De Inverno, quando o tempo estava
sereno e havia sol, a minha mãe levava-me, antes do cair da tarde, até Lungarno[1],
para ver quem voltava das Cascine[2].
Naqueles tempos, senhores e estrangeiros todos os dias se dirigiam, como num
ritual, ao longo do rio, até o túmulo do príncipe indiano, e voltavam depois
juntos para a cidade. Aquele festivo regresso era um dos espetáculos mais caros
aos Florentinos, que então se contentavam com pouco. Até os mais pobres assistiam
com agrado àquele desfilar de carruagens reluzentes, puxadas por parelhas a
trote e guiadas por cocheiro majestosos, de botas altas e cocares. Lá dentro,
seguiam belas senhoras, luxuosamente agasalhadas, segundo a moda de então, e
sorridentes senhores de barba loira, com altas e vistosas cartolas na cabeça.
Passavam ainda, à mistura, carros de aluger e de praça com passageiros de menor
categoria, mas o conjunto assumia uma nota alegre de nobreza, de graça e de
fausto. Entre as demais, destacava-se a carruagem do senhor Livingstone,
conhecido em toda Florença pelo nome de “Americano”, que conduzia com vaidosa
mestria uma equipagem de seis ou oito cavalos baios ou malhados.
O barulho das rodas e dos cascos
ferrados, o tinir dos guizos, o ruído dos passos e das vozes dos espectadores
davam àquele regresso solene um ar de festa de toda a gente.
Sempre que a minha mãe me levava,
naquela hora de magnificência, aos Lungarni,
vestia-me melhor do que habitualmente. Era ela que me convencionava, com
bocados de veludo velho, uns chapéus redondos, que mais ajudavam a realçar a
beleza dos meus cabelos compridos e encaracolados, que em macios anéis me caíam
pelas costas. Para a minha mãe, era muito importante que eu parecesse um menino
rico e sobretudo forasteiro: a cabeleira loira e olhos azuis favoreciam aquela
sua inocente mania ou vaidade. E, de facto, por vezes, um outro estrangeiro
dirigia-me algumas palavras numa língua que desconhecíamos, mas que, pelo
sorriso que os acompanhavam, se entendia serem de cumprimento.
Giovanni Papini |
De bom grado nos encostávamos, para
gozar melhor a luxuosa torrente de carruagens, à frontaria de um grande hotel,
de bossagens de mármore branco, e eu gostava de acariciar com as mãos aquele
mármore liso, aquecido pelo sol. Um dia, quando estávamos encostados à tal
parede branca, passaram junto a nós dois homens de elevada estatura, sem dúvida
estrangeiros. Um deles, vendo-me parou e olhou para mim. Também eu, um tanto
admirado, o fixei até que me ficasse gravada na memória sua estranha figura.
Usava lentes muito grossa e uns enormes bigodes; o rosto era largo e gordo, mas
grave e um pouco triste. De repente estendeu a mão direita, acariciou por
momentos, com afectuosa delicadeza, os meus caracóis loiros e disse umas
palavras ao companheiro. Depois, ambos continuaram o seu caminho e não os vi
mais. Minha mãe estava toda radiante com aquela homenagem, se bem que habitual,
ao seu filho, tão diferente dos outros. Por muito tempo ficou em mim a estranha
imagem daquele homem de grandes bigodes, que me tinha olhado e afagado, tanto
mais que semelhantes gestos de admiração me eram dirigidos quase sempre por
mulheres.
Muitos anos depois, aconteceu-me
ver num livro um retrato parecidíssimo com o desconhecido que tinha parado
diante de mim, naquele dia distante. O coração sobressaltou-se-me de comovida admiração: era o retrato de
Frederico Nietzsche.
Friedrich Nietzsche |
Não seria acaso um engano da
minha fantasia juvenil, tão seduzida naquele princípio de século pelo poeta
filósofo de Röcken? Mas alguns anos depois, quando foram publicadas as cartas
de Nietzsche, tive a confirmação de que o incógnito acariciador dos meus
cabelos fora, na verdade, o autor de Zaratustra.
Precisamente naquele ano da minha recordação, um alemão, seu admirador, Paulo
Lanski, diretor do Hotel da Floresta de Vallombrosa, convidara-o como seu
hóspede, e Nietzsche passara alguns dias em Florença, pela última vez. E ainda
hoje estou certo de que o futuro escritor da História de Cristo foi afagado um instante, num claro pôr-de-sol de
Outono, pela mão que escreveu O
Anticristo.
Tradução
de Armandina Puga
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