Sinésio Dioliveira - Poema


Tessitura



Manoel
é barros
ventos
rios
chilreios
trovões
enxurradas...
É passarinho poeta –
manoel-de-barros –
construindo seu canto
de terra molhada.
Manoel
é manual de passarinho
homem que veio da entranha da terra.

Manuel Maria Barbosa du Bocage - Poema


Foto by Gustavo Ribeiro

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores:

Ponderei da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas, e amores,
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração dos seus favores:

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns, cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.



In. Sonetos e Outros Poemas. São Paulo: FTD, 1994, p.19.

Paulo Mendes Campos - Crônica


O cego de Ipanema



Há bastante tempo que não o vejo e me pergunto se terá morrido ou adoecido. É um homem moço e branco. Caminha depressa e ritmado, a cabeça balançando no ato, como um instrumento, a captar os ruídos, os perigos, as ameaças da Terra. Os cegos, habitantes do mundo esquemático, sabem aonde ir, desconhecendo nossas incertezas e perplexidades. Sua bengala bate na calçada, com um barulho seco e compassado, investigando o mundno geométrico. A cidade é um vasto diagrama, da qual ele conhece as distâncias, as curvas, os ângulos. Sua vida é uma série de operações matemáticas, enquanto a nossa costuma ser uma improvisação constante, uma tonteira, um desvairio. Sua sobrevivência é um cálculo.


Ele parava ali na esquina, inclinava sua abeça para o lado, de onde vêm ônibus monstruosos, automóveis traiçoeiros, animais violentos dessa selva de asfalto.Se da rua viesse o vago e inquieto ruído a que chamamos silêncio, ele a atravessava como um bicho assustado, sumia dentro da toca, que é um botequim sombrio. Às vezes, ao cruzar a rua, um automóvel encostado à calçada impedia-lhe a passagem.Ao chocar-se contra o obstáculo, seu crpo estremecia; ele disfarçava, como se tivesse apenas tropeçado, e permanecia por alguns momentos em plesna rua, como se a frustração o obrigasse a desafiar a morte.


Mora em uma garagem, deixou crescer uma barba espessa e preta, só anda de tamancos. Como profissão, por estranho que seja, faz chaves e conserta fechaduras, chaves perfeitas, chaves que só os cegos podem fazer. Vive (ou vivia) da garagem do botequim, onde bebe, conversa e escuta rádio. Os trabalhadores que almoçam lá o tratam afavelmente, os porteiros conversam com ele. Amigos meus que o viram a caminhar com agilidade e segurança não quiseram acreditar que fosse completamente cego.

- Já reparou como ele é elegante?

Seu rosto alçado, seu passo firme a disfarçar um temor quase imperceptível, seus olhos esvaziados de qualquer expressão familiar, suas roupas rotas compunham uma figura misteriosamente elegante, uma elegÂncia hostil, uma elegância que nossas limitações e hábitos mentais jamais conseguirão exprimir.

Às vezes, revolta-se perigosamente contra seu fado [Destino]. Há alguns anos, saíra do boteco e se postara em atitude estranha atrás de um carro encostado ao meio-fio. Esperei um pouco na esquina. Parecia estar à espreita de alguma coisa, uma espreita sem olhos, um pressentimento animal. A rua estava quieta, só um carro vinha descendo silenciosamente. O cego se contraía à medida que o automóvel se aproximava. Quando o carro chegou à altura do ponto onde se encontrava, ele saltou agilmente à sua frente. O motorista brecou a um palmo de seu corpo, enquato o cego vibrava sua bengala, gritando: "Está pensando que você é o dono da rua?"

Outra vez, eu o vi num mmento particular de mansidão e ternura. Um rapaz que limpava um Cadillac sobre o passeio deixou que ele apalpasse todo o carro. Suas mãos percorreram o para-lamas, o painel, os faróis e os frisos. Seu rosto se iluminou, deslumbrado, como se seus olhos vissem pela primeira vez uma grande cachoeira. o mar de econtro  aos rochedos, uma tempestade, uma bela mulher.

