Francisco Perna Filho




Óleo sobre tela - [recorte] by Francisco Perna Filho



 Nelson da Luz, a céu aberto


Em outubro de 2011, Nelson Renato da Luz, um cidadão brasileiro, miserável, morador de rua, foi preso ao tentar furtar placas de zinco da estação República do metrô de São Paulo. Dois dias depois, a juíza da 14ª Vara Criminal da Capital converteu o flagrante em prisão preventiva e, posteriormente, por intercessão de alguns advogados, defensores dos oprimidos, descobriu-se que o “meliante” era inimputável, por sofrer de transtornos mentais, o que fez com que o relator da 1ª Câmara de Direito Criminal cogitasse interná-lo num hospital de custódia e tratamento, mas concluiu que tal medida só se aplicaria nos casos de crimes violentos ou praticados com grave ameaça, o que não era o caso de Nelson, daí a decisão de converter a prisão preventiva em prisão domiciliar.
Até aí, tudo bem, o hilário nessa história toda é que o mendigo é morador de rua, sem teto, sem residência fixa, sem “domicilio”, vivendo a céu aberto, quando não, sob as marquises dos prédios da grande cidade de São Paulo, não podendo, portanto, cumprir prisão domiciliar aos moldes da Justiça Brasileira, já que prisão domiciliar pressupõe permanecer em casa, sem direito de sair à rua, o que, no caso dele,  contraria a determinação do juiz, e o coloca na condição de descumpridor de uma ordem judicial,  podendo ser preso a qualquer momento, mesmo já estando preso.
Pensando de outra maneira, já que sua prisão é domiciliar e ele é um sem-teto e vive nas ruas,  pela lógica, o seu domicílio são as ruas, sendo assim, não poderá, em hipótese alguma, ser considerado um infrator da lei, uma vez que das ruas não se ausenta, nelas permanece, mesmo sem ter consciência do que seja prisão domiciliar; mas é certo que saiba muito de privações, de frio, de fome, de abandono, e, mais do que isso, de ausências.
Não sabemos o que se passa na cabeça do ser que furta placas; não sabemos com que pretensão ele as furtou. Talvez, quem sabe, tenha fixação pelos signos, pelos símbolos, pela linguagem. Ou mais simples, queira apenas proteger-se das intempéries: do frio, da chuva, dos ditos “humanos”, empedernidos pela própria estupidez. Ou, talvez, sonhasse mesmo com um cantinho, um abrigo para si, onde pudesse cumprir a sua prisão mental, o que, por ironia o levara à prisão e ao constrangimento de cumprir uma pena a céu aberto, passagem que me faz lembrar um dos maiores poetas da língua Portuguesa, o goiano José Décio Filho, que insistia em vender um terreno, de sua propriedade, em Goiânia (se não me falha a memória), ao também escritor e imortal da ABL, Bernardo Elis, que, não resistindo aos inúmeros apelos do amigo, fora conhecer tal terreno, estacando admirado ante a  pequenez da gleba, o que o fez interrogar José Décio:
 -  É este o terreno, Zé?  No que José Décio respondeu:  - Já viu o tamanho do céu?
Assim como em José Décio Filho, talvez, para Nelson, o céu seja o limite, onde poderá refestelar-se com algumas boas lembranças, sem os privilégios dos “ladrões sofisticados”, que usam terno e gravata e não têm bons sentimentos.


PEDRO TIERRA

Casaldáliga e Milton Nascimento estão entre parceiros artísticos de Pedro Tierra (Foto: Divulgação)
Casaldáliga, Pedro Tierra e Milton Nascimento

Revista Banzeiro, com muito orgulho, traz uma das maiores vozes da Poesia Brasileira, Pedro Tierra, que nos brinda com o poema inédito Invisível para deleite e reflexão.

