H. Martins



Goiano de Anápolis, H. Martins é autor de vários livros de poesia e prosa. Como Ambientalista, publicou as seguintes obras: Método para Venda de Sequestro de Carbono, MDL - Uma composição  Sustentável, Elementos para Concepção do Crédito de Carbono. Na área literária,poesia, publicou: Unha e Carne, Vaso Chinês, Todas as Cores das Flores. No campo da prosa, escreveu os romances: Lábios que Beijei, Mais que Perfeito Simples, Roseiral de Inácio e Viúvas Fogosas da Rua Direita, e agora nos brinda com o livro Alguns botões de Madrepérolas, do qual selecionamos dez poemas para você, caro leitor. 

H. Martins

                                       

   Os líricos caminhos de Martins



                                                                                            Por Francisco Perna Filho*
                                                                                                                                              Descendente de árabe, traz em si o andarilho, o mascate, as várias culturas, a  paixão  arraigada  pelas    cidades, a música entranhada na alma, a culinária, tudo isso se reflete na sua escrita, no seu humor cativante, no fingir poético, em cada passo que dá em direção a si mesmo, como nos poemas a mala do mascate e certas histórias:



a mala do mascate


é duma vez vendo tudo
traquitanas e embalagens
que desafiam não dar pra quem quer tudo levar.

é seda falsa
loção barata
poesia descalça
mala sem alça.

Fonte da imagem: Caderno do Oriente



certas histórias

quando as conto, desconto as reticências
e me abrevio.
porque somente entende a mesma coisa
quem coisa igual se revelou.

e é bom que eu veja neste instante
o quanto viajante ainda sou
desmontando a tenda, resumindo a lenda
cantando o estribilho
que volta sempre
ao mesmo lado que nem sei se estou.

é duro arder na onda infiel dos dias
tramar, fazer, interessar as cenas
ratificar, se desculpar, rever-se
nos mesmos fiascos das
razões pequenas.

tiveram todos os mesmos dilemas
sofreram o tanto, ou mais, que as pequenas razões
destas pequenas glórias.
e todos não vivem a repetir memórias
repisar as delusões e o engodo
de reprisar sempre as mesmas histórias.

Apaixonado, como o homem do mediterrâneo, H. Martins também é só ternura, e traz no seu canto a presença serena da sua musa,  traço recorrente nos seus livros, seja em prosa ou poesia, reflete a paixão do poeta , que ameaça ir embora, mas olha para trás e sempre volta: aviso

aviso


não deixe a porta aberta quando eu sair.
fosso de irremediável ilusão
é uma porta aberta.

tranque-a
e esconda todas as chaves.

porque sou daqueles
que olham pra trás
sou daqueles
que voltam.



ou, ainda, quando o poeta assesta o seu olhar para as várias formas de amor: amores de tela, sem cubículo, virtual, mas que, no final das contas, é real, quando a força de Eros se estabelece: 

contextual

de que amor falas tu?
desses - digamos, comuns amores de tela
amores de telenovela
cujas entranhas não se veem à mostra
e aos abissais sarmentos da dor não conhece nem revela?

ou do amor sem cubículo, lotado no próprio vício
das salas que só existem nesse mundo virtual
chamado de amor virtual
gravado num universo de silício
embora conceitual?

e ao amor não espreitou a demasia, o termo e o tempo gastos
da saliva na pele amada, sob o pincel da língua úmida
penteando os pelos ao ir, eriçando os pelos ao vir
sob essa língua que não tão pesada, sequer muito leve demais
que míngua a consciência ao roçar nos bicos e nos atavios
e trilha na salgada salmoura do sexo, derramando dos
lábios a saliva
nos lábios da porta do meio do labirinto sem curvas.

posso não parecer normal,
             pouco contextual
só desse amor entendendo eu
amor nada virtual.