E não me esqueço também de um domingo quando ele esatava saindo do boteco. Sol morno e pesado. Meu amigo ego estava completamente b~ebado. Encostava-se à parede em uma tentativa improvável de equilibrar-se. Ao contrário de outros homens que se embriagavam aos domiingos, e cujos rostos ficaam irônicos e ferozes, ele mantinha uma expressão ostensiva de seriedade. A solidão de um cego rodeava a cena e a comentava. Era uma agonia magnífica. O cego de Ipanema representava, naquele momento, todas as alegorias da noite escura da alma, que é a nossa vida sobre a Terra. A Poesia servia-se dele para manifestar-se aos que passavam. Todos os cálculos do cego se desfaziam em meio à turbulência do álcool. Com esforço, despregava-se da parede, mas então já não encontrava o mundo. Tornava-se um homem trêmulo e desamparado, como qualquer um de nós. A agressividade, que lhe emprestava segurança, desaparecera. A cegueira não mais o iluminava com seu sol opaco e furioso. Naquele instante, ele era só um pobre cego. Seu corpo gingava para um lado, para o outro, sua bengala espetava o chão, evitando a queda. Voltaa assustado à certeza da parede, para recomeçar, momentos depois, a tentaiva desesperada de desprender-se da embriaguez e da Terra, que é um globo cego girando no Caos.


In. Para gostar de Ler 5: Crônica. São Paulo: Ática, 2008, p.74-76.
Imagem retirada da Internet: Paulo Mendes Campos.

Valdivino Braz - Poema


Da esquerda para direita: Valdivino Braz, Delermando Vieira e Chico Perna
Os Homens no Bar(co)


Os homens envelhecem no bar
bebendo as palavras salobras da noite
e cuspindo o azinabre corrosivo do tédio

E na longa travessia das horas
destiladas pelos copos
sabem o cansaço dos corpos
os vincos nas faces vulneráveis
e a vida moída pela mó
do inexorável

Sabem o íntimo silêncio
em que os gestos se anulam
os olhos no vazio vagam
e cada homem diz a si mesmo coisas
uns aos outros indizíveis

Sabem nesta hora a solidão sozinha
do lobo ferido no ermo do mundo
e os inevitáveis borrões vermelhos
da sangria própria do que é vivo
e dói

E morrem os homens à mesa do bar
barco de náufragos no mar de espuma
da última cerveja


In. A palavra por desígnio. Goiânia: UBE, 1983, p.22.




Gerardo Melo Mourão - Poema


SIBILA
(Último oráculo)



Perdido nas veredas das palavras
tapa os ouvidos - canto sibilino
não escuta: olha apenas estes olhos
apaga teus sentidos - só nos olhos
acharás o caminho; sem meus olhos,
somente os meus - redondos neste rosto -
morrerás entre ínvios labirintos.

Sibila sou - Sibila, a Sâmia, a Délfica*
poetas e pontífices me seguem
olha meus olhos - não te perderás
olha meus olhos e estarás perdido
perdido neles morrerá de amor
e os que morrem de amor não morrem nunca
olha meus olhos - me verás inteira
em teus olhos de morto estarei viva
e minha vida espantará da tua
a morte para sempre - e para sempre
em tua vida há de viver a minha.


12/12/99


*Nota do autor: A última Sibila grega, chamada Sibila Sâmia, e também Sibila Délfica, pois viera de Samos e profetizava em Delfos, teve um longo encontro com em Roma, outro em Veroli, com o Papa Júlio III. A bela cabeça da Sibila, com seus olhos impressionantes, está na Capela Sistina.


In. Algumas Partituras. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002, p.42.
Imagem retirada da Internet: Sibilia

Gerardo Melo Mourão - Poema


Foto by Francisco Javier Alcerreca - Pétala seca
PEQUENA ODE A UMA PÉTALA SECA OU
 A ESPERADA RESSURREIÇÃO DA ROSA




Entre folhas de versos de Propércio¹
jaz a pétala seca a flor enxuta;
a rosa úmida e inteira jaz na gruta
do amor e da memória do poeta.

O que era rosa agora é quase espinho
e na pétala seca o que se oculta
é uma rosa de sonhos insepulta
um pássaro do qual só resta o ninho.

Talvez um dia, amor, orvalho e aurora
à mão da musa que a colheu em flor
ressuscitem aroma e forma e cor
e rosa torne a ser o que foi rosa outrora.

Talvez um dia a flauta antiga sopre Orfeu
e à pétala fiel as que se foram, voltem
e da corola nunca mais se soltem
e o rouxinol torne a cantar no ninho seu.

                                             
  Copacabana, 29/11/97




1- Wikipédia: Sextus Aurelius Propertius (43 a. C. - 17 d. C.) foi um poeta elegíaco e mitógrafo romano nascido em Assis, Úmbria, Itália, representante da antiga escola de Calímaco e o mais característico da poesia elegíaca latina.