Pedro Tierra é pseudônimo de Hamilton Pereira da Silva (Porto Nacional, 1948), poeta, político e ex-guerrilheiro. Foi duas vezes agraciado com o Título de Doutor Honoris Causa: Universidade Católica de Brasília (2013); Universidade Federal do Tocantins (2014). Também, por duas vezes, foi secretário de Cultura do Distrito Federal. O autor tocantinense escreveu: Poemas do Povo da Noite (1977); Missa da Terra sem-males - com Pedro Casaldáliga e Martins Coplas (1979); Missa dos Quilombos - com Pedro Casaldáliga e Milton Nascimen.to (1981); Água de Rebelião (1981); Inventar o Fogo (1986); e  A Palavra Contra o Muro (2013). Escreveu, ainda, dois livros infantins: Passarinhar (1992), e Bernardo Sayão e o Caminho das Onças (1997); em (2019), estreou na ficção com o livro  Pesadelo — Narrativas dos anos de Chumbo.    
                                                                                                                           Francisco Perna Filho*




O Invisível




*I.*

Invisível, o Inimigo
nos cerca, nos invade,
asfixia.

Invisível, o Inimigo
nos separa,
nos confunde.

Está em toda parte.
Na oficina de trabalho,
nas ruas, nos becos, nos cais.

Sob o viaduto
que me abriga do frio,
o Inimigo se esconde.

Dentro do túnel da 9 de julho,
no Santa Ifigênia,
na Ladeira da Memória,

no degrau da soleira
onde deito meus ossos...
na noite da metrópole.


*II.*

Invisível, o Inimigo está
em Wuhan, na Lombardia,
em Nova Yorque,

nos objetos que amamos,
nos corpos e nas almas. Nas mãos?
Sim, nas mãos que modelaram esse mundo que morre.

O Inimigo tomou de assalto nossas mãos.
E busca fechá-las contra nossa garganta.
Lançados entre a epidemia e a fome,

por alguns tostões percorremos as veias
de cidades vazias acossados
pelo chicote incessante dos smartphones.

Os que querem nos manter no trabalho,
expostos ao Invisível, ocupam as ruas em carros blindados
e gritam por converter em pedra nossos pulmões,

nós os conhecemos desde que o primeiro negro enfermo
foi lançado pelo convés de um Tumbeiro aos dentes dos tubarões
para que os braços de seus irmãos chegassem ao porto e aos canaviais. 



*III.*

Invisível, o Inimigo está
em Madrid, em Frankfurt, em Santiago,
em nossas mãos.

E o que antes era o abraço,
nesses dias será apenas
um aceno.

Chega um tempo de assombro
em que o gesto de amor
se converteu em cultivar distâncias.

O tempo de aprender a amar com os olhos:
concentrar nos olhos toda a ternura
e o desejo –
nos olhos de quem amamos,

para receber de volta, como alento,
a fugitiva centelha
que nos aquece o peito e nos convoca à vida.

Aprender a amar com os olhos,
quando em silêncio miramos o rosto dos avós,
ainda que seja a última vez que os miramos,

a notar aquela ruga mais profunda
que não distinguimos ontem
no rosto do pai

e enxugar a lágrima diante do vagido
desta criança que acaba de deixar o ventre da mãe
no meio da pandemia... para recomeçar o mundo.

Permanecer em casa, os que ainda temos casa.
Casa é o lugar para onde retornamos
no fim da tarde.

Outros terão apenas a soleira da porta
para onde os expulsou
o mundo que morre.



Brasília, 28 de março de 2020.

*Poeta, Mestre e Doutor em Letras e Linguística: Estudos Literários pela UFG.

POIESIS: A METONÍMIA URBANA DE M. CAVALCANTI



M. Cavalcanti



Por Francisco Perna Filho*


Técnica mista sobre papel -  99x66
Foram trinta e uma exposições individuais, dezenas de  exposições coletivas, mundo afora: Estados Unidos,  França, Espanha, Portugal, Suíça, Argentina, Inglaterra, e, claro, aqui no  seu País. Ganhou vários prêmios, participou de salões e bienais, só para termos a dimensão do artista que é M. Cavalcanti. Mesmo com todo esse currículo, o artista não para, transita entre técnicas e materiais, experimenta, inventa, reinventa, ampliando o olhar, traduzindo uma natureza,  para muitos imperceptível,  em quadros, esculturas, instalações, criando mundos, possibilidades, pois assim se refaz.

De volta à cidade do coração, Goiânia, que o projetou para o mundo, vive uma nova fase, uma ótima fase, agora, ao lado do filho Felipe, que também é artista, pintor, com quem divide o Ateliê e o aprendizado: irmãos de alma e de cores.


