Valdivino Braz - Ensaio Crítico

Equívocos, co-autoria e a morte do livro



Volta e meia, a cada ano que se inicia, o jornalismo cultural nos solicita e publica um “programa de leitura”. Meio que avesso à contingência de preestabelecer e repassar relação do que pretendemos ler no decurso de um novo ano, me pergunto em que, a fundo, isso possa interessar e ser útil a algum leitor, leigo que seja ou letrado em matéria literária. Alguma concreta curiosidade ou real interesse quanto a isso? Quem, realmente, quer saber o que estamos lendo, ou se interessa pelo que vamos ler? E para quê quer saber? Sabê-lo servirá, porventura, a algum parâmetro ou nobre propósito? Constituirá, aqui e agora ou algures, alguma espécie de farol, sinal indicativo, vetor valorativo, substancial roteiro de leitura?

Faço as perguntas, mas não dou respostas. Deem-nas, a nós, que recorremos a vós, hipotéticos leitores, doutores em letras ou meros curiosos, senão e somente amantes da arte literária (criada com ideias e palavras), que deixa de ser arte quando equivocada e desastrosa, por conta de limitações autorais ou de parco talento (sinto que os olhares se voltam para mim, autor de obras pontilhadas de imperfeições). De mãos dadas, e amiúde em lançamentos de livros, a vaidade e a chatice de professar-se também escritor (“Eu também escrevo”), o diletantismo sem futuro, pífia e patética obra dos equivocados (neófitos e afoitos), iludidos na senda pedregosa da literatura, doce (e amarga) ilusão.

Erva daninha, a praga se prolifera. Deles, escribas de fornada, há com insistentes pedidos de prefácio para obras chinfrins, ingênuas tanto quanto imaturas, quando não e de todo alienadas. E se, por isso mesmo, você até se condoer deles, se sentirá mal por algo que não vale a pena. Literatura não é por aí. Já não bastassem os importunos “elementos” do CCC (Comando de Caça aos Coqueteis), posando de papagaios de pirata diante da mídia, e pedindo livros que jamais compram e que, a mais das vezes, nem serão lidos, mas, sim, vendidos aos sebos.




Co-autoria do leitor


A propósito de equívocos e desastres literários, há pouco recebi e-mail de um  contumaz leitor (vamos chamá-lo de Teotônio), autor de livro e residente em Goiânia. Atento, perceptivo, por isso mesmo instigante nos seus questionamentos de ordem literária. Veemente em suas posições, ressalta sua aversão aos “modismos e cânones impostos por uma visão distorcida da realidade que nos cerca”. Acentua, por exemplo (tome polêmica), a questão da co-autoria do leitor. Taxativo, afirma que “escrever para leitor co-autor é tão vazio quanto a estúpida reforma ortográfica que só agradou a meia dúzia daqueles velhotes da Academia”. Idiotia sem par, de acordo com Teotônio, é alguém dizer que o autor do texto ou o diretor do filme não deixaram espaço para a co-autoria do leitor ou expectador.

Teotônio rebate as “críticas idiotas e antipáticas” de um certo crítico que condena “a tutela exagerada” de Saramago (parece-me que no livro “Claraboia”; mas não sei, ainda não li), confinando a trama à necessidade de total clareza. Isso, de acordo com o crítico, afasta as dúvidas que fazem a boa literatura, sobrevindo como conseqüência imediata “não se dar ao leitor a chance de co-autoria na história, uma das regras ficcionais importantes para uma fruição mais rica da leitura e, de resto, um prazer rápido; livro para ser lido no metrô”. Para Teotônio, isso não passa de outra heresia idiota. E mais ele diz: “Essa peste contaminou a mente de quem escreve hoje em dia, escritor ou crítico. Por isso tem tanto escritor tutelado por essa onda, escrevendo coisas ruins ou péssimas e achando que estão abafando. Até na poesia: dá raiva ler aquelas imagens desconexas e sem rumo na maioria dos poetas mais jovens de hoje.”