Sua poética soa como advertência para o leitor sobre as possibilidades de decifração, ao mesmo tempo gera uma desconfiança, no que se diz  previsível, o elemento mágico, feito coelho sem cartola, gerando uma tensão que, somada à incompreensibilidade, causa certa dissonância. Daquilo que fala T.S. Eliot: A poesia pode comunicar-se, ainda antes de ser compreendida, o que é corroborado por Hugo friedrich: Esta junção de incompreensibilidade e de fascinação pode ser chamada de dissonância, pois gera uma tensão que tende mais à inquietude que à serenidade**, como pode-se ler nos poemas advertência,  limite íntimo a fantasia e a demência:



advertência

entenda-me no meu poema
longe dele sou teorema.
impressão errada do que vai por fora
        erudição previsível,
feito coelho sem cartola.



limite íntimo

ser rei de si próprio
ninguém resiste
sequer se limita o tempo e a dimensão
sequer importa a luta de poder
entre o domínio real do quase nada
e a submissão igual da mesma coisa.

ruídos, estigmas
há mais por cento
que percentagens em glória e sedição
há mais domínio vivo em quase nada
e o nada vivo em quase tudo ali.

confunde o mando magistral
com a humilde aparência súdita
serviçal.
fronteiras, nem se fala.
a ninguém importa ou exista
que demande por tomar o que não há.

não há nenhum fulgor ou interesse
sequer litigue alguém, algum vizinho
ninguém aporta nesse campo
soberano campo de reinar sozinho.

Memorial 11 de Setembro NYC



a fantasia e a demência

duas razões que se fazem
formas caludas que jazem
em picadeiro silente
desavisadas em cartazes
pro espetáculo ausente
de fantasia e demência.

uma razão é fogosa
amargo no amor é essência
doce no amor é invento.

outra razão é doente
de velha e espreitada não sente
quando o amor bate à porta
não sente tão velha e espreitada
que dor antiga não importa.


H. Martins não é desses homens que foge à luta, possui vínculos profundos, alimenta-se de uma materialidade que lhe é tão cara para composição poética: a família. Em tempo de poesia, evoca os filhos, a cor dos olhos de cada um, como a uma bênção, uma dádiva, nos olhos que se voltam para o lar, na solidão madrugadora do Poeta: 

tempo de poesia

miguel possui a benção da vida
nos profundos olhos negros
que joão enfeita de quase verdes
e pretextas riscas azuladas

é tanta poesia enfeitando o quarto nessas
madrugadas.

branca

não chore, ana
que por ser ana
          porcelana
de fino trato
dar-te-ei flores
todas do florista.

nem que para comprá-las
eu precise de avalista


by Francisco Perna Filho

Na sua imersão, H. Martins se apropria das várias possibilidades de ser ele mesmo, e, ao mesmo tempo, tantos outros. Um homem dado às humanidades, à consciência da linha tênue que percorre, equilibra-se, cai e se levanta, na dança dos hemisférios, quando o homem se completa:



hemisférios

existe uma face
que comigo vive
ostenta, mente
e bebe demais.

por trás
doutra face
apartada
(que é minha face, também hemisfério
          do homem sério que sou demais)
voltada às coisas
que a incoerência faz.

o mundo e as guerras, a fome e a sede
eu, numa face que bebe demais.

só que a noite tirou-me o sono
e é no hemisfério do abandono
que minha outra face
desfalece e reflete
este mundo que verdades esconde demais.

temi que esta face
tomasse outra face
e eu passasse a viver
         de disfarces demais.


* Mestre e Doutor em Letras-UFG.
**FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. 2ª ed.. São Paulo, 1991.

Poemas retirados do livro Alguns botões de madrepérola. Guaratinguetá-SP: Penalux, 2019.

Francisco Perna Filho - Poema


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Aos 12 anos,
Sharbat Gula
tivera a alma roubada e impressa em papel fotográfico
[na prensa do mundo.
Tornara-se famosa, cultuada,
cultivada nas paredes de ricos escritórios e apartamentos,
enquanto quedava sobrevivente em um campo de refugiados na cidade de Peshawar, no Paquistão.
17 anos depois, já com 30 anos, desta vez no Afeganistão, fora mais uma vez fotografada por Steve McCurry, que lhe falara da fama, do mundo, mas nada lhe dera, e,
mais uma vez, nada lhe prometera, levando consigo a imagem de uma alma dilacerada.
Aos 46 anos,
largada à própria sorte,
autora de três filhos
e refugiada em si mesma,
Gula, agora, está só, como sempre estivera,
fincada nos dias intermináveis de solidão e preconceito,
à procura da identidade
que lhe fora negada.
A menina afegã não existe mais.
Os seus olhos, outrora verdes e selvagens,
São agora tristes e opacos.
Sharbat Gula
Amarga seu destino,
Aguarda sua sentença,
sem que lhe reconheçam a efêmera fama da qual fora vítima.
Resultado de imagem para Sharbat Gula
(Francisco Perna Filho)
Fonte da notícia: El País.
Imagens: Internet