Felipe Cavalcanti, também artista, filho do Pintor
No seu particular mundo de cores, M. Cavalcanti, incansavelmente, traça novas rotas, desconstrói paradigmas, reconfigura o olhar, na construção metonímica da cidade imaginada, que brilha, iluminada pelo seu desejo de urbanidade, há muito perdida, em vários lugares, mas que, na mente do artista pode ser recriada. Foi nesse ambiente poético que o artista nos recebeu, quando falou sobre sua nova fase, sua vida e planos para uma próxima exposição:


Revista Banzeiro - Fale-nos um pouco sobre esta nova fase:


Neste momento atual do meu trabalho, existe uma nítida manifestação do “eclat” urbano apesar do cinza predominantemente nas cidades. Nas minhas pinturas e/ou desenhos, a representação do “eclat” acontece representado ora pelas folhas de ouro aplicadas, ora pelo dourado da própria tinta.

Revista Banzeiro - Em que se diferenciam sua nova fase e Caligrafias urbanas?:


Essa série é na realidade uma “evolução” da anterior denominada “ Caligrafias urbanas”. Foi incorporado elementos geométricos: cubos e retângulos que passam a fazer uma marcação intencional nas composições.A busca do ouro - entenda-se- fortuna, está incrustada, internalizada na memória coletiva, mas, os cubos e retângulos urbanos são obstáculos que as vezes favorecem uns e não a outros. O uso do grafite vem sendo também incorporado no meu trabalho, adotado como mais um recurso estético.



  1. Técnica mista   0.70m x 1.00 - papel  
  2. Técnica mista - 1.20m x 1.80m - papel 
  3. Técnica mista s/papel - 1.20m x 1.80   
  4. Técnica mista s/papel - 0.35m x 0.35m 

Revista Banzeiro - As suas telas chamam a atenção pelos traços, manchas, emaranhados. Você parece privilegiar o grafismo. O que isso representa para você? 

A imprecisão das manchas aparentemente aleatórias, cumprem a função e representar as manchas reais dos muros, viadutos, becos e paredes nos lugares urbanos. Os traços feitos a “pastel”, ajudam a formar pequenos bordados e tramas e vão preenchendo alguns setores como se fossem bairros e condomínios. Depois de passar por várias fases, tantas viagens e nas minhas andanças, meu trabalho está mais universal.



Técnica mista s/papel
Técnica mista s/papel
M.Cavalcanti é um estudioso, perscrutador de desvãos, tem um vínculo muito forte com as cidades, para as quais se volta sempre, não importando o tempo, a estação, sempre atento, assesta seu olhar em busca de novas cores, texturas e formas. Passeia pelas ruas, becos, praças e  rios; mistura-se à multidão, observando os transeuntes, os dramas urbanos, matéria humana para sua invertida poética, seu desejo de reinvenção. Tal impressão é corroborada pelo critico de arte,  Marcos de Lontra Costa, que sobre ele, M. Cavalcanti, assim se manifesta:

Técnica mista s/papel, 0.40m x 0.45m

M. Cavalcanti caminha pela selva urbana com o olhar curioso e investigativo do artista. Como um cientista, ele delimita campos de ação, desenvolve teorias, pesquisa espaços e formas, seleciona elementos de análise a fim de dissecar e estruturar características específicas do objeto em questão. Como criança, ele examina cada canto, cada objeto com a curiosidade do olhar revelador, da descoberta encantada de uma verdade que se desnuda quando se tem a mente, os olhos e o coração abertos para o inusitado e o surpreendente. O artista vê na urbe uma floresta repleta de histórias. Cada muro da cidade revela uma profusão de cores, formas e matérias numa curiosa simbiose entre a ação humana e o acaso, permeadas pela implacável ação do tempo. São impressões, mapas, registros, mantos, sudários que fazem de cada superfície pintada uma espécie de palimpsesto contemporâneo.
M.Cavalcanti - no seu Ateliê
A visão do crítico amplia o olhar do espectador, do diletante, para além das telas, das esculturas e montagens. Há, por certo, um desvelamento do artista, e, com ele, uma percepção de que a arte é muito mais do que simples traços e cores misturadas, barro moldado, pedra esculpida. Ela nos dá a dimensão da grandeza humana, do ser criador, na sua constante busca de conhecimento e expressão. A arte pode nos tirar do aprisionamento de uma vida insípida e nos livrar da estupidez, tão presente no nosso tempo, principalmente no campo político, onde a desfaçatez e a insensibilidade ganham força e seduzem.  M. Cavalcanti, muito atento a tudo isso, compôs uma série Stan Lee, que são máscaras, com a qual homenageia o artista americano e as suas criações maravilhosas: seus/nossos super heróis. Mas as máscaras também têm o seu lado nefasto, escondem e revelam, elegem e condenam, despertam admiração e repulsa, comportam a contradição.

