José Luis Tavares (Cabo Verde) - Poema

 
O rio quando antilira


O rio explode. Quando as mãos
dos anjos vêm varrer a névoa.
Ungido primeiro da tristeza,
escurece-lhe a voz
nas locas onde canta o pez.

Escuto-lhe os decibéis da ira
quando por uma tarde navegável
solta seu manancial de gritos:
já não é essa mansidão que ronronam
os líricos, mas um aguilhão
saltando às têmporas.

Mar e margem amparam o fragor
que leva o desalinho às vísceras.
Na máquina do poema
é lenta a combustão que devolve
o tejo ao afago que tantas metáforas
sussurrou aos
zelosos funcionários da musa.

Não há, porém, métrica que cinja
a voz de um rio quando suspira nas entranhas
avivando um passado que é cisco na memória.


Imagem retirada da Internet: rio

Gilberto Gil - Poema



Procissão



Olha lá vai passando a procissão
Se arrastando que nem cobra pelo chão
As pessoas que nela vão passando
Acreditam nas coisas lá do céu
As mulheres cantando tiram versos
Os homens escutando tiram o chapéu
Eles vivem penando aqui na terra
Esperando o que Jesus prometeu

E Jesus prometeu vida melhor
Pra quem vive nesse mundo sem amor
Só depois de entregar o corpo ao chão
Só depois de morrer neste sertão
Eu também tô do lado de Jesus
Só que acho que ele se esqueceu
De dizer que na terra a gente tem
De arranjar um jeitinho pra viver

Muita gente se arvora a ser Deus
E promete tanta coisa pro sertão
Que vai dar um vestido pra Maria
E promete um roçado pro João
Entra ano, sai ano, e nada vem
Meu sertão continua ao deus-dará
Mas se existe Jesus no firmamento
Cá na terra isto tem que se acabar

Imagem retirada da Internet: Procissão de Santana

Francisco Perna Filho - Conto Inédito


Motivos Pascais



I





Faltavam vinte para as quatro da manhã, quando ele acordou. Apesar de o relógio do celular estar programado para despertá-lo às quatro, fora antecipado pelo seu relógio biológico. Não hesitou, saltou da cama e caminhou para a sala. fixou-se no vidro de Wintomylon: ácido nalidíxico: tomar de 6 em 6 horas, 7 ml, por 10 dias. Sentou-se na ponta da chese, apoiou os cotovelos nas pernas e perdeu-se em divagações.


Havia pegado no sono, quando um piado lhe trouxera de volta, olhou mais uma vez para o celular, foi como se o tempo tivesse parado, apenas cinco minutos haviam passado. Voltou-se para o vidro de antibiótico, era preciso acordar a filhinha dar-lhe o remédio; não poderia vê-la assim definhando por causa de uma infecção intestinal. Bem que ele intuíra que o salgado que ela havia comido poderia fazer mal, mas a fome da criança era bem maior do que qualquer cuidado. Sacudiu a filha, chamou-a e ela respondeu sonolenta, sentando-se na cama (um grande ovo de páscoa sobreveio à resposta da filha. Um ovo grande, azul, embrulhado com motivos pascais), ele engoliu em seco, travou a emoção, contentando-se em ajudá-la a levar o remédio à boca. Ela ardia em febre, ele correu à caixinha de remédio, deu-lhe vinte gotas da dipirona, alisou-lhe os cabelos, falou alguma coisa ao seu ouvido, e ela voltou a dormir.

Ele precisava recobrar o sono, ele tinha de esquecer os incômodos da semana passada: a filha doente, febre de 40°, seguida de diarréia, de espasmos, e muita moleza. Na biblioteca, ligou o computador, para depois aquietar-se nas suas teclas. Abriu a janela, sentiu um calafrio, tentou recompor-se, mas nada lhe tirava da ideia uma forma de reparação. A chuva começou a cair, trazendo-lhe frescor.