In. Algumas Partitura. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002, p.41.

Cida Almeida - Ensaio Curto


A travessia do sertão de Hugo de Carvalho Ramos





Há leituras que escavam a gente. E escavam desde o brejo do barro mais fundo. Fui procurar o meu avô e a sua saga tropeira no fundo do poço da memória de um Brasil perdido, a sua travessia em definitivo do rio Paranaíba (divisa natural de Minas e Goiás), as águas do grande rio dividindo as Minas Gerais de sua alma espraiando-se nos sertões calejados de Goiás – onde tantas almas nossas fecundaram. Da plaqueta vermelha que ostentou o carro de boi do meu avô no passo duro da estrada (Carro de boi 108, Araguari, 1944), levantando o poeirão contínuo do sertão de Minas e Goiás – e queria tanto saber o nome de seus bois, para pronunciá-los poeticamente como num mantra de tocar a raiz funda da árvore de nossa história familiar! – ao livro de Hugo de Carvalho Ramos, Tropas e Boiadas. Da história de meu avô a Hugo de Carvalho Ramos, uma jornada dura que tem me instigado e mexido muito com as emoções e a imaginação. Da história de meu avô a Hugo de Carvalho Ramos, um baque seco, como se eu tivesse caído do lombo de um cavalo indomável, daqueles que meu avô amansava e que só respeitavam a sua autoridade incontestável. 

E sigo justamente essa poeira vermelha da estrada do Brasil de dentro, poeira do sertão engolido pelo tempo, soterrado pelas máquinas que apagaram, não de todo, o rastro das boiadas. Ainda é uma cena comovente de se ver: a comitiva tangendo boiadas no concreto do asfalto.

Tempo desses, topei com duas comitivas de boiadeiros. Uma seguia rumo Norte, entre os municípios de Goianésia e Uruaçu. A outra, no Vale do Araguaia, próximo a Aruanã. Na paisagem, apenas uma mancha ou outra de cerrado preservado quebrando a monotonia das monoculturas de exportação a perder de vista, a soja e os canaviais num verde sem fim. 

E a ternura de olhar a inusitada miragem da boiada em seu lento arrastar pelo asfalto e os boiadeiros ponteando a manada... Ohhh! Puxo as rédeas do olhar e empaco. Deixo a saga de meu avô no fecundo poço da memória. E sigo a galope o sertão pintado por Hugo de Carvalho Ramos no começo do século passado, aqueles idos de 1914 a 1917. 

Acredito que, assim como eu na minha procura, Hugo foi dar no mesmo brejo fecundo do barro fundo, o da memória afetiva. No mundo do encantado sertão de Hugo de Carvalho encontro o sertão desbravado pelo meu avô. O mesmo além Paranaíba, histórias que ouvi, as trilhas abertas pelos cascos dos bois onde o traçado do caminho não beirava nem a intuição de estrada – as perdidas estradas do boi, a rota do comércio entre as gentes das bandas de cá e de lá, na mesma bacia das almas, pois é difícil encontrar um goiano que não tenha um pé remoto em Minas. Aqueles homens de sertão, no calejado das rédeas de domar animais, brabezas de gente e de bicho, um arcaico Brasil conduzido por fazendeiros que fundavam seus reinos com mãos de ferro, esticando cercas de arame farpado a perder de vista no cerradão goiano. 

O coronelismo falando grosso por esses rincões perdidos de Deus, sacramentando a defesa de interesses financeiros e políticos em alianças que asseguravam o domínio das terras, os privilégios de classe e o poder da aristocracia na província. E o falar grosso era o império da força bruta, do chicote, a lei do 38, das brutalidades que sacramentavam os domínios do latifúndio. Sem contar ainda das espúrias relações de compadrio entre os donos de terra e os agregados, mascarando a exploração com todos os componentes da servidão de nossa herança escravocrata. 

Fui procurar o meu avô no recorte literário daquele mundo por onde andou e desandou muito dos nossos genes em Tropas e Boiadas. Livro que vez ou outra entra na lista dos indicados para os vestibulares das universidades goianas, que (in) explicavelmente passou ao largo de minhas mãos e dos meus interesses nos tempos do colegial e da faculdade. 

