Valdivino Braz - Poema



O mar dentro das palavras


O mar explode
na milenar solidez das rochas,
a onda se estilhaça com os seus cristais
e a louça de suas conchas.
Do limbo abissal do oceano,
emerge o carbono,
o espírito
infinito da escrita.

Uma voz vinda do mangue sangra
emaranhado de vocábulos.
Arrebentam-se no mar as ondas de algas
oriundas do fundo negro de tudo.
Surge do limbo das águas
o ser das palavras
que se abrem feito feridas.

O mar se atira
num jorro de espuma e calcário.
O barco espatifado aderna
ao modo de um aleijado,
ou manco de uma perna,
que se deita na praia
dos esquecidos.

O ser solitário contempla a fúria
das ondas fragmentárias
e murmura
ao sentir o mar dentro de si.
Um grão de areia
em sua mão é o mundo e o enigma de tudo.
Uma pedrinha de nada,
polida pelas águas.
O ser guarda a pedrinha na boca e se volta
para dentro das palavras.

Arabescos na areia são sinais de siri.
Albinos caranguejos se movem por ali.
As bromélias brotam e porejam a pele da noite,
com brotoejas.
Beijos bivalves e convexos
colocam acentos circunflexos
numa conversa de amêijoas.

Marulhos.
O ser a esmo perambula
com a memória das águas
nas cercanias de si mesmo.
O ser na praia vazia se toca
com a pedra marinha na boca.

O ser se sabe
na pedra de sua água.
Um nada de tudo
que é tudo e nada.
O mar, a vida, a onda
e o nada contidos na pedra.
Uma pedrinha de nada,
polida pelas águas.
Reluz nas trevas das palavras.

In. Revista Poesia Sempre. Nº 31. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2009, p.161-163.
Fonte da imagem: Icultgen

Vinícius de Moraes - Poeta



O operário em construção


E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.


Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

Fonte: Vinícius de Moraes
Imagem: operários

Marcos Caiado - Poema




Agonizante



deus está morto
num barraco do morro
deus morreu torto
rindo da cara do povo.

assim como eu,
não tinha o corpo fechado
deus morreu aqui do lado
aonde o asfalto não chega
deus era mulher
e tinha a pele negra.

deus está ferido
numa travessa da lapa
vestido de azul e branco
vinha da grande passeata
Imposto pago, carnê em dia
seguia rindo pela faixa
quando foi atingido(quem é o inimigo?!)
por um projétil de borracha;

agonizante,
caído no chão,
deus foi obrigado
a abaixar os olhos
e pedir perdão.


Imagem retirada da Internet: projétil

Luís Augusto Cassas - Poema




COVARDIA




Eu vi a Policia Militar de São Paulo, fortemente armada, em carros blindados e a pé,
portando escudos, pesados cassetetes, sprays de pimenta, gás lacrimogêneo, e ódio,
muito ódio, investir contra os jovens estudantes - manifestantes da greve contra o aumento de passagens e melhora da qualidade de transportes coletivos, transeuntes,
pessoas que estavam nas redondezas e nos lugares, de todas as idades, credos, cores, que sofreram violentos espancamentos, humilhações, constrangimentos de ir e vir, pensando que por viverem em uma democracia, podiam protestar, reclamar direitos, insurgir-se contra o establishment- e vi, entristecido, como o poder da flor, nas mãos de uma jovem, continua frágil ante o poder das botas.

Sincronicamente, em minha temporada paulista, vi,a primeira vez na terça à noite, na Avenida Paulista vindo da Casa das Rosas no sentido Livraria Cultura: na segunda vez,
na quinta à noite, vindo de sessão-cinema do Shopping Frei Caneca, entrando na Maria Antônia via Augusta para atingir a Paulista, novamente, vi a Policia militar de São Paulo, reluzentemente armada, com contingente populacional superior trinta vezes superior aos manifestantes, transformar em praça de guerra, grandes regiões centrais da Pauliceia Desvairada, de Mário, com grande risco de morticínio, pela incompetência e omissão dos escalões mais altos do poder público de criarem canais apropriados para a pacificação e resolução dos conflitos que atingem não só aos estudantes mas a população.

E envergonhei- me mais uma vez ao perceber que continuamos ancestralmente frágeis, impondo, apesar de toda a experiencia e comícios íntimos, o discurso do poder contra o amor, da força contra a suavidade,da violência contra a paz.

E constatei, sentindo o efeito do gás lacrimogêneo da alma, que a melhor postura da esquerda, apesar de todas as evoluções e revoluções, ainda é o coração !

Imagem retirada da Internet: Batalhão de Choque

Valdivino Braz - Poema

Foto by Giacomo Capraro














Aprendizagem das mãos


Cedo fui levado por estranhos,
num cavalo que ainda assombra
as noites da minha infância.

Cedo comecei a apanhar do mundo,
e logo aprendi meus medos
às mãos humanas
que agridem.

Tarde aprendi as próprias mãos
como armas para o revide,
mas o pouco que bati, doeu-me,
e diminuiu-me.

Por isso, amansei minhas mãos,
e adestrei-as para os ofícios
mais nobres.

Fi-las ferramentas
no corpo da vida,

e soube-me operário
na oficina da palavra.


In. A Palavra por desígnio (1983).

Heleno Godoy - Poema

Family Album

























Álbum de Família



Esta menina com uma flor na mão
não sabe ainda, mas será minha mãe.
Aquele menino lá, de uniforme, será
um de meus muitos tios.
De um lado como do outro, não
faltarão parente: este meu avô
aqui, de bigode, ou esta avó magra,
que irá morar longe, num sanatório.
Numas outras fotos, estes outros
avós, que a sorte e a saúde muito
mais tempo mantiveram por perto.

De uma caixa de sapatos é que saem,
pois lá guardadas, todas essas fotos
velhas, algumas com rasgados, outras
amareladas, outras tantas desfocadas.

Não estão num álbum dispostas,
ordenadas e exibidas. Não. Aqui,
nessa caixa, muito mais que num
álbum organizado, encontro certas
as biografias que me fascinam,
as lembranças embaralhadas,
roupas às vezes em desalinho,
instantâneos preciso, muito
mais nítidos que fotos de estúdio
ou de festas fartas, de aniversários
ou casamentos, batizados, enterros.


In. A Ordenação dos Dias. Goiânia: Kelps/UCG, 2009, p.p.27-29.

Luiz de Miranda - Poema






Lá estão os trens





Lá estão os trens,
sob o calor da ausência,
num isolamento de ferro.
Eles carregam a dor,
a indagação dos caminhos,
a tristeza, a alegria,
o espelho vivo das memórias.
Viajamos todos
num vagão de carga.
Lá vão os trens
em sua estrada interminável.


Imagem retirada da Internet: railroad train

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