Gabriel García Márquez




 "Sem dúvida a primeira notícia sensacional que se produziu - depois da criação - foi a expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Teria sido uma primeira página inesquecível: Adão e Eva expulsos do Paraíso (em oito colunas). 'Ganharás o pão com o suor do teu rosto', disse Deus. - 'Um anjo com espada de fogo executou ontem a sentença e monta guarda no Éden. Uma maçã, a causa da tragédia."

(Gabriel García Márquez)
10 de agosto de 1954, El Espectador, Bogotá.
Trad.: Joel Silveira, Léo Schlafman, Remy Gorga, Filho.
Editora Record, 2020.
Foto @franciscopernafilho

 



Sentença social


Fora pego cheirando cocaína, ainda que negasse.
Levado para o presídio, durante anos cheirou o pó da cela, dos corredores e do pátio.
Foi o que disseram.
Um dia, sem que soubesse, deram-no por morto.
O diário local estampou na manchete:
Do pó ao pó.
Texto e fotografia: @franciscopernafilho

Francisco Perna Filho

 


Purgatório


A moça colhendo a bosta do cão,
A mosca na boca da moça,
A sopa, sem mosca e sem pão,
O pão, sem mosca e sem boca.
O cão, se sentindo cuidado,
sente-se livre para borrar a calçada.
A moça, com total afeição,
contabiliza sua dura jornada.
Do outro lado, na antiga estação,
olhos cansados espiam assustados,
É o poeta esquálido, sem eira nem beira,
na fila da carne, exercitando a palavra esperança.

Desenho: caneta sobre guardanapo @franciscopernafilho

Francisco Perna Filho

 



Ruídos

Ainda na ativa,
a septuagenária professora,
que ficara surda,
aprendeu leitura labial.
Com a peste,
vieram as máscaras
e as restrições.
Foram-se as bocas
e a esperança.
Tentou telepatia,
em vão.
Perdeu o emprego,
e, debilitada,
morreu na fila do pão.
Era sexta-feira!.

Foto @franciscopernafilho 

POESIA

 




A lírica existencial de Maria Lúcia Gigonzac



A Revista Banzeiro traz a poesia de Maria Lucia Reis Duarte Gigonzac e ilustração do Artista Plástico e Arquiteto M.Cavalcanti, que gentilmente nos presenteou com os desenhos da séria "Linhas e Sombras" - caneta acrílico sobre papel. Os poemas aqui apresentados são inéditos e foram escritos em diversas épocas.

Maria Lúcia nasceu em 1947, em Icem (SP). Ainda criança, acompanhando os pais, mudou-se para Minas e, depois, para Goiás. Em Goiânia, fez o segundo grau e, logo após, começou um curso de física, na Universidade Católica. Em 1972, mudou-se para ilha da Gudalupe, Departamento francês na América Central, onde se casou, teve dois filhos. Naquela ilha, cursou francês e história da arte, foi quando começo a pintar. Ao cabo de quatro anos, mudou-se para a França metropolitana, terra que viu nascer sua filha caçula. Lá morou primeiramente em Bordeaux, depois em Créteil, em Rueil-Malmaison, até desaguar em Taverny, no Val d’Oise. No ano letivo de 78/79, na Universidade de Villetaneuse (Paris XI). Em 1980, trabalhou como redatora de um jornal português, A Ponte, editado na França. Transferiu-se para a Universidade de S. Saint-Denis (Paris VIII) onde fez um DEUG(diploma de estudos universitários gerais) de português. Logo após, começou o curso de Letras (francês). Fez o DEUG de francês, depois a licenciatura e,. em seguida, foi aceita para o mestrado em literatura francesa. Na França, estudou artes: desenho, aquarela, pastel e óleo sobre tela. Retornou ao Brasil, quando dedicou-se à pintura, ao ensino de francês, traduções, e, paralelamente, à literatura.


Com inúmeras exposições no Brasil e no exterior, M.Cavalcanti, que também é Arquiteto, destaca-se como um dos mais conceituados artistas plásticos contemporâneos do Estado de Goiás. Nasceu em Uberlândia- MG, em 1956, e reside em Goiânia, desde 1960. Já realizou dezenas de painéis, inclusive na sede nacional da OAB, em Brasília, além de esculturas e murais. Obras de sua autoria compõem acervos, entre outros, da University of Wyoming Art Museum, em Laramie (Estados Unidos); Banco Interamericanos de Desenvolvimento BID, em Brasília; Palácio das Esmeraldas Goiânia; Unesco, no Rio de Janeiro; Museu de Arte de Goiânia; Fundação Jaime Câmara e Fundação Cultural de Brasília. Participou de exposições nos Estados Unidos, França, Goiânia, Brasília, Curitiba, São Paulo e Belo Horizonte.