ArtRio 2019: Máscaras, M. Cavalcanti
Esta série fez parte da ArtRio 2019, sob a curadoria da Arcervo Galeria de Arte de Salvador - BA, da qual participaram renomados pintores: Aureliano dos Santos - BA, Carybé- BA, Elenildo Café- BA, José Pancetti -Campinas -SP e Mário Cravo Jr - Salvador - BA..

*Poeta, Mestre e Doutor em Letras e Linguística: Estudos Literários
Contatos:
Instagram: @MCAVALCANTTI
Tel.: +55 62 99319-6794



H. Martins



Goiano de Anápolis, H. Martins é autor de vários livros de poesia e prosa. Como Ambientalista, publicou as seguintes obras: Método para Venda de Sequestro de Carbono, MDL - Uma composição  Sustentável, Elementos para Concepção do Crédito de Carbono. Na área literária,poesia, publicou: Unha e Carne, Vaso Chinês, Todas as Cores das Flores. No campo da prosa, escreveu os romances: Lábios que Beijei, Mais que Perfeito Simples, Roseiral de Inácio e Viúvas Fogosas da Rua Direita, e agora nos brinda com o livro Alguns botões de Madrepérolas, do qual selecionamos dez poemas para você, caro leitor. 

H. Martins

                                       

   Os líricos caminhos de Martins



                                                                                            Por Francisco Perna Filho*
                                                                                                                                              Descendente de árabe, traz em si o andarilho, o mascate, as várias culturas, a  paixão  arraigada  pelas    cidades, a música entranhada na alma, a culinária, tudo isso se reflete na sua escrita, no seu humor cativante, no fingir poético, em cada passo que dá em direção a si mesmo, como nos poemas a mala do mascate e certas histórias:



a mala do mascate


é duma vez vendo tudo
traquitanas e embalagens
que desafiam não dar pra quem quer tudo levar.

é seda falsa
loção barata
poesia descalça
mala sem alça.

Fonte da imagem: Caderno do Oriente



certas histórias

quando as conto, desconto as reticências
e me abrevio.
porque somente entende a mesma coisa
quem coisa igual se revelou.

e é bom que eu veja neste instante
o quanto viajante ainda sou
desmontando a tenda, resumindo a lenda
cantando o estribilho
que volta sempre
ao mesmo lado que nem sei se estou.

é duro arder na onda infiel dos dias
tramar, fazer, interessar as cenas
ratificar, se desculpar, rever-se
nos mesmos fiascos das
razões pequenas.

tiveram todos os mesmos dilemas
sofreram o tanto, ou mais, que as pequenas razões
destas pequenas glórias.
e todos não vivem a repetir memórias
repisar as delusões e o engodo
de reprisar sempre as mesmas histórias.

Apaixonado, como o homem do mediterrâneo, H. Martins também é só ternura, e traz no seu canto a presença serena da sua musa,  traço recorrente nos seus livros, seja em prosa ou poesia, reflete a paixão do poeta , que ameaça ir embora, mas olha para trás e sempre volta: aviso

aviso


não deixe a porta aberta quando eu sair.
fosso de irremediável ilusão
é uma porta aberta.

tranque-a
e esconda todas as chaves.

porque sou daqueles
que olham pra trás
sou daqueles
que voltam.



ou, ainda, quando o poeta assesta o seu olhar para as várias formas de amor: amores de tela, sem cubículo, virtual, mas que, no final das contas, é real, quando a força de Eros se estabelece: 

contextual

de que amor falas tu?
desses - digamos, comuns amores de tela
amores de telenovela
cujas entranhas não se veem à mostra
e aos abissais sarmentos da dor não conhece nem revela?

ou do amor sem cubículo, lotado no próprio vício
das salas que só existem nesse mundo virtual
chamado de amor virtual
gravado num universo de silício
embora conceitual?

e ao amor não espreitou a demasia, o termo e o tempo gastos
da saliva na pele amada, sob o pincel da língua úmida
penteando os pelos ao ir, eriçando os pelos ao vir
sob essa língua que não tão pesada, sequer muito leve demais
que míngua a consciência ao roçar nos bicos e nos atavios
e trilha na salgada salmoura do sexo, derramando dos
lábios a saliva
nos lábios da porta do meio do labirinto sem curvas.

posso não parecer normal,
             pouco contextual
só desse amor entendendo eu
amor nada virtual.