Nascido em 21 de maio de 1895, na Vila Boa de Goiás, antiga Capital da Província e do Estado, Hugo de Carvalho estudou no Rio de Janeiro, formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais. Morreu jovem, aos 26 anos de idade, no dia 12 de maio de 1921. Mário de Andrade, num daqueles congressos de escritores, em 1942, reverenciou Tropas e Boiadas, única obra de Hugo, como leitura essencial para quem quisesse compreender o Brasil de dentro, o Brasil do Planalto Central, o Brasil que vive de costas para o mar.

Hugo de Carvalho e os nomes dos bois de meu avô, incógnitas que por esses dias duelam com a minha curiosidade, esgrimam com pensamentos seguindo fios de intuição, relampejos na memória, uma insistência querendo claridade, materialidade e entendimento. E a possibilidade de tocar o mundo nunca esteve tão fácil. Basta apenas um click. Abro a porteira do ciberespaço e com um click encontro no mundo virtual de tantas e confusas possibilidades as Tropas e Boiadas de Hugo de Carvalho Ramos, obra que este ano completou 70 anos e já é de domínio público. É uma obra referencial em matéria de regionalismo, muito citada em teses de mestrados e doutorados, mas pouco lida e estudada – penso eu.

Nas minhas pesquisas pela Internet encontrei apenas um livro de análise da obra, A Narrativa de Hugo de Carvalho Ramos, da professora Albertina Vicentini. Também encontrei alguns artigos. E o bom é que o exemplar de Tropas e Boiadas que comprei num sebo de Goiânia veio com um bônus: anotações de algum aplicado estudante que esmiuçou, didaticamente, a obra, destacando personagens, foco narrativo e os significados de expressões e nomes de coisas do universo trabalhoso dos tropeiros. Vislumbrei atrás deste estudante um professor mais aplicado ainda em montar um roteiro de leitura, desses que de tão enfadonho afastaria ao mais interessado dos leitores. E pior ainda, embarcando para o matadouro a imaginação do leitor e as possibilidades de interação emocional com a obra. Agradeço não ter sido embarcada naquele lote e hoje sonho a galopes com o encantado da narrativa de Hugo de Carvalho e escavo o meu desejo de penetrá-la nas camadas fundas.

Meio que esquecida da saga do meu avô, a escrita, a pintura e os personagens de Hugo têm mexido e remexido fundo. E me vem umas imagens, uns clarões no breu desse desejo de arqueologia. Estou raspando camadas, aguçando a escuta, guardando pistas, um punhado de palavras e imagens que sorrateiramente coloco sob as mangas, como cartas de um jogo. Embrenho-me pelo sertão pré-rosiano de Hugo e, impressionismo do meu olhar (talvez), escuto uma voz que quase assovia na varanda de Riobaldo - ilusionismo do escorregadio sertão, inda mais esse eivado de vestígios da memória.

E o sertão de Hugo de Carvalho arde como as queimadas na secura do cerradão, seguindo o rastilho inflamável do capim seco. Arde no meu desejo de compreender, mais do que decifrar. Difícil atravessar a cortina de silêncio sobre o homem Hugo de Carvalho, fato que talvez se explique pelo que teria de inexplicável um suicídio na província (Hugo enforcou-se com a escápula da rede em que costumava se deitar, segundo informação no prefácio da 6ª edição de Tropas e Boiadas, 1984, de Victor de Carvalho Ramos - irmão de Hugo -, texto datado de 1964). Notícia veiculada no jornal da província, segundo o irmão: morreu um bacharel. 

E a figura de Hugo de Carvalho destoa completamente daquele mundo do sertão que pinta viva e detalhadamente em Tropas e Boiadas. E nunca vi tanta ternura na pintura de um mundo de incomensuráveis brutalidades. Histórias que percorro na firmeza de sua escrita, histórias que ainda ouço de memória nas narrativas do meu avô, como parte de uma trama do inconsciente coletivo. Histórias que se arrastaram sertão goiano adentro, tempo afora, desde as Minas Gerais. A inocência daquelas maldades, as forças hermogêneas, as grandes e definitivas travessias.

Há leituras, como disse, que escavam a gente. Definitivamente, sei que vou cavalgar com Hugo, o escritor que recria em mim a força norteadora do meu avô no coração do Planalto Central, um homem que também domava destinos. Cavalgar com Hugo, soltando as rédeas, sem as amarras das teorias literárias - na minha curiosidade inicial o que encontrei me encheu de insatisfação. Uns enveredam pela linguagem, trilha natural, mas não é por aí que Hugo me pegou. É que dentro do academicismo de sua escrita foram abrindo-se ao sabor da minha leitura em disparada umas clareiras, umas belezas indomáveis, uns êxtases espontâneos, e uns diabinhos dançando no meu peito, entre picadas de borrachudos. 

