Manuel Bandeira - Poema


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Tragédia brasileira



Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade, conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo o que ela queria.
Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.
Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa.
Viveram três anos assim.
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...
Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.

In. BANDEIRA, Manuel. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 238
Imagem retirada da Internet: projétil

Raul Bopp - Poema



Urucungo


Pai-João, de tarde, no mocambo, fuma
E as sombras afundam-se no seu olhar.
Preto velho afaga no cachimbo a lembrança dos anos de trabalho que lhe gastaram os
músculos.

Perto dali, no largo pátio da fazenda,
umbigando e corpeando em redor da fogueira,
começa a dança nostálgica dos negros,
num soturno bate-bate de atabaque de batuque.

Erguem-se das solidões da memória
coisas que ficaram no outro lado do mar.

Preto velho nunca mais teve alegria.

às vezes pega no urucungo
e põe no longo tom das cordas vozes que ele escutou pelas florestas africanas.

Dói-lhe ainda no sangue uma bofetada de nhô-branco.
O feitor dava-lhe às vezes uma ração de sol para secar as feridas.

Perto dali, enchendo a tarde lúgubre e selvagem,
a toada dos negros continua:

Mamá Cumandá
Eh bumba.
Acubabá Cubebé
Eh Bumba.

In.Urucungo (1932)

Imagem retirada da Internet: Pai-João

Raul Bopp - Poema


Fórmula

- Vamos fazer um trato
numa conta corrente de interesses:

Eu te elogio.
Tu me elogias.
Seremos lembrados.
Seremos fortes.
Seremos gênios.

O povo pensa pelo que lê nos jornais.

Um dia
o Prefeito, lá na província telegráfica,
mandará levantar um bustinho em praça pública.

Imagem retirada da Internet: político

Raul Bopp - Poema (fragmentos)



Cobra Norato

I

Um dia
ainda eu hei de morar nas terras do Sem-Fim.


Vou andando, caminhando, caminhando;
me misturo rio ventre do mato, mordendo raízes.
Depois
faço puçanga de flor de tajá de lagoa
e mando chamar a Cobra Norato.


— Quero contar-te uma história:
Vamos passear naquelas ilhas decotadas?
Faz de conta que há luar.


A noite chega mansinho.
Estrelas conversam em voz baixa.


O mato já se vestiu.
Brinco então de amarrar uma fita no pescoço
e estrangulo a cobra.


Agora, sim,
me enfio nessa pele de seda elástica
e saio a correr mundo:


Vou visitar a rainha Luzia.
Quero me casar com sua filha.


— Então você tem que apagar os olhos primeiro.
O sono desceu devagar pelas pálpebras pesadas.
Um chão de lama rouba a força dos meus passos.



II

Começa agora a floresta cifrada.
A sombra escondeu as árvores.
Sapos beiçudos espiam no escuro.


Aqui um pedaço de mato está de castigo.
Árvorezinhas acocoram-se no charco.
Um fio de água atrasada lambe a lama.


— Eu quero é ver a filha da rainha Luzia!


Agora são os rios afogados,
bebendo o caminho.
A água vai chorando afundando afundando.


Lá adiante
a areia guardou os rastos da filha da rainha Luzia.


— Agora sim, vou ver a filha da rainha Luzia!


Mas antes tem que passar por sete portas
Ver sete mulheres brancas de ventres despovoados
guardadas por um jacaré.


— Eu só quero a filha da rainha Luzia.


Tem que entregar a sombra para o bicho do fundo
Tem que fazer mironga na lua nova.
Tem que beber três gotas de sangue.


— Ah, só se for da filha da rainha Luzia!


A selva imensa está com insônia.


Bocejam árvores sonolentas.
Ai, que a noite secou. A água do rio se quebrou.
Tenho que ir-me embora.


E me sumo sem rumo no fundo do mato
onde as velhas árvores grávidas cochilam.


De todos os lados me chamam:
— Onde vai, Cobra Norato?
Tenho aqui três árvorezinhas jovens, à tua espera.


— Não posso.
Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia.



IV

Esta é a floresta de hálito podre,
parindo cobras.


Rios magros obrigados a trabalhar.


A correnteza arrepiada junto às margens
descasca barrancos gosmentos.


Raízes desdentadas mastigam lodo.


A água chega cansada.
Resvala devagarinho na vasa mole
com medo de cair.


A lama se amontoa.


Num estirão alagado
o charco engole a água do igarapé.


Fede...


Vento mudou de lugar.


Juntam-se léguas de mato atrás dos pântanos de aninga.
Um assobio assusta as árvores.


Silêncio se machucou.


Cai lá adiante um pedaço de pau seco:
Pum


Um berro atravessa a floresta.


Correm cipós fazendo intrigas no alto dos galhos.
Amarram as árvorezinhas contrariadas.


Chegam vozes.


Dentro do mato
pia a jurucutu.


— Não posso.
Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia.



XXXII

— E agora, compadre,
eu vou de volta pro Sem-Fim.


Vou lá para as terras altas,
onde a serra se amontoa,
onde correm os rios de águas claras
em matos de molungu.