Após a chuva, lembrou-se do sonho que tivera, quando, sob uma chuva grossa, percorria as ruas estreitas e sinuosas de um lugarejo qualquer. Errara pela noite, com medo, sem saída, no lugar desconhecido. Benzeu-se por três vezes, assim fazia, sempre que se achava perdido, desiludido ou ameaçado. Rodopiou no seu pequeno espaço, pensou em acender um cigarro, mas aquilo era abominável, foram anos para afugentar o vício, e ele, ali, tendendo a uma recaída. Respirou fundo, levantou-se da velha cadeira amarela e rumou em direção ao quarto: a criança dormia, a febre havia cessado. Alguma luz entrou pela persiana, iluminando o armário embutido na parede. 

Na sala, recostou-se no sofá e, devagarzinho, foi se entregando ao sono, que veio forte, naquele instante. Fora sacudido pelo barulho do interfone. Correu a mão pelo sofá, pelos bolsos, até dar-se conta de que os óculos estavam no seu rosto, dormira com eles. Foi à mesa da sala em busca do controle remoto. Após certificar-se de que era mesmo a sua empregada, Sandra, abriu o portão, deu-lhe bom dia e saiu para tomar banho.

II

“O Inferno é aqui, a gente arde em brasa e ninguém faz nada”. disse-lhe uma aluna na faculdade. Assentira com a cabeça, quando ela emendou: “aqui é a cidade mais democrática do mundo, tem um sol para cada habitante”. Lembrou-se da Comala de Rulfo, do Inferno de Dante. Sorriu e continuou a falar sobre coesão e coerência. A cidade se desfazia em buracos, em locas e barrocas, mas não havia de preocupar-se com isso, o prefeito já dissera, assim como o livro do Eclesiastes: há um tempo para tudo, inclusive para os buracos. A ele, naquele instante, só interessava a filha. 

De volta para casa, lembrou-se de que prometera à filha um ovo de páscoa, caso ela sarasse, uma forma de motivá-la a comer, já que, até aquele instante, só se alimentara de água de coco e algumas colheradas de sopa. A senhora do salgado não agira propositadamente, estava ali, com seu carro aberto, com salgados frios e duros. Lembrou-se da fala de sua aluna: “O Inferno é aqui, a gente arde em brasa e ninguém faz nada”. 

III

Já era sexta feira e ele, tornara-se pensativo. Vez ou outra entrava no quarto da filha adormecida, sentia o tempo listar sua vida, o passado, como um corante, tornara-se vivo, foi quando ele entrou no carro e rumou para o lago. Tirou a roupa e ensaiou um mergulho. Não dissera nada, silenciara ali. (Corpo é encontrado boiando no lago, o que confirma o que dissera a vendedora de salgados, uma senhora de sessenta anos, ao delegado Raul Campos. Segundo ele, um dia antes ela procurara o 1º DP, levando consigo uma bermuda, camiseta e chinelos, que dissera ter encontrado na beira do lago . Os pertences foram encontrados no banco de um carro, que estava com a porta do motorista aberta. O delegado disse, ainda, que no bolso esquerdo da bermuda, foram encontradas três folhas datilografadas, o que, a princípio, a senhora, que mal sabia ler, imaginou, depois de ler apenas o título: “Motivos Pascais” que fosse uma carta de despedida, revelara-se como um conto, no qual, coincidentemente, a senhora dos salgados figurava como protagonista. Segundo a autoridade, o rapaz, um professor universitário de 43 anos, perdera a filha, há dois anos, em decorrência de uma infecção intestinal, e passava por tratamento psiquiátrico.

José Inácio Vieira de Melo - Poema



PAVÃO MYSTERIOZO


A juventude abriga a zoada,
bebe o vinho da aridez
e sente o gozo do oásis.

Em seu canto cabe
o voo imenso do Condor
para dentro de alguma paisagem.

Minha angústia pretende esse voo:
Ícaro partindo para o Sol:
maior de todas as transcendências.

E de repente voar diante dos homens,
Pavão Mysteriozo, pássaro formoso,
mesmo sob essa longa indiferença.