 MEU MUNDO



De sonho e fantasia o mundo eu revesti;
Edênico jardim, arco-íris de cores,
Campina verdejante onde a viver mil flores
Dançando sob a brisa, a sorrir entre si.

Riachos de cristal farfalham a correr;
Adejam colibris e borboletas voam 
N'amplos panapanãs canções aves entoam
Com plumas de leveza as asas a bater.

D'Aurora ouro em pó lá jorram sobre os campos
Centelham do orvalho, em gotas, diamantes,
E no cair da noite esvoejam cintilantes
Em bandos céus afora, a faiscar, pirilampos!

Imperecível mundo, em beleza e harmonia
Quimérica visão de sonho e fantasia.

Gyn, em 2020





ESTRADA DA VIDA

Vinhas por onde eu ia, em mesma estrada,
Teu fardo era de dor, desilusão.
A tua fronte curvada era sulcada, 
Estampando tristeza e solidão.

Eu, porém, ia alegre em minha senda,
Vendo-a bordada em brilho e vastidão
Contente prossegui, e em oferenda
Levei minha juventude e o coração.

E ao regressar de tão longa jornada,
Perdera no caminho as vaidades,
Como o teu, meu semblante era marcado

Tinha eu também a face maltratada
Pelas rodas do tempo e as saudades
Perdidas n'algum canto do passado.

Gyn, 2017








SER DE NÉVOA

Quisera estar no infinito
De nebulosas, estrelas,
Pois que não posso retê-las
No meu espaço restrito

E ser só brilho e leveza
Fagulhas do firmamento
Livre como um pensamento
De harmonia e de pureza.

Viver no vácuo silente,
Nunca mais sentir saudade
Ser só de luz, sem presente,
Sem passado e sem idade.

Ser de névoa novamente
Por toda a eternidade!

Gyn, 2016.





HORAS AMARGAS

O amargo das horas amargas
Que fica na boca.
Escondido atrás do sorriso
Estampado no rosto,
Disfarçando o gosto,
Um gosto de fel.

Onde o mel?

Onde a leve doçura
Dos dias de encanto?

Onde encontrar um tanto
Por pouco que seja
Da cereja o gosto?

Ou um amargo doce,
Uma tristeza alegre
Por pouco que fosse!




MARCAS QUE FICAM

Essa marca que ficou no rosto
Reflete o desgosto
Fechado no  peito,
Escondido, abafado,

Qual vaga bravia
A rebentar sombria
Apagando o farol,
esboroando a rocha
e sempre a voltar.

Sempre a retornar
sem ter alvedrio,
mesmo que fugidio,
sem poder parar.





VIDA: UM SÓ DIA

Logo ao romper d'aurora o fulgurante dia
Vestido de Esperança, em cores e perfumes,
Esparzindo no mundo o canto e a alegria,
Radiante é a manhã, sem mágoas e queixumes.

O sol a pino vai, mas 'inda é bela a tarde,
Envolta toda em seda, ornada em pedraria
Tomada de ilusão, em desejo ela arde;
Ter o mundo a seus pés, por certo gostaria.

Mas o sol tão depressa afunda-se no Oeste,
E o dia vai morrendo em lânguidos suspiros;
Escuro é seu véu, negra mortalha veste,
Envolve-o triste bruma; o céu lhe oferta círios.

Esperança e ilusão lá jazem enterradas,
Silêncio e solidão é o que restou, mais nada.






AONDE VAIS?

Aonde vai o amor que
não escolhe findar,
 nem mesmo deixar para trás
um sorriso. Nem deixar um só beijo,
o beijo que era de mel,
 mesmo se tornado amargo
com gosto de fel
 eu o aceitaria
 em lugar do adeus.
Seu vazio deixado, lacrado,
enchendo o baú de recordações
que as rodas do tempo, como monções
colheram e reduziram a pó.

Por que fostes em náufrago
no barco da vida, se a senda é a mesma
para todo vivente, 
que a dada por chão, 
No forçado caminho,
Ladeado de espinhos,
Sem dele sair.
Sem ter alvedrio
Mesmo que fugidio.
Levado tu fostes
por mãos traiçoeiras,
Por mãos ceifadeiras.
Deixastes um vazio,
Na casa, no mundo.
Partistes, amor!  