Sua poética soa como advertência para o leitor sobre as possibilidades de decifração, ao mesmo tempo gera uma desconfiança, no que se diz  previsível, o elemento mágico, feito coelho sem cartola, gerando uma tensão que, somada à incompreensibilidade, causa certa dissonância. Daquilo que fala T.S. Eliot: A poesia pode comunicar-se, ainda antes de ser compreendida, o que é corroborado por Hugo friedrich: Esta junção de incompreensibilidade e de fascinação pode ser chamada de dissonância, pois gera uma tensão que tende mais à inquietude que à serenidade**, como pode-se ler nos poemas advertência,  limite íntimo a fantasia e a demência:



advertência

entenda-me no meu poema
longe dele sou teorema.
impressão errada do que vai por fora
        erudição previsível,
feito coelho sem cartola.



limite íntimo

ser rei de si próprio
ninguém resiste
sequer se limita o tempo e a dimensão
sequer importa a luta de poder
entre o domínio real do quase nada
e a submissão igual da mesma coisa.

ruídos, estigmas
há mais por cento
que percentagens em glória e sedição
há mais domínio vivo em quase nada
e o nada vivo em quase tudo ali.

confunde o mando magistral
com a humilde aparência súdita
serviçal.
fronteiras, nem se fala.
a ninguém importa ou exista
que demande por tomar o que não há.

não há nenhum fulgor ou interesse
sequer litigue alguém, algum vizinho
ninguém aporta nesse campo
soberano campo de reinar sozinho.

Memorial 11 de Setembro NYC



a fantasia e a demência

duas razões que se fazem
formas caludas que jazem
em picadeiro silente
desavisadas em cartazes
pro espetáculo ausente
de fantasia e demência.

uma razão é fogosa
amargo no amor é essência
doce no amor é invento.

outra razão é doente
de velha e espreitada não sente
quando o amor bate à porta
não sente tão velha e espreitada
que dor antiga não importa.


H. Martins não é desses homens que foge à luta, possui vínculos profundos, alimenta-se de uma materialidade que lhe é tão cara para composição poética: a família. Em tempo de poesia, evoca os filhos, a cor dos olhos de cada um, como a uma bênção, uma dádiva, nos olhos que se voltam para o lar, na solidão madrugadora do Poeta: 

tempo de poesia

miguel possui a benção da vida
nos profundos olhos negros
que joão enfeita de quase verdes
e pretextas riscas azuladas

é tanta poesia enfeitando o quarto nessas
madrugadas.

branca

não chore, ana
que por ser ana
          porcelana
de fino trato
dar-te-ei flores
todas do florista.

nem que para comprá-las
eu precise de avalista


by Francisco Perna Filho

Na sua imersão, H. Martins se apropria das várias possibilidades de ser ele mesmo, e, ao mesmo tempo, tantos outros. Um homem dado às humanidades, à consciência da linha tênue que percorre, equilibra-se, cai e se levanta, na dança dos hemisférios, quando o homem se completa:



hemisférios

existe uma face
que comigo vive
ostenta, mente
e bebe demais.

por trás
doutra face
apartada
(que é minha face, também hemisfério
          do homem sério que sou demais)
voltada às coisas
que a incoerência faz.

o mundo e as guerras, a fome e a sede
eu, numa face que bebe demais.

só que a noite tirou-me o sono
e é no hemisfério do abandono
que minha outra face
desfalece e reflete
este mundo que verdades esconde demais.

temi que esta face
tomasse outra face
e eu passasse a viver
         de disfarces demais.


* Mestre e Doutor em Letras-UFG.
**FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. 2ª ed.. São Paulo, 1991.

Poemas retirados do livro Alguns botões de madrepérola. Guaratinguetá-SP: Penalux, 2019.