E mais do que aquela cobra enrodilhada no peito daquele peão (personagem incidental em Gente da Gleba, uma novela onde entrevejo esboço e fôlego de um romance) que dormia profundo e sentia o peso dos diabinhos pulando na quentura do corpo largado ao sono no meio do mato à visão aflitiva da serpente. Aqueles suores, aqueles focos narrativos negaceando como uma cobra cega. E Expedito (Dito)? E aqui me calo, reservando-me para a proximidade visceral do seu sertão, do meu sertão, em que rumino a esperança de ouvir os nomes dos bois secretos de sua criação. 

Vou cavalgar com Hugo por muito, mas muito tempo mesmo. Isso é certo. Tudo nele me impressionou, principalmente o que intui nas fotografias. Aquela figura de dândi, pele alvíssima, delicadíssimas mãos, silêncios prolongados no ver e no dizer, mas que têm se aninhado no meu peito como aquela serpente insidiosa no corpo de uma das suas personagens que trilham o sertão do nosso imaginário. E uma interlocução assim a gente não despreza, ainda mais vinda do fundo do poço, daquele barro fecundo viajando na perenidade do tempo, atualizando no meu interesse um desejo de ver além do que já vi. Uma interlocução assim não há como desprezar. Tem mais é que ir em frente. A ponte: a escuta. O guia: a voz. E não sou mais eu que segue o rastro da boiada da criação de Hugo. É ela que me escava, acordando uma necessidade de ver.

E vi de relampejo tanta coisa que pede metódica releitura. Que pinturas na paisagem do sertão de Hugo de Carvalho, o sertão de dentro e de fora do homem! Em alguns momentos chego a entrar na pintura, tamanha pulsação de cores e contrastes. Enquanto o sertão ainda estava sendo desbravado ele levanta sua voz contra o rastro de destruição. Ali, naquelas preciosas páginas de Tropas e Boiadas, uma voz de ecologista integra-se naturalmente à paisagem que percorre sem o estardalhaço do panfleto. E em tantos trechos a minuciosa e poética descrição da paisagem feita por Hugo acariciam os nossos sentidos como uma pintura em movimento, beirando cinema, um relicário com força de documentário da fauna, flora e gente do cerrado. Nunca mais esquecer a ternura do olhar de Hugo. 

Ele faz um desvio profundo na trilha seguida por outros regionalistas que levavam o homem ao fundo do poço da degradação. Entendi lendo Hugo o que me desagradava tanto na literatura de Bernardo Élis, o nosso imortal. Era justamente esse olhar degradante, a falta de saídas, nenhuma zona de repouso, nenhuma ternura que resgatasse a nossa precária humanidade. Até hoje a lembrança da leitura do conto A Enxada de Bernardo Élis me provoca um desconforto estranho. 

Em Hugo, não. A crueza mais visceral nos aprisiona o olhar pela ternura. É um escritor que não precisa do conjunto da obra ou mesmo da fórmula de um livro fechado em seu conceito para nos convencer do seu valor literário. Basta a leitura do mínimo e profundo conto Ninho de Periquitos para nos seqüestrar irremediavelmente a admiração pelo escritor. Ali, o amor de um pai que não quer aborrecer o filho adolescente justo no dia do aniversário e que mesmo contrário a mexer no curso da natureza, profana um ninho de periquitos. E há tantos símbolos, tantos arquétipos, tantas camadas e trilhas a percorrer nessa única e definitiva obra de Hugo...

E ainda falando de ternura, assim como Riobaldo se encantava com o canto dos pássaros, Hugo também afinava os ouvidos da gente. Ah, e alguém que nessa trilha encantatória do sertão escreve os “joões-conguinhos”, definitivamente, já imprimiu a poesia do seu olhar. 

Imagem retirada da Internet: tropeiro

Manuel Bandeira - Poema


oceano.jpg
OCEANO



Olho a praia. A treva é densa.
Ulula o mar, que não vejo,
Naquela voz sem consolo,
Naquela tristeza imensa
Que há na voz do meu desejo.

E nesse tom sem consolo
Ouço a voz do meu destino:
Má sina que desconheço,
Vem vindo desde eu menino,
Cresce quanto em anos cresço.

- Voz de oceano que não vejo
Da praia do meu desejo...

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