O Tempo da Memória - Adalgisa Nolêto Perna


 



Sobre ser mulher...


Quero dizer que aos  53 anos, que hoje tenho, me sinto jovem, leve e solta! Mais ou menos... porque ser mulher nesta sociedade é  uma condição de plena resistência!  Resistência por ter de se (re)fazer  representada constantemente, sempre vista e ouvida! D. Adalgisa teve a felicidade de formar uma família de maioria feminina: Márcia, Magada, Magaly, Madel, Marja e, lógico, ela: Adalgisa! Manoel, Franciscos (02) e Maurício são os outros que compõem essa linda família! Mas o fato de ser composta da maioria feminina me enche de orgulho por poder assinalar o que é o empoderamento feminino: mulheres livres, resistentes (ao seu modo) e conscientes de sua identidade feminina em uma sociedade patriarcal. D. Adalgisa traz essa resistência em suas histórias contadas e, nessa sociedade de classe, de relações de poder, quero dizer do orgulho que sinto por ter minha sogra, aos quase 90 anos, lançando um livro. Uma obra que reflete seus dilemas cotidianos e , ao mesmo tempo, suas reflexões, sempre coerentes sobre  a vida.  Uma mulher que merece ser reconhecida pela sua capacidade de reflexão e de crítica a este mundo desigual, preconceituoso e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, acolhedor! A vida, doída, nos faz ser melhores!  Obrigada, D. Adalgisa pelas suas palavras!

Rosana Carneiro Tavares
Mestre e Doutora em Psicologia
Professora da PUC - Goiás


Resenha


"Tempo da Memória: estas palavras eu guardei para ti" reflete bem a sua trajetória, o seu olhar e criatividade, por isso é que o livro se constitui híbrido: poesia, crônica, contos, memória, tudo junto compondo um passado de muitas lutas e glórias. A memória refazendo os caminhos de uma genealogia, trazendo os fatos reais, mas também o ficcional, o que demonstra o seu poder criativo, sua atenção aos acontecimentos, ao vivido. Uma trajetória belíssima.

Dividido em três parte, o livro na sua organização contempla a Memória, Contemporaneidade, Velhice.  Escrito por uma mulher, aos quase 90 anos de vida, este livro na sua estrutura, nas epígrafes que traz, intertextualiza com Lygia Fagundes Teles, Clarice Lispector e Cora Coralina, mulheres brilhantes das nossas letras.

Na Primeira Parte, Memória, Adalgisa traz textos que refazem a trajetória de sua família: a origem paterna e materna; a ação pioneira do seu pai, Antônio Pinheiro Nolêto, e de sua mãe, Euzébia Teixeira Nolêto, em Miracema do Tocantins, e sua trajetória épica no Garimpo dos Piaus e em outros garimpos; o mergulho na densidade do sertão goiano (hoje Tocantins), o comércio de cristais e ouro, a fé inabalável de Euzébia, sua mãe, e a tenacidade e intrepidez de Antônio Pinheiro Nolêto, seu pai, em busca de melhores dias para a família, cujo propósito maior era a educação dos filhos.

Na segunda Parte, Contemporaneidade, reflete sobre temas atuais: as agruras provocadas pela Covid-19: perdas, danos e o medo que se abateu sobre todos nós. Reflete, ainda, sobre o papel da mulher na sociedade. Aproveita para falar, mais uma vez, sobre Miracema, desta vez nas suas Bodas de Ouro, e, em outra crônica, diria artigo de opinião, compara a cidade atual com a Miracema do passado.

Na Terceira  e última Parte, a Velhice, Adalgisa reflete sobre a sua vida, sobre perdas e ganhos. Fala do sofrimento de quando perdeu a visão de um olho e de como isso afetou sua vida intelectual. Em meio a tantas histórias, nos dá a conhecer uma história comovente "Se os gatos falassem", que serve de metáfora para o amor incondicional das mães.[...]Aborda temas polêmicos, como o abandono familiar e perdas, quando homenageia a irmã querida, Isabel Teixeira Nolêto, falecida recentemente.

Este livro nos vem como testemunho de alguém que viu nascer Miracema: o pioneirismo dos seus pais, histórias de uma família, de uma cidade, de um povo, com o seu rio e seus barcos. Neste livro, pode se saber um pouco da história de todos nós, da nossa amada cidade, com seu começo, seu desenvolvimento, até a contemporaneidade.