Francisco Perna Filho - Poema


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Aos 12 anos,
Sharbat Gula
tivera a alma roubada e impressa em papel fotográfico
[na prensa do mundo.
Tornara-se famosa, cultuada,
cultivada nas paredes de ricos escritórios e apartamentos,
enquanto quedava sobrevivente em um campo de refugiados na cidade de Peshawar, no Paquistão.
17 anos depois, já com 30 anos, desta vez no Afeganistão, fora mais uma vez fotografada por Steve McCurry, que lhe falara da fama, do mundo, mas nada lhe dera, e,
mais uma vez, nada lhe prometera, levando consigo a imagem de uma alma dilacerada.
Aos 46 anos,
largada à própria sorte,
autora de três filhos
e refugiada em si mesma,
Gula, agora, está só, como sempre estivera,
fincada nos dias intermináveis de solidão e preconceito,
à procura da identidade
que lhe fora negada.
A menina afegã não existe mais.
Os seus olhos, outrora verdes e selvagens,
São agora tristes e opacos.
Sharbat Gula
Amarga seu destino,
Aguarda sua sentença,
sem que lhe reconheçam a efêmera fama da qual fora vítima.
Resultado de imagem para Sharbat Gula
(Francisco Perna Filho)
Fonte da notícia: El País.
Imagens: Internet

Itaney Francisco Campos


TEMPOS DE ESCURIDÃO





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Itaney Francisco Campos


Por Itaney Campos

                                                                                                                                                                            Na minha juventude, dois livros me ensinaram a amar a poesia de Drummond: “A Rosa do povo”, do próprio poeta itabirano, e “Drummond, a estilística da repetição”, do crítico e poeta goiano Gilberto Mendonça Teles. A partir daí ingressei sem retorno pela seara da densa poesia drummoniana, e também por sua produção em prosa,  que predominam deliciosas crônicas.  De tanto ler o poeta, de um temário de alcance universal, decorei alguns poemas que me encantaram, dentre vários que me fascinaram sem esgotamento; e cujo fascínio se renovava a cada leitura. “A máquina do mundo, José, Amar, Mãos dadas, Os ombros suportam o mundo” são alguns dos títulos da clara poesia do poeta de Minas que eu sempre trouxe em minha mente e em meu coração.

Carlos Drummond de Andrade na Biblioteca Euclides da Cunha, c.1959. 
Foto de Marcel Gautherot / Acervo IMS


Os ombros suportam o mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu
Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos
edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Quando se noticiou que o poeta estava fragilizado, aparentemente em decorrência da morte de sua filha Julieta, com quem tinha grande afinidade, temi que se agravasse a desolação do poeta, já na casa dos oitenta, presa fácil da depressão. Sentia, a cada notícia, mais confrangido o coração. Cheguei a planejar uma viagem ao Rio, para dizer ao poeta de minha admiração pela sua monumental poesia. Desgostava-me saber que o poeta ia se definhando, morrendo aos poucos, de melancolia, ele sempre contido, cético, avesso ao sentimentalismo transparente. Não deu tempo. E ainda que se prolongassem os dias de tristeza do poeta, eu sei que eu não iria até ele. E poderia ocorrer até que nem me recebesse, avesso que sempre foi às manifestações efusivas, de pesar ou euforia. Sempre o gauche confesso. 


Sentimento do Mundo


Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microcopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.


Em Sentimento do mundo o poeta expressava tudo o que me pulsava na alma, naquele tempo de impiedosa ditadura. Um tempo de medos e mentiras. « Um tempo em que o amor resultou inútil », na expressão desolada do poeta, testemunha de um mundo em chamas, de uma era de guerras, genocídio e desesperança. O pesar de ver o país subjugado, novamente submetido à opressão das botas militares, encontrava na poesia inconformada a nossa manifestação catártica. 

                                               
Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.



E o confronto daquele tempo, de censura e humilhação, com os dias atuais de ameaças e obscurantismo dos governantes de plantão, me aborrece e desanima. Com o que, então, frustrou-se a esperança de democracia, restaurada há tão pouco tempo, depois de agressão aos direitos e perseguição aos que pensavam e reconstruíam a liberdade? De que valeram os sacrifícios de tantos jovens? As prisões, a tortura, a censura, o exílio? A onda do autoritarismo viria a avassalar novamente a Pátria, voltaríamos à barbárie? Arde a nossa alma, indignada. Estes tempos estão clamando pela lúcida poesia de Drummond! Poemas de sol, de sal, de amargor e de esperança! E repito o vate de Minas: “Trabalhas sem alegria para um mundo caduco/ onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo..” E proclamo, ecoando o escritor de Minas: “o poeta declina de toda a responsabilidade na marcha do mundo capitalista!”