Quero levar minha noiva.
Quero estarzinho com ela
numa casa de morar,
com porta azul piquininha
pintada a lápis de cor.


Quero sentir a quentura
do seu corpo de vaivém.
Querzinho de ficar junto
quando a gente quer bem, bem;


Ficar à sombra do mato
ouvir a jurucutu,
águas que passam cantando
pra gente se espreguiçar,


E quando estivermos à espera
que a noite volte outra vez
eu hei de contar histórias
(histórias de não-dizer-nada)
escrever nomes na areia
pro vento brincar de apagar.

Raul Bopp - Poema


História do Brasil em quadrinhos





No meio do Brasil havia um rio
que não tinha margens.
Rio imenso.
A água corria, corria. Correu tanto
que um dia secou.


Apareceram, então, na crosta mole, à flor da terra,
montões de pedrarias de vivas rutilâncias.
O sol brincava com diamante.
Dos barrancos beiçudos,
sangrava ouro, em veios retorcidos.
O ferro relampeava nas jazidas,
que se estendiam em léguas intermináveis.


Deus pensou um pouco:
Será melhor que o ser humano não pegue logo essas riquezas!
Mandou o Anjo Número Um cobrir de terra isso.
Amontou montanhas. Espalhou mato em toda parte.
- Quem quiser essa opulência que a procure!
E escondeu o petróleo mais pro fundo.


Depois disse pro Anjo:
- Vou passar aqui as minhas férias.
Essa terra é mesmo tão graciosa,
sem tufões, sem vulcões, sem terremotos.


E ficou esperando pelos acontecimentos históricos.


                           II


Um dia,
viu uma naus portuguesas paradas no oceano,
por falta de vento.
Deu um assoprão nas velas murchas.
Vieram logo bater nas costas brasileiras.


Ué, exclamou Cabral, do alto da proa:
Essa terra não existe nos mapas!


Mas, mesmo assim, desembarcaram.


                          III


E foram chegando outras naus,
com hordas de homem ansiosos de aventuras.
Avançaram terra adentro, à procura de ouro.
Depois avançaram nas tapuias de pele dourada.
Avançaram nas negras de carnes reluzentes,
trazidas em navios negreiros.


                            IV


E o Brasil foi se fazendo desse jeito,
em grandes misturas,
com violência, estupros e adultérios.


As cortes de Lisboa estavam cada vez mais prósperas.
Enviavam feitores e governadores,
com Alvarás e novas Cartas Régias.


As caravelas voltavam
abarrotadas de açúcar, pau-brasil e ouro.
O Brasil era propriedade de El-Rey.


Mas a colônia desgostosa se agitava,
com revoltas, motins, inconfidências.


Um dia,
o povo oprimido deu um berro:
- Agora chega! Basta de exploração!
Foi um berro pra valer mesmo.


Valeu, tempos depois depois, a nossa independência.




                                                                         1973



In. Poemas Brasileiros.
Imagem retirada da Internet: Rio Amazonas

JJ Leandro - Poema


 
                                                                                     Foto by Paulinho Ferrarini

EXAGERADO MARANHÃO


De onde eu vim,
Carolina —
não dos Estados Unidos
mas
do Maranhão, perto de Filadélfia,
não dos Estados Unidos mas do Tocantins,
bem ao sul, não do Brasil,
do Maranhão — tudo
é grande.
É grande a miséria do povo
e seus anos de servidão a senhores
que
não o honram.
É grande a palmeira adulta — o babaçu.
Perdem-se de vistas os domínios
quase feudais
dos grandes senhores de terras e seus
rebanhos
pascentes: gado bovino e gente sem dentes
sempre
com a cerviz abaixada.
É grande o rio que corre livre,
só ele
é livre do jugo de cinco séculos.
É grande a fé que incute a resignação
num destino
único que alia miséria e preces.
São grandes as ruas de minha cidade,
suas praças
e os homens pétreos que as habitam.
Estranhamente
também é
grande
a alegria do povo nos folguedos
e a certeza dos senhores
quase feudais
em seu mando
eterno: Luís XVI invejar-lhes-ia as belas Marias Antonietas
e seus pescoços de porcelana
que há cinco séculos
só conhecem beijos e colares.
De onde eu vim tudo é grande:
até a poesia e o inconformismo de seu poeta.


In. Quase Ave, 2002, p.119-120

Raul Bopp - Poema


Mãe Muiraquitã



Água soturna e morta...Erguem-se, à toa,
As velhas sombras dessa moradia.
É a alma tapuia a errar, no adeus do dia,
No ermo sem fim que a solidão povoa.


Quando a flor do luar desabotoa
Dentro da noite, na neblina fria,
A Mãe Muiraquitã paira, sombria,
Sobre a água encantada da lagoa.


Entre os juncais, um vulto verde treme...
Mas, nesta noite de pecado e glória,
As icamiabas nuas onde estão?


Dentro da selva imensa, a noite geme.
- É a alma da raça triste, sem história,
Que anda chorando pela solidão.


In.Versos Antigos
Imagem retirada da Internet: Mãe Muiraquitã

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