveis superiores de conhecimento e distinção social, tratando-a, portanto, poderíamos dizer, com uma visão redentora e salvífica do ser humano (em certo momento da saga riobaldiana, um de seus chefes e companheiros de jagunçagem, Zé Bebelo, vaticina: “O que imponho é se educar e socorrer as infâncias deste sertão!” (Rosa, 2001, p. 413). Já Gramsci (1999), filósofo, crítico, tendo estudado não só em escola, mas em faculdade, vê na instituição escolar, uma organização cultural possibilitadora da construção de uma concepção de mundo unitária, coerente e homogênea, na busca da superação da cisão entre as massas populares e os grupos intelectuais, atribuindo-lhe, portanto, um papel revolucionário. Sobretudo, pela capacidade que a escola tem de alcançar um enorme contingente de pessoas, durante um período, relativamente, longo.
Talvez seja o caso de dizer que o encontro inaudito, entre Riobaldo e Gramsci, que promovemos nesse artigo, seja, justamente, o encontro do sertanejo e do sumo doutor. Sabemos que Riobaldo tem muito a aprender com Gramsci, resta saber se o pensador italiano tem algo a aprender com o sertanejo “sofismado de ladino”, já que, para este, “mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende” (Rosa, 2001, p. 326).
Acreditamos que agora seja um momento oportuno para a discussão de uma questão cara ao pensamento gramsciano, a questão da consciência crítica. Tomemos uma interrogação bem elaborada por Gramsci, que dá um bom discernimento de sua preocupação com essa temática:
“(...) é preferível ‘pensar’ sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, ‘participar’ de uma concepção de mundo ‘imposta’ mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (...), ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade? (Gramsci, p. 94)
Essa contundente inquirição de Gramsci deixa qualquer leitor sensato com uma única alternativa de resposta: é preferível ser o guia de si mesmo, tendo como iluminador de sua trajetória a sua própria consciência crítica. Mas a complexidade que caracteriza o ser humano, que constrói um mundo humano não menos complexo, não é constituída somente pela luz da razão e do esclarecimento, mas é habitada também por neblinas e trevas que obnubilam e turvam a visão de homens e mulheres que buscam realizar suas travessias nesse grande sertão, que é o mundo, através de suas, às vezes claras, às vezes escuras, veredas:
“Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas — e só essas poucas veredas, veredazinhas” (Rosa, 2001, p. 116). O sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena (Grande Sertão: Veredas, p. 538).”
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Antonio Gramsci, pensador italiano: é preferível ser o guia de si mesmo, tendo como iluminador de sua trajetória a sua própria consciência crítica |
Ainda sobre esse claro-e-escuro que envolve as pessoas e o mundo, Riobaldo também nos diz:
“Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero todos os pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado... (Grande Sertão: Veredas, p. 237).
É verdade que Riobaldo não consegue fazer uma sistemática análise das circunstâncias humanas e mundanas que lhes cercam: “Natureza da gente não cabe em nenhuma certeza” (Grande Sertão: Veredas, 2001, p. 433). Porém, elas não lhes passam despercebidas, como se ele fosse um autômato. O humano que nele habita irrompe insatisfeito e perplexo, não através de questões logicamente bem formuladas, mas de interrogações metaforicamente especulantes, feitas de espanto e susto, pois o “mundo misturado” habitado por ele, cobra-lhe um arranjo que está para além de sua humana possibilidade. Entretanto, isso não o faz capitular, ele encontra ainda no mais recôndito de si, um novo sentido para o seu mover-se na vida e no mundo: “Não convém a gente levantar escândalo de começo, só aos poucos é que o escuro é claro” (Grande Sertão: Veredas, p. 207) e “o real não está nem na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (Grande Sertão: Veredas, p. 80).
Riobaldo não é, certamente, e ele tem consciência disso, um sumo doutor. É, assumidamente, um pobre coitado sertanejo. Mas, desconfiemos dessa assunção autocomiserada: pode ser que — e suas enunciações revelam muito disso — o protagonista da saga rosiana esteja apenas tentando esconder o quanto realmente sabe, e nós sabemos que ele sabe muito. Observemos, por exemplo, esses trechos de sua prosa-poética em Grande Sertão: Veredas:
“Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa (p. 31). Quem desconfia, fica sábio (p. 154). O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre — o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!” (p. 31).
De repente, podemos observar, que a aquela auto-piedade se esvai, e vemos um homem reconhecendo seu próprio valor e mérito. Podemos perceber até mesmo uma leve camada de um verniz de orgulho, por ele ser quem é, assim, do jeito que ele é:
“Eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo...” (Grande Sertão: Veredas, p. 24).