Imagem retirada da Internet: Pavão


Memory-full
   A invençãoda memória

                                         Brasigóis Felício


                                                                                                       
A memória do tempo relaciona-se com o que estão dentro do que pode ser conhecido ou lembrado pela mente. Não pode abarcar o tempo intemporal, que transcende tempo e espaço – lugares ilusórios, em que pode transitar a memória. Ainda que a memória seja redutível ao tempo, o tempo não pode ser circunscrito à memória. Pois há um tempo total, que transcende todas as idades: o tempo da eternidade.

Não sabemos esquecer os bons e maus momentos que vivemos. Insistimos em carregar esta bagagem pesada e inútil, como fluxos de memória que nos ferem como facas, produzindo angústia e sofrimento. Tudo por não saber a paisagem da vida é sempre jovem, em micro-átomos de segundos se renova. Tudo muda todo o tempo, só não muda a mudança infinita. Mas insistimos em respirar o mofo do conhecido. É que sofremos do vício de viver a fuçar e refocilar no baú da memória. Não há o que não mude eternamente na paisagem da vida. Não há vida que não morra, nem há morte que não esteja sempre viva. Não há paisagem que não mude, nem passageiros ou viagens: só permanece a infinita viagem da Vida.

Destinos se cruzam nos aeroportos, sem que se conheçam uns aos outros, ou a si mesmos. Fernando Pessoa nos diz: “Para viajar, basta existir. Vou de dia para dia, de estação para estação, no comboio de meu corpo, ou de meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos sempre iguais e sempre diferentes como, afinal, as paisagens são. A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos não é o que vemos, senão o que somos”.

A memória é o inferno vivido agora. E a ele nos condenamos. Com a memória criamos tempo na mente. Então passamos a navegar em suas turbulências vazias. A mente comum não pode conter a supermente, a que vive além da memória ou da inteligência racional de que o ser humano é dotado. A mente total, unificada com o silêncio criador do Absoluto, transcende os limites do Ser que pode ser. É uma vastidão não nascida, que não pode morrer.

Não existe fantasma que venha do passado. O fantasma é o passado. O tempo, assim  como a vida, é uma nave em eterna viagem: “Não apita na curva/não para no porto/não espera ninguém/”. Paul Auster, em seu romance A invenção da solidão, cita Santo   Agostinho: “A mente é estreita demais para conter a si mesma inteiramente. Mas onde está essa mente que não está contida nela mesma? Estará em algum ponto fora dela, e não em seu interior? De que modo, portanto, ela pode ser uma mente, se não está contida nela?”.

Em certo instante, diz S. um dos personagens de A invenção da solidão – um compositor banido do cenário musical da França, acusado de colaborar com os nazistas, por permitir a execução de uma peça de sua autoria, durante a ocupação: “Tudo é milagroso. Nunca houve uma época mais maravilhosa do que esta”. Isto, apesar de sobreviver em um quartinho miserável, passando fome e frio, escondido atrás da máscara da excentricidade, que lhe permitia ser outro em si mesmo. S. ocupava-se, obsessivamente, em escrever uma sinfonia cuja execução duraria doze dias e noites seguidas.

Em seu fracasso sem esperança ele descansava no milagre de estar vivo. Não se importava com o fato de, sendo um artista, viver como um artista mendigo; Na insustentável leveza de Ser, equilibrava-se na corda bamba, entre a certeza do fracasso e o milagre inerente ao próprio simples fato de existir.  Talvez por saber que – maravilhosa ou miserável – a única época que pode ser impregnada pelo milagre da Vida é o eterno agora.


Imagem retirada da Internet: Memória

Paul Eluard - Poema


Paul Eluard
As Far As My Eye Can See 
In My Body’s Senses



All the trees all their branches all of their leaves
The grass at the foot of the rocks and the houses en masse
Far off the sea that your eye bathes
These images of day after day
The vices the virtues so imperfect
The transparency of men passing among them by chance
And passing women breathed by your elegant obstinacies
Your obsessions in a heart of lead on virgin lips
The vices the virtues so imperfect
The likeness of looks of permission with eyes you conquer
The confusion of bodies wearinesses ardours
The imitation of words attitudes ideas
The vices the virtues so imperfect

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