Itaney Francisco Campos


TEMPOS DE ESCURIDÃO





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Itaney Francisco Campos


Por Itaney Campos

                                                                                                                                                                            Na minha juventude, dois livros me ensinaram a amar a poesia de Drummond: “A Rosa do povo”, do próprio poeta itabirano, e “Drummond, a estilística da repetição”, do crítico e poeta goiano Gilberto Mendonça Teles. A partir daí ingressei sem retorno pela seara da densa poesia drummoniana, e também por sua produção em prosa,  que predominam deliciosas crônicas.  De tanto ler o poeta, de um temário de alcance universal, decorei alguns poemas que me encantaram, dentre vários que me fascinaram sem esgotamento; e cujo fascínio se renovava a cada leitura. “A máquina do mundo, José, Amar, Mãos dadas, Os ombros suportam o mundo” são alguns dos títulos da clara poesia do poeta de Minas que eu sempre trouxe em minha mente e em meu coração.

Carlos Drummond de Andrade na Biblioteca Euclides da Cunha, c.1959. 
Foto de Marcel Gautherot / Acervo IMS


Os ombros suportam o mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu
Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos
edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Quando se noticiou que o poeta estava fragilizado, aparentemente em decorrência da morte de sua filha Julieta, com quem tinha grande afinidade, temi que se agravasse a desolação do poeta, já na casa dos oitenta, presa fácil da depressão. Sentia, a cada notícia, mais confrangido o coração. Cheguei a planejar uma viagem ao Rio, para dizer ao poeta de minha admiração pela sua monumental poesia. Desgostava-me saber que o poeta ia se definhando, morrendo aos poucos, de melancolia, ele sempre contido, cético, avesso ao sentimentalismo transparente. Não deu tempo. E ainda que se prolongassem os dias de tristeza do poeta, eu sei que eu não iria até ele. E poderia ocorrer até que nem me recebesse, avesso que sempre foi às manifestações efusivas, de pesar ou euforia. Sempre o gauche confesso. 


Sentimento do Mundo


Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microcopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.


Em Sentimento do mundo o poeta expressava tudo o que me pulsava na alma, naquele tempo de impiedosa ditadura. Um tempo de medos e mentiras. « Um tempo em que o amor resultou inútil », na expressão desolada do poeta, testemunha de um mundo em chamas, de uma era de guerras, genocídio e desesperança. O pesar de ver o país subjugado, novamente submetido à opressão das botas militares, encontrava na poesia inconformada a nossa manifestação catártica. 

                                               
Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.



E o confronto daquele tempo, de censura e humilhação, com os dias atuais de ameaças e obscurantismo dos governantes de plantão, me aborrece e desanima. Com o que, então, frustrou-se a esperança de democracia, restaurada há tão pouco tempo, depois de agressão aos direitos e perseguição aos que pensavam e reconstruíam a liberdade? De que valeram os sacrifícios de tantos jovens? As prisões, a tortura, a censura, o exílio? A onda do autoritarismo viria a avassalar novamente a Pátria, voltaríamos à barbárie? Arde a nossa alma, indignada. Estes tempos estão clamando pela lúcida poesia de Drummond! Poemas de sol, de sal, de amargor e de esperança! E repito o vate de Minas: “Trabalhas sem alegria para um mundo caduco/ onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo..” E proclamo, ecoando o escritor de Minas: “o poeta declina de toda a responsabilidade na marcha do mundo capitalista!”





Itaney Francisco Campos, natural de Uruaçu-GO, é Mestre em Direito Agrário - UFG. Poeta, Desembargador, autor de vários livros. Pertence à Academia Goiana de Letras, ocupando a Cadeira  nº 37.

Clarice Lispector - Crônica





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Clarice Lispector

 O PRIMEIRO LIVRO DE CADA UMA DE MINHAS VIDAS*



Perguntaram-me uma vez qual fora o primeiro livro de minha vida. Prefiro falar do primeiro livro de cada uma de minhas vidas. Busco na memória e tenho a sensação quase física nas mãos ao segurar aquela preciosidade: um livro fininho que contava a história do patinho feio e da lâmpada de Aladim. Eu lia e relia as duas histórias, criança não tem disso de só ler uma vez: criança quase aprende de cor e, mesmo quase sabendo de cor, relê com muito da excitação da primeira vez. A história do patinho que era feio no meio dos outros bonitos, mas quando cresceu revelou o mistério: ele não era pato e sim um belo cisne. Essa história me fez meditar muito, e identifiquei-me com o sofrimento do patinho feio – quem sabe se eu era um cisne?


