O céu é dos pássaros, mas a todo instante eles se chocam com aviões, no instantâneo dos sonhos, e se arrastam como cavalos selvagens. Assestei meu olhar para lá do que eu podia discernir, até atingir os seus cantos, até que um silêncio de estrondo apagasse o meu coração, quando as pedras borradas de sangue formaram dissonantes acordes como flores devotas em precipício. Eu joguei pedra nos pássaros, mas eles nunca explodiram, só aí me dei conta: Só sobraram os aviões, essas máquinas de fogo, voando a jato, num lapso de tempo, tão mortíferas como o veneno da rastejante serpente que sonhou comigo. Assim, apesar da fome que a mim me consumiu, senti inveja dos pássaros, emudecido me pus, a ouvir o lamento dos aviões, quando cruzaram o instante da minha ignorância. Agora me pergunto: para onde foram todos os passarinhos, que o meu olhar tão pálido não vê? Só ouço ruídos e um vazio de avestruz. @franciscopernafilho

Foto: Os pássaros no céu - Pixabay.com

Gabriel García Márquez




 "Sem dúvida a primeira notícia sensacional que se produziu - depois da criação - foi a expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Teria sido uma primeira página inesquecível: Adão e Eva expulsos do Paraíso (em oito colunas). 'Ganharás o pão com o suor do teu rosto', disse Deus. - 'Um anjo com espada de fogo executou ontem a sentença e monta guarda no Éden. Uma maçã, a causa da tragédia."

(Gabriel García Márquez)
10 de agosto de 1954, El Espectador, Bogotá.
Trad.: Joel Silveira, Léo Schlafman, Remy Gorga, Filho.
Editora Record, 2020.
Foto @franciscopernafilho

 



Sentença social


Fora pego cheirando cocaína, ainda que negasse.
Levado para o presídio, durante anos cheirou o pó da cela, dos corredores e do pátio.
Foi o que disseram.
Um dia, sem que soubesse, deram-no por morto.
O diário local estampou na manchete:
Do pó ao pó.
Texto e fotografia: @franciscopernafilho

Francisco Perna Filho

 


Purgatório


A moça colhendo a bosta do cão,
A mosca na boca da moça,
A sopa, sem mosca e sem pão,
O pão, sem mosca e sem boca.
O cão, se sentindo cuidado,
sente-se livre para borrar a calçada.
A moça, com total afeição,
contabiliza sua dura jornada.
Do outro lado, na antiga estação,
olhos cansados espiam assustados,
É o poeta esquálido, sem eira nem beira,
na fila da carne, exercitando a palavra esperança.

Desenho: caneta sobre guardanapo @franciscopernafilho

Francisco Perna Filho

 



Ruídos

Ainda na ativa,
a septuagenária professora,
que ficara surda,
aprendeu leitura labial.
Com a peste,
vieram as máscaras
e as restrições.
Foram-se as bocas
e a esperança.
Tentou telepatia,
em vão.
Perdeu o emprego,
e, debilitada,
morreu na fila do pão.
Era sexta-feira!.

Foto @franciscopernafilho 

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