Itaney Francisco Campos, natural de Uruaçu-GO, é Mestre em Direito Agrário - UFG. Poeta, Desembargador, autor de vários livros. Pertence à Academia Goiana de Letras, ocupando a Cadeira  nº 37.

Clarice Lispector - Crônica





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Clarice Lispector

 O PRIMEIRO LIVRO DE CADA UMA DE MINHAS VIDAS*



Perguntaram-me uma vez qual fora o primeiro livro de minha vida. Prefiro falar do primeiro livro de cada uma de minhas vidas. Busco na memória e tenho a sensação quase física nas mãos ao segurar aquela preciosidade: um livro fininho que contava a história do patinho feio e da lâmpada de Aladim. Eu lia e relia as duas histórias, criança não tem disso de só ler uma vez: criança quase aprende de cor e, mesmo quase sabendo de cor, relê com muito da excitação da primeira vez. A história do patinho que era feio no meio dos outros bonitos, mas quando cresceu revelou o mistério: ele não era pato e sim um belo cisne. Essa história me fez meditar muito, e identifiquei-me com o sofrimento do patinho feio – quem sabe se eu era um cisne?


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Quanto a Aladim, soltava minha imaginação para as lonjuras do impossível a que eu era crédula: o impossível naquela época estava ao meu alcance. A ideia do gênio que dizia: pede de mim o que quiseres, sou teu servo – isso me fazia cair em devaneio. Quieta no meu canto, eu pensava se algum dia um gênio me diria: “Pede de mim o que quiseres.” Mas desde então revelava-se que sou daqueles que têm que usar os próprios recursos para terem o que querem, quando conseguem.


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Tive várias vidas. Em outra de minhas vidas, o meu livro sagrado foi emprestado porque era muito caro: Reinações de Narizinho. Já contei o sacrifício de humilhações e perseveranças pelo qual passei, pois, já pronta para ler Monteiro Lobato, o livro grosso pertencia a uma menina cujo pai tinha uma livraria. A menina gorda e muito sardenta se vingara tornando-se sádica e, ao descobrir o que valeria para mim ler aquele livro, fez um jogo de “amanhã venha em casa que eu empresto”. Quando eu ia, com o coração literalmente batendo de alegria, ela me dizia: “Hoje não posso emprestar, venha amanhã.” Depois de cerca de um mês de venha amanhã, o que eu, embora altiva que era, recebia com humildade para que a menina não me cortasse de vez a esperança, a mãe daquele primeiro monstrinho de minha vida notou o que se passava e, um pouco horrorizada com a própria filha, deu-lhe ordens para que naquele mesmo momento me fosse emprestado o livro. Não o li de uma vez: li aos poucos, algumas páginas de cada vez para não gastar. Acho que foi o livro que me deu mais alegria naquela vida.


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Em outra vida que tive, eu era sócia de uma biblioteca popular de aluguel. Sem guia, escolhia os livros pelo título. E eis que escolhi um dia um livro chamado O lobo da estepe, de Herman Hesse. O título me agradou, pensei tratar-se de um livro de aventuras tipo Jack London. O livro, que li cada vez mais deslumbrada, era de aventura, sim, mas outras aventuras. E eu, que já escrevia pequenos contos, dos 13 aos 14 anos fui germinada por Herman Hesse e comecei a escrever um longo conto imitando-o: a viagem interior me fascinava. Eu havia entrado em contato com a grande literatura.

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 Katherine Mansfield

Em outra vida que tive, aos 15 anos, com o primeiro dinheiro ganho por trabalho meu, entrei altiva porque tinha dinheiro, numa livraria, que me pareceu o mundo onde eu gostaria de morar. Folheei quase todos os livros dos balcões, lia algumas linhas e passava para outro. E de repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu! E, contendo um estremecimento de profunda emoção, comprei-o. Só depois vim a saber que a autora não era anônima, sendo, ao contrário, considerada um dos melhores escritores de sua época: Katherine Mansfield.


In. Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Rocco Digital. p. 19-20
* Esta crônica foi originalmente publicada no Jornal do Brasil, em 24 de fevereiro de 1973.

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