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Quanto a Aladim, soltava minha imaginação para as lonjuras do impossível a que eu era crédula: o impossível naquela época estava ao meu alcance. A ideia do gênio que dizia: pede de mim o que quiseres, sou teu servo – isso me fazia cair em devaneio. Quieta no meu canto, eu pensava se algum dia um gênio me diria: “Pede de mim o que quiseres.” Mas desde então revelava-se que sou daqueles que têm que usar os próprios recursos para terem o que querem, quando conseguem.


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Tive várias vidas. Em outra de minhas vidas, o meu livro sagrado foi emprestado porque era muito caro: Reinações de Narizinho. Já contei o sacrifício de humilhações e perseveranças pelo qual passei, pois, já pronta para ler Monteiro Lobato, o livro grosso pertencia a uma menina cujo pai tinha uma livraria. A menina gorda e muito sardenta se vingara tornando-se sádica e, ao descobrir o que valeria para mim ler aquele livro, fez um jogo de “amanhã venha em casa que eu empresto”. Quando eu ia, com o coração literalmente batendo de alegria, ela me dizia: “Hoje não posso emprestar, venha amanhã.” Depois de cerca de um mês de venha amanhã, o que eu, embora altiva que era, recebia com humildade para que a menina não me cortasse de vez a esperança, a mãe daquele primeiro monstrinho de minha vida notou o que se passava e, um pouco horrorizada com a própria filha, deu-lhe ordens para que naquele mesmo momento me fosse emprestado o livro. Não o li de uma vez: li aos poucos, algumas páginas de cada vez para não gastar. Acho que foi o livro que me deu mais alegria naquela vida.


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Em outra vida que tive, eu era sócia de uma biblioteca popular de aluguel. Sem guia, escolhia os livros pelo título. E eis que escolhi um dia um livro chamado O lobo da estepe, de Herman Hesse. O título me agradou, pensei tratar-se de um livro de aventuras tipo Jack London. O livro, que li cada vez mais deslumbrada, era de aventura, sim, mas outras aventuras. E eu, que já escrevia pequenos contos, dos 13 aos 14 anos fui germinada por Herman Hesse e comecei a escrever um longo conto imitando-o: a viagem interior me fascinava. Eu havia entrado em contato com a grande literatura.

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 Katherine Mansfield

Em outra vida que tive, aos 15 anos, com o primeiro dinheiro ganho por trabalho meu, entrei altiva porque tinha dinheiro, numa livraria, que me pareceu o mundo onde eu gostaria de morar. Folheei quase todos os livros dos balcões, lia algumas linhas e passava para outro. E de repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu! E, contendo um estremecimento de profunda emoção, comprei-o. Só depois vim a saber que a autora não era anônima, sendo, ao contrário, considerada um dos melhores escritores de sua época: Katherine Mansfield.


In. Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Rocco Digital. p. 19-20
* Esta crônica foi originalmente publicada no Jornal do Brasil, em 24 de fevereiro de 1973.

Conto - João Guimarães Rosa




Resultado de imagem para capa da primeira edição de "Primeiras Estórias", de João Guimarães Rosa

Famigerado



        Foi de incerta feita — o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.
         Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse — o oh-homem-oh — com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida.
        Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.
       Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a descansar na sela — decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:

"Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada..."

     Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas — e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se já ao nível justo, ademão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim, porém, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem certeza.

— "Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra..."

      Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara — evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:

— "Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba que estou com ele à revelia... Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado..."
      Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.
       O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, inseqüentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava: E, pá:

— "Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-megerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?

       Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?

— "Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro..."
Se sério, se era. Transiu-se-me.

— "Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo — o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?"

Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:

— Famigerado?
— "Sim senhor..." — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. — Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:

— "Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho..."

Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.

— Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável"...

— "Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?"

— Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...

— "Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?"

— Famigerado? Bem. É: "importante", que merece louvor, respeito...

— "Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?"

Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:

— Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado — bem famigerado, o mais que pudesse!...