Dessa forma, será também um equívoco supor que Riobaldo esteja submetido o tempo todo à opinião e ao ditame alheios, ele também reconhece os perigos de tais injunções e estabelece limites para as mesmas. Disso dá conta, por exemplo, a amizade com o seu Compadre Quelemém, por quem ele tem uma admiração e uma confiança enormes nas discussões de ordem religiosa e espiritual. Quelemém é tido mesmo por Riobaldo, como um grande mestre e conselheiro: “Compadre meu Quelemém é quem muito me consola — Quelemém de Góis” (Grande Sertão: Veredas, p. 25). Mas mesmo com a fraterna amizade e o respeito ao saber de Quelemém, Riobaldo não abre mão de seus próprios critérios:
“Compadre meu Quelemém nunca fala vazio, não substrata. Só que isto a ele não vou expor. A gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio — essa é a regra do rei!” (p. 39), pois, “cada um só vê e entende as coisas dum seu modo” (p. 33).
Talvez possamos nomear essa forma riobaldiana de ser e viver de “folclore”, tal como Gramsci o conceituou, ou seja, “o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir” (Gramsci, p. 93), que matiza todos os homens como filósofos “espontâneos”. Riobaldo é, certamente, um deles. A bizarra constituição de sua formação cultural
— pois,“(...) nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas e estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia (...).” (Gramsci, p. 95) —
faz de Riobaldo um exemplar típico do senso comum. Ou seja, um co-partícipe de uma determinada concepção de mundo de um determinado grupo social que compartilha uma mesma forma de pensar e agir (Gramsci, 1999). Porém, ao exercitar as suas perplexidades em relação às suas circunstâncias, Riobaldo busca, à sua maneira, aquela consciência crítica a que tanto Gramsci nos exorta. Ao fazê-lo, o herói rosiano começa a transcender o nível de um certo conformismo e resignação que lhe perturba o espírito. Quer agora compreender o mundo além de sua aparência, quer desanuviar a neblina que o encobre, pois, para ele, “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe pra gente é no meio da travessia” (Grande Sertão: Veredas, p. 80). Nessa travessia, ele vai, aos poucos, alcançando o que Gramsci chamou de
“(...) o núcleo sadio do senso comum que poderia ser chamado de bom senso e que merece ser desenvolvido e transformado em algo unitário e coerente.” (Gramsci, p. 98).
Façamos aqui uma ressalva importantíssima acerca dessa caminhada em direção ao bom senso, a partir do traçado de Riobaldo e da perspectiva gramsciana. Gramsci fala sempre de uma caminhada da superação da bizarrice do senso comum em direção ao seu núcleo sadio, o bom senso, a partir de um fundamento racionalista, ou seja,
“o convite à reflexão, à tomada de consciência de que aquilo que acontece é, no fundo, racional, e que assim deve ser enfrentado, concentrando as próprias forças racionais e não se deixando levar pelos impulsos instintivos e violentos” (Gramsci, p. 98).
Nesse aspecto, há uma retomada por parte de Gramsci, de um cânone fundamental da filosofia clássica: a razão. Para ele, o background organizador do mundo é tecido por um fio racional; para surpreendê-lo e desenredá-lo, o ser humano precisa utilizar-se de sua ratio, iluminadora secular das trevas humanas e mundanas, afogando em si mesmo os impulsos instintivos e violentos e superando as paixões bestiais e elementares (Gramsci, 1999).
Para Riobaldo, o desenredo da meada desse “mundo misturado” é muito mais complicado e, certamente, para essa hercúlea empresa, não é possível fiar-se unicamente na razão. Para a compreensão de um mundo complexo, o ser humano precisa compreender-se também complexo, o que lhe exige reconhecer-se em sua integridade, incluindo-se aí, “a megera cartesiana” (Grande Sertão: Veredas, p. 90). Poderíamos dizer que para o nosso filósofo “espontâneo” do Grande Sertão, a compreensão e o desvelamento do mundo estão subordinados, antes mesmo que à razão, à intuição, à revelação e à inspiração. Vejamos se essas “falas” riobaldianas dão boa confirmação disso:
“Mas Zé Bebelo era projetista, Eu, eu ia por meu constante palpite” (p. 527); “A vida é muito discordada. Tem partes. Tem artes” (p. 520); “A vida é um vago variado” (p. 516); “O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa...” (p. 511); “A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação — porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada” (p. 477).
E, ainda mais profundamente:
“Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa — a inteira — cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada pessoa viver — e essa pauta cada um tem — mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que, para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa. Aquilo que está no encoberto; mas, fora dessa conseqüência, tudo que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e visível mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua continuação, já foi projetada, como o que se põe, em teatro, para cada representador — sua parte, que antes já foi inventada, num papel... (Grande Sertão: Veredas, p. 500)”
Pode parecer, a princípio, que as proximidades entre o itinerário racional gramsciano e a travessia metafísico-religiosa riobaldiana tenham se separado de vez e agora trafegam em azimutes paralelos, ou seja, por caminhos que jamais se cruzarão outra vez. Pensar assim, é, entretanto, negar o que há de mais abundante e precioso em suas perspectivas: a complexidade. Posto que, se retomarmos o índex gramsciano caracterizador da filosofia “espontânea”, já mencionado nas primeiras páginas desse artigo, veremos que a mesma está presente também
“na religião popular e, conseqüentemente, em todo sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por ‘folclore’”
e, em outro momento, ele declara:
“Quem fala somente o dialeto ou compreende a língua nacional em graus diversos participa necessariamente de uma intuição do mundo (...)” (Gramsci, p. 95).