Francisco Perna Filho
Mestre e Doutor em Literatura


Congresso Nacional | Fachada do Congresso Nacional, a sede d… | Flickr
Crédito: Pedro França/Agência Senado



SERÁS MINISTRO



Carlos Drummond de Andrade




— Esse vai ser ministro — sentenciou o pai, logo que o garoto nasceu.
— E você, com esse ordenado mixo de servente, tem lá poder pra fazer
nosso filho ministro? — duvidou a mãe.
— Então, só porque meu ordenado é mixo ele não pode ser ministro? A Rádio
Nacional deu que Abraão Lincoln trabalhava de cortar lenha no mato e chegou a
presidente dos Estados Unidos.
— Isso foi nos Estados Unidos.
— E daí? Nem eu estou querendo tanto pra ele. Só quero uma de ministro.
— Tonzinho, deixa isso pra lá.
— Pra começar, a gente convida o ministro pra padrinho dele.
— O ministro não vai aceitar.
— Não vai por quê? Trabalho no gabinete há dois anos.
— Ele é muito importante, filho.
— Por isso mesmo. Com padrinho importante, o garotinho começa logo a ser
importante.
— O ministro é tão ocupado, você mesmo diz. Vê lá se tem tempo pra
batizar filho de pobre.
— Pois sim. Ele me trata com toda a consideração, de igual pra igual. Hoje
mesmo eu faço o convite.
Fez. O ministro não pôde comparecer, mas enviou representante. Era quase
a mesma coisa. Na hora de dizer o nome do menino, o pai não vacilou; disse bem
sonoro:
— Ministro.
— Como? — estranhou o padre.
— Ministro, sim senhor.
A mulher ia atalhar: “Tonzinho, não foi Antônio de Fátima que a gente
combinou?”, mas era tarde.
No cartório, também estranharam:
— Ministro por quê?
— Porque eu escolhi. Acho lindo.
— Não é nome próprio.
— Pois eu cá acho muito próprio. Não tem aí uma família chamada
Ministério, aliás com pessoas distintas, médicos, dentistas etc.?
— Tem.
— Pois então. Meu filho é Ministro, só isso. Ministro Alves da Silva, futuro
cidadão útil à pátria. Tem alguma coisa demais?
O garoto registrou-se. Cresceu. Na escola, a princípio achavam-lhe graça no
nome. Parecia apelido. Depois, o costume. Há nomes mais estranhos. Ministro
não era o primeiro da classe, também não foi dos últimos.
Já moço, o leque das opções não se abriu para ele. Entre o ofício sem brilho
e o andar térreo da burocracia, acabou sendo, como o pai, servente de
repartição. Promovido a contínuo.
— Eu não disse? — festejou o pai. — Começou a subir.
O máximo que subiu foi trabalhar no gabinete do ministro.
— Ministro, o senhor ministro está chamando.
— Ministro, já providenciou o cafezinho do senhor ministro?
— Sabe quem telefonou pra você, Ministro? A senhora do senhor ministro.
Diz que você prometeu ir lá consertar umas goteiras e esqueceu.
— Ministro! Roncando na hora do expediente?!
Começaram os equívocos:
— Telefonema para o Ministro.
— Qual? O Ministro ou o senhor ministro?
— Esse Ministro é um cretino! Me fez esperar uma hora nesta poltrona!
— Perdão, deputado, o senhor está ofendendo o senhor ministro.
— Eu? Eu? Estou me referindo a esse animal, esse…
Até que se apurasse que o animal era Ministro, o contínuo — que confusão!
O ministro de Estado, ciente da confusão, recomendou ao assessor:
— Faça esse homem trocar de nome.
— Impossível, senhor ministro. É o seu título de honra.
— Então suma com ele da minha vista.
Mandaram-no para uma vaga repartição de vago departamento. Queixou-se
ao pai, aposentado, que isso de se chamar Ministro não conduz a grandes coisas e
pode até atrasar a vida.
— Ora, meu filho, hoje no bueiro, amanhã no Pão de Açúcar. E você não
tem de que se queixar. Num momento em que tanta gente importante sua a
camisa pra ser ministro, e fica olhando pro céu pra ver se baixa um signo do
astral, você já é, você sempre foi Ministro, de nascença! de direito! E não
depende de governo nenhum pra continuar a ser, até a morte!
Abraçaram-se, chorando.

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