— "Ah, bem!..." — soltou, exultante.

      Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: — "Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição..." — e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d'água. Disse: — "Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!" Seja que de novo, por um mero, se torvava? Disse: — "Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não..." Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — "A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a mandioca..." Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.

Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988. 

O Passado Remoto - Giovanni Papini





Someday I'll get there...until then I'll just dream with my antique post card.....
Cartão postal: Torre Eiffel 1908





PRIMAVERA EM PARIS




         Nunca vi Paris tão jubilosamente inundada de sol e de inteligência como na Primavera de 1914. Parecia que a velha Europa, antes de se envolver no manto de fogo e de luto, quisera oferecer a si própria uma última course aux flambeaux, num dos seus mais famosos boulevards.
        O tempo estava quase sempre bonito, o céu tinha a amenidade perlada do mais cordial setentrião, a gente parecia contente de viver, e de viver precisamente naquela germinante estação. Nas árvores, que se erguiam entre as fortalezas burguesas dos grandes palácios negros, despontavam as primeiras folhas, a despeito do ar que cheirava a gasolina e a asfalto ainda húmido.
         Por toda a parte reinava uma vida alacridade, uma temeridade de experiências, uma vontade de tentar e ir mais além que dava alma e coragem aos mais ensonados, esperanças e embriaguez  aos mais arrojados aventureiros. Por toda a parte se falava em teorias novas, nasciam novas revistas, abriam-se novas exposições, novos poetas e pintores se revelavam. Pareci o festim de Alexandre, antes do incêndio da Babilônia.
         Fora até lá com Soffici e Carrà. Também Marinetti e Palazzeschi vieram por uns dias. Mais do que nunca Paris era a Alexandria da cultura moderna, onde convergiam homens vindos de toda a Europa. Os pintores mais famosos chamavam-se Picasso e Juan Gris, Modigliani e Van Dongen; os escultores mais célebres, Rosso e Archipenko; e também os escritores acorriam de toda a Europa.
Giovanni Papini, Marinetti, Palazzeschi: amigos futuristas
          Nos primeiros dias, logo me encontrei com o inesquecível Guillaume Apollinaire, escritor francês nascido em Roma, de mãe polaca. Corria a lenda, em Paris, de que era filho de um cardeal, talvez porque a sua corpulência e, sobretudo, a arguta bonacheirice do seu rosto largo tinham qualquer coisa de prelatício, qualquer coisa que recordava a adiposa malícia do Leão X, de Rafael. Naqueles tempos, Apollinaire era um dos mais audazes e discutidos escritores que havia em Paris, e a ele se devia, além do mais, a teoria e o êxito da pintura cubista. Mas não tinha nada do hirsuto refractário das passadas guerras literárias e artísticas. Parecia um senhor afável, um fidalgo fantaisiste, mas de garbo requintado, e, como dizem os Franceses, era de commerce agréable. Tinha uma vastíssima cultura de primeira mão, conhecia os segredos e os mistérios das doutrinas antigas e da literatura proibida, e era um curioso de tudo aquilo que não chamasse a curiosidade da gente comum; sabia muitas línguas e, entre elas, o italiano. Tinha já publicado Alcools, que revelaram um poeta original, liberto das peias do Simbolismo e, pelos seus romances, pode contar-se entre os precursores do Surrealismo: creio até que o termo foi invenção sua. Fundara, havia há pouco, uma revista, Les Soirées de Paris, onde também eu publiquei um artigo – um paralelo entre Croce e Bergson –, e até estive instalado com Carrà no apartamento do Boulevard Raspail que era a redação das Soirées: estranha redação, sempre deserta, onde apenas aparecia, mas raramente, o taciturno e fantástico secretário de Apollinaire, o barão Mollet.