Portanto, o fato de Riobaldo crer mais em sua intuição, esperar que o mundo se mostre através de revelações e assentar o seu juízo em manifestações inspiradoras, não o destrona da condição de filósofo “espontâneo”. Por sua vez, e isso já foi mencionado antes, o nosso herói sertanejo não deixa de reconhecer a importância da intelectualidade e da erudição, valores esses que ele também não deixa de exaltar em seu interlocutor invisível:
“Ah, eu só queria era ter nascido em cidades, feito o senhor, para poder ser instruído e inteligente!” (Grande Sertão: Veredas, p. 423); “Se vê que o senhor sabe muito, em idéia firme, além de ter carta de doutor. Lhe agradeço, por tanto. Sua companhia me dá altos prazeres” (p. 41); “Em termos, gostava que morasse aqui, ou perto, era uma ajuda. Aqui não se tem convívio que instruir” (p.41).
Para concluir essa discussão, que teve como mote o inusitado e curioso silogismo cunhado por nós (“Todos os homens são filósofos. Riobaldo é homem. Logo, Riobaldo é filósofo”), partiremos da seguinte citação de Gramsci:
“O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que é realmente, isto é, um ‘conhece-te a ti mesmo’ como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer, inicialmente, essa análise” (Gramsci, p. 94).
A nosso ver não é possível iniciar nenhum processo de elaboração crítica sem o defrontar-se nosso com uma dúvida, com uma perplexidade, com um estranhamento, com um espanto. Da suscitação, em nós, dessa dúvida, dessa perplexidade, desse estranhamento, desse espanto, surgem inumeráveis perguntas, questionamentos, inquirições, interrogações. As perguntas, os questionamentos, as inquirições, as interrogações que fazemos aos outros e, sobretudo, a nós mesmos, nos conduzem ao querer conhecer o desconhecido, a querer desvelar o Real para além do que já sabíamos sobre ele. Em outras palavras, nós queremos encontrar a Verdade. No entanto, uma vez acercados dessa Verdade, eis que sentimos, num outro determinado momento, que ela já não nos satisfaz, então, nós recomeçamos o ciclo que nos fez duvidar da verdade, que nos faz fazer novas perguntas, que nos impôe o querer conhecer algo mais, que nos faz desvelar mais profundamente o Real, que nos faz encontrar outra Verdade. Como diria Riobaldo,
“o mais importante e bonito, do mundo é isto: que as pessoas não estão terminadas — mas elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me alegra, montão.” (Rosa, 2001, p. 39).
É o exercício da busca do autoconhecimento estabelecido pelo imperativo do “Conhece-te a ti mesmo” socrático (eis aí, outro cânone da filosofia clássica presente em Gramsci). Pois é a esse exercício que Riobaldo se lança durante toda a sua travessia pelo Grande Sertão, buscando a compreensão de si mesmo e do mundo que habita, pois, ele crê que, para “muita coisa importante falta nome” (Rosa, 2001, p. 125):
“E amor é isso: o que bem-quer e mal faz? (Rosa, 2001, p. 566) Quem sabe, tudo o que já está escrito tem constante reforma — mas que a gente não sabe em que rumo está — em bem ou mal, todo-o-tempo reformando? (Rosa, 2001, p. 559) Se a vida coisas assim às horas arranja, então que segurança de si é que a gente tem? (Rosa, 2001, p. 498) Ou são os tempos, travessia da gente? (Rosa, 2001, p. 418) Mas coragem não é meio destino? (Rosa, 2001, p. 415) O que é que uma pessoa é, assim por detrás dos buracos dos ouvidos e dos olhos? (Rosa, 2001, p. 373) O que era isso que, que a desordem da vida podia sempre mais do que a gente? (Rosa, 2001, p. 370) Mas, me diga o senhor: a vida não é uma cousa terrível? (Rosa, 2001, p. 323) Homem foi feito para o sozinho? (Rosa, 2001, p. 202)
Então, se considerarmos que a consciência crítica inicia-se por uma dúvida, que conduz a uma pergunta que nos cala fundo, o espírito de Riobaldo está prenhe delas. Assim como um bom filósofo, ele tem muitas perplexidades e pouquíssimas certezas. Isso o torna um guia de si mesmo, apesar de sua caleidoscópica forma de aceder ao mundo. Como ele mesmo declara, “vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.” (Rosa, 2001, p. 429).