Clarice Lispector |
Perguntaram-me uma vez qual fora o primeiro livro de minha
vida. Prefiro falar do primeiro livro de cada uma de minhas vidas. Busco na
memória e tenho a sensação quase física nas mãos ao segurar aquela
preciosidade: um livro fininho que contava a história do patinho feio e da lâmpada de Aladim. Eu lia e relia as duas histórias,
criança não tem disso de só ler uma vez: criança quase aprende de cor e, mesmo
quase sabendo de cor, relê com muito da excitação da primeira vez. A história
do patinho que era feio no meio dos outros bonitos, mas quando cresceu revelou
o mistério: ele não era pato e sim um belo cisne. Essa história me fez meditar
muito, e identifiquei-me com o sofrimento do patinho feio – quem sabe se eu era
um cisne?
Quanto a Aladim, soltava minha imaginação para as lonjuras
do impossível a que eu era crédula: o impossível naquela época estava ao meu
alcance. A ideia do gênio que dizia: pede de mim o que quiseres, sou teu servo
– isso me fazia cair em devaneio. Quieta no meu canto, eu pensava se algum dia um gênio me diria: “Pede de mim o
que quiseres.” Mas desde então revelava-se que sou daqueles que têm que usar os
próprios recursos para terem o que querem, quando conseguem.
Tive várias vidas. Em outra de minhas vidas, o meu livro
sagrado foi emprestado porque era muito caro: Reinações de Narizinho. Já
contei o sacrifício de humilhações e perseveranças pelo qual passei, pois, já
pronta para ler Monteiro Lobato, o livro grosso pertencia a uma menina cujo pai
tinha uma livraria. A menina gorda e muito sardenta se vingara tornando-se
sádica e, ao descobrir o que valeria para mim ler aquele livro, fez um jogo de
“amanhã venha em casa que eu empresto”. Quando eu ia, com o coração
literalmente batendo de alegria, ela me dizia: “Hoje não posso emprestar, venha
amanhã.” Depois de cerca de um mês de venha amanhã, o que eu, embora altiva que era,
recebia com humildade para que a menina não me cortasse de vez a esperança, a
mãe daquele primeiro monstrinho de minha vida notou o que se passava e, um
pouco horrorizada com a própria filha, deu-lhe ordens para que naquele mesmo
momento me fosse emprestado o livro. Não o li de uma vez: li aos poucos, algumas
páginas de cada vez para não gastar. Acho que foi o livro que me deu mais
alegria naquela vida.
Em outra vida que tive, eu era sócia de uma biblioteca
popular de aluguel. Sem guia, escolhia os livros pelo título. E eis que escolhi
um dia um livro chamado O lobo da estepe, de Herman Hesse. O título me
agradou, pensei tratar-se de um livro de aventuras tipo Jack London. O livro,
que li cada vez mais deslumbrada, era de aventura, sim, mas outras aventuras. E
eu, que já escrevia pequenos contos, dos 13 aos 14 anos fui germinada por Herman
Hesse e comecei a escrever um longo conto imitando-o: a viagem interior me fascinava.
Eu havia entrado em contato com a grande literatura.
Katherine Mansfield |
Em outra vida que tive, aos 15 anos, com o primeiro dinheiro
ganho por trabalho meu, entrei altiva porque tinha dinheiro, numa livraria, que
me pareceu o mundo onde eu gostaria de morar. Folheei quase todos os livros dos
balcões, lia algumas linhas e passava para outro. E de repente, um dos livros que abri continha frases tão
diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse
livro sou eu! E, contendo um estremecimento de profunda emoção, comprei-o. Só
depois vim a saber que a autora não era anônima, sendo, ao contrário,
considerada um dos melhores escritores de sua época: Katherine Mansfield.
In. Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Rocco Digital. p.
19-20
* Esta crônica foi originalmente publicada no Jornal do
Brasil, em 24 de fevereiro de 1973.
A literatura vai caminhando a reboque da vida, ou a vida vai caminhando a reboque da literatura da letra viva, espírito soprado, estante desempoeirada
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