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Guillaume Apollinaire
        
     Muitas belíssimas horas passamos com Apollinaire. Um dia, acompanhava-nos aos marchands de tableaux que sustentavam a pintura cubista; outro dia, a uma exposição de vanguarda; à noite levava-nos aos bals musette ou às ruelas misteriosas onde os negociantes de bananas tinham as suas lojas e os seus bares; umas vezes, ao Cirque d’Hiver ou ao Vieux Colombier, onde, pela primeira vez, vi o drama mais famoso de Synge: The Playboy of the Western Worel. Íamos também a casa dele, um último andar do Boulevard Saint-Germain, onde ocupava, sozinho, muito mais divisões espaçosas, cheias de livros, de máscaras japonesas, de esculturas negras e de quadros cubistas.
      Não se julgue, porém, que me considerava a mim e aos meus amigos como provincianos aos quais se divertia a fazer de cicerone numa Paris excêntrica. Sabia perfeitamente que o nosso movimento florentino e italiano estava a par de todos os movimentos europeus do género, e tratava-nos como bons companheiros de procura e de batalha. Ele próprio mandou alguns dos seus escritos à Lacerba, que era então dirigida por mim e por Soffici.


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Picasso et le marchand de tableaux Daniel-Henry Kahnweiller,
Villa La Californie 

 , 1958
        Outro escritor muito curioso que então conheci foi Max Jacob, já convertido ao catolicismo, mas que não tinha perdido nada da sua índole enigmática, caprichosa e por vezes diabólica. Max Jacob era muito diferente do amigo Apollinaire. Também ele tinha algo de padre, mas padre sem sotaina, vadio, pobre e parasita, um tanto vicioso, um tanto genial, um tanto equívoco. Tinha uma cara esquisita, de jovem envelhecido antes do tempo, uma cara vincada e gasta, não sei se pela ascese ou pela sensualidade: uma cara com tanto de santo como de feiticeiro. Tinha já publicado uns livros, entre os quais a lenda de Saint Matorel, mas com pouco êxito. Ele próprio vendia estes volumes pelas casas dos amigos, e para os tornar mais apetecidos apunha-lhes dedicatórias em versos. A mim, por exemplo, quis-me vender uma recolha de contos célticos, intitulada La côte, com esta curiosa dedicatória, que alude à minha “antifilosofia”.

Lorsque tout est fini
Qu’on attend les desastres
Il arrive des astres
Celui qui doit lancer la foudre et le balastre
Pour faire mourir enfin toute philosophie
                                      te voici, Papini.

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Poeta Max Jacob
         Encontrava-o muitas vezes em casa de Roch Grey, pseudónimo literário de uma senhora russa de bizarro talento, fautora e protectora da arte de vanguarda, que possuía, entre outros, alguns dos mais belos quadros do douanier Rousseau que jamais vi. Numa noite em que lá estava muito mais gente – e creio que também lá estavam os irmãos Tharaud – Max Jacob, excitado pelo vinho e pelas conversas, quis, por força, exibir-se numa dança inédita, e não posso esquecer o seu corpo ossudo e desengonçado, apertado num fatito preto e rematado pelo seu rosto compungido de sátiro devoto, de polichinelo místico. Também íamos frequentemente – eu, Soffici e Carrà – a casa de Picasso, onde apareciam muitos pintores franceses e estrangeiros e, uma vez por semana, à então famosa Closerie des lilás, onde se reuniam artistas e escritores de todas as escolas e de todas as raças, e onde conheci Paul Fort, o prince des poètes. Paul Fort tinha, na verdade, qualquer coisa de um príncipe destronado: algo triste, algo cansado, algo distraído, com uma nobre face em que brilhavam dois olhos escuros e profundos de grande visionário. Dirigia, então, Vers et Prose, e era muito ajudado pela mulher, uma senhora simples mas inteligente. Recordo-me de uma longa corrida de fiacre que fiz com ela, por alguns bairros de Paris, em busca de um exemplar dos Chants de Maldoror, do conde de Lautréamot, que não estavam ainde em moda nem reeditados, e de que Paul Fort queria extrair umas páginas para Vers et Prose.
        Muitos outros escritores, célebres ou esquecidos, conheci eu naqueles dias, mas tão fugazmente que não vale a pena recordá-los. Acrescentarei um único.
Forte, paul
Poeta Paul Fort
         Uma das noites mais memoráveis daquela minha estada primaveril em Paris foi a que passei em casa de Constatino Balmont, amigo do meu amigo Jurghis Baltrusaitis e que era, naquela época, um dos mais famosos e falados poetas da Rússia, autor, entre outros, de um volume de versos intitulado Queremos Ser como o Sol.
         Balmont era ainda novo e bem conservado – não atingira ainda os cinquenta anos – e, com a sua cabeleira abundante, os seus longos bigodes e a sua barba em bico, mais parecia um mosqueteiro moscovita de que um homem de letras. Acolheu-nos festivamente e apresentou-nos às numerosas pessoas que enchiam uma sala, não muito grande. Havia muitos russos de Paris e, se bem me lembro, também lá estava o poeta Valério Brjussof. Mas, sobretudo, muitas mulheres, solteironas “cerebralistas” quase todas, em busca de ilusões perdidas e de novos amores. Balmont, naquela noite, mostrava-se digno do título do seu livro: cintilante, brilhante, radiante como o sol que tanto amava. Declamou vários poemas seus, primeiro em russo, depois em francês, com uma voz musicalmente sedutora, e com gestos comedidos de antigo fidalgo. Havia naquelas poesias imagens vívidas e quentes, e sobretudo invocações e recordações de uma vida aberta e triunfante, de uma vida mais cheia de frutos e de alegrias, de uma vida tropical e solar.
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Poeta simbolista russo Constatino Balmont
        
Antes de se despedir de nós, Balmont prometeu que iria a Itália, que iria mesmo a Florença, e que nos avisava. De facto, passado alguns meses escreveu-me a dizer que tinha chegado à minha cidade e, uma tarde, por volta das cinco horas, eu e Soffici fomos ter com ele a uma pensão da Piazza Indipendenza, onde estava hospedado. Indicaram-nos o seu quarto e batemos à porta. Não tivemos resposta. Batemos com mais força. E, então, ouvimos, do lado de dentro, uma voz surda e rouca de ébrio, muito diferente da que conhecêramos em Paris:

         – Não posso. Voltem dentro de duas horas.

         Compreendemos que Balmont, conforme era seu hábito e de outros poetas, passara a noite a beber e, apesar de estar já próxima outra noite, não tinha ainda curtido a bebedeira. Apaixonado pelo sol, o nosso caro Balmont tinha de contentar-se, nos países temperados, com o “calor do sol que se faz vinho”, para utilizar a expressão de Dante.
         Mas voltemos a Paris. Os dinheiros, infelizmente, estavam a chegar ao fim – apesar duns pequenos vales do amigo editor Vallecchi – e era preciso regressar a casa. Numa das últimas manhãs antes da partida, estava a escrever um artigo para Lacerba, mesmo junto à janela, no rés-do-chão onde estava instalada a redação das Soirées de Paris. De repente, senti bater nos vidros. Levantei a cabeça e vi uma rapariga que me sorria e me dizia adeus, acenando com um ramo de violetas que tinha na mão. Não a reconheci – de facto, nunca a tinha visto antes – e limitei-me a corresponder, com sorrisos e com gestos, ao gentil cumprimento da desconhecida. Era provavelmente, uma estudante, ou talvez uma costureirinha que a minha cabeça desguedelhada, debruçada sobre o papel, levara a parar, demonstrando daquela maneira carinhosa a sua pena ou a sua simpatia pelo desgraçado poeta que, em vez de andar lá fora a gozar o sol, estava ali fechado, dobrado a alinhavar palavras.


Revista literária da cidade de Florença
        Aquele jovem sorriso, aquele ramo de violetas, aquela imagem de rapariga desconhecida e todavia amiga, ficaram-me na memória como o extremo cumprimento daquela primavera feliz, como o símbolo afectuoso daquela cidade ardente e acolhedora, que nada pressentia ainda da guerra que dentro em pouco iria agitá-la e entrenebrecê-la.
        Poucos dias depois, regressei a Florença. Voltei a Paris diversas vezes, mas nunca mais encontrei aquela arejada animação, aquela fervorosa ansiedade de descoberta, aquela atmosfera de audaciosa aventura intelectual que tanto me tinham confortado e exaltado na remota Primavera de 1914.

In. O Passado Remoto. Trad. Amandina Puga. Lisboa:Editorial Verbo, 1971, P.204-208.

Fonte das imagens: 

1- https://br.pinterest.com/pin/133137732703619014/    
2- https://www.ecodelnulla.it/la-pulce-e-lelefante
3- https://daliteratura.wordpress.com/2014/08/26/imagens-literarias-7-guillaume-apollinaire/
4-http://www.artnet.com
5-https://br.pinterest.com/pin/539517230342823809/?lp=true
6-https://www.britannica.com/biography/Paul-Fort
7- https://www.pinterest.es/pin/474918723192056152/
8-https://es.wikipedia.org/wiki/Lacerba

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