Leitores assassinos



Por outro lado, o escritor e jornalista José Castello publicou, no blog “A literatura na poltrona”, o texto “Mensagem a leitores assassinos”, questionando em que medida os leitores destroem a reputação de um livro, via de leituras apressadas, indiferentes, superficiais. Castello reporta o capítulo LXXI (“O senão do livro”) das “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, em que este fala por meio de seu próprio personagem: “O maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem…”
Uma mensagem, segundo Castello, que atinge em cheio o peito engravatado — ou decotado — do leitor contemporâneo, para quem, em um mundo de imagens, as palavras devem ser como flashes, e mais nada, porque o leitor não dispõe de tempo nem de paciência. “Memórias Póstumas” foi publicado em 1880, há 131 anos, e Castello, a par com Brás Cubas, remonta a questão, a saber se o problema do assassinato de livros não está nos leitores, tantas vezes apressados e pragmáticos. Ah, vamos, acrescente-se aí a preguiça mental, própria de gente inculta. E tome BBBs.

Imagens retiradas da Internet:
Imagem 1
Imagem 2
Imagem 3

Mário Massari - Poema


MEMÓRIA


Ah, memória, 
Tão amiga quão infame!

Por que insistes em vasculhar
Esses depósitos de
Flores exangues?

Sacia-te a dor do poema?
Alivia-te a música do pranto?

Ah, memória,
Bailarina de risos e desencantos!

Às vezes lua tranquila,
Às vezes escuro manto...





In "Espelhos do tempo".

Imagem retirada da Internet: memoria

José Leandro Bezerra Júnio (JJ Leandro) - Ensaio curto


Couto de Magalhães por Almeida Júnior - Wikipedia

MEA-CULPA




Estou numa fase pessoal interessante na literatura. Por muito tempo li clássicos, e não somente os brasileiros. Sem dúvida uma leitura indispensável, diria obrigatória. Mas ao tempo que montava esse arcabouço literário, outra paralela devia existir: estudar a alma brasileira!

Por muito tempo desprezei esse filão, talvez — mea-culpa — por um receio besta de ser criticado por amigos que não tiram os clássicos de sob as axilas e poderiam, num esnobismo tacanho, enxotar-me de sua companhia pela ignorância do que para eles era literatura de estrebaria. 

O estudo regional a que me dediquei, e que resultará na publicação de um livro mês que vem, salvou-me do vício em que vivia e da limitação de horizontes. Depois que tirei a venda dos olhos percebi que vivia como os moradores do litoral brasileiro até poucas décadas atrás: de costas para o interior, sonhando com a Europa além-mar. 

A literatura de que falo não é a que se ensina nos currículos universitários, consolidada pelo tempo, mas prejudicada pela preguiça da atualização e pela lerdeza em acompanhar a rápida criação literária nacional abundante de geração a geração de autores. Neste caso, a teoria e a prática vivem um descompasso que há um século não seria corrigido pelo passo apressado das mulas nas trilhas do Brasil interior nem agora pelo vôo incessante e rápido dos aviões de carreira. 

Falo de uma literatura que está esquecida, jaz no limbo eternamente como objeto desprezível, tendo na concha com que se resguarda da destruição e do desprezo verdadeiros tesouros que fariam a alegria de qualquer sociólogo ou antropólogo, para não citar o prazer da leitura que o talento literário do autor deixa evidente. 

Citarei alguns casos, uns antigos, outros mais recentes como ilustração.

Muita gente nunca ouviu falar de Couto de Magalhães. Não sabe que foi um militar, um político e também um literato. Aliás, o militar e o político proporcionaram o desabrochar da veia literária. Quem a traz latente não resiste ao que vive, ouve e vê sem passar isso ao papel e às gerações futuras. Isto foi muito comum em tempos quando a descrição literária ou jornalística era o único meio de preservar a informação. A isso muitos chamam literatura de viagem, um epíteto que desconsidero por achar discricionário. Couto de Magalhães tinha a preocupação de preservar a informação quando em 1863, por ocasião de suas andanças como presidente de província, rasgou os sertões de Goiás a passo de cavalgadura ou em batelões por água. O fruto dessas viagens inquietas foi o livro Viagem ao Araguaia, onde ao lado de um estudo da terra e do homem, ele antecipa Pedro Ludovico defendendo a mudança da capital goiana de Goiás para Leopoldina, às margens do grande rio. 

Era um homem adiante de sua época não algumas centenas de léguas, mas muito mais que um século. De sua lavra outros livros retratam a segunda metade do século XIX e são documentos históricos para quem deseja entender a nossa formação como nação: Dezoito Mil Milhas ao Interior do Brasil (1872) e o Selvagem (1876), dentre tantos que produziu. O interessante é que em pleno século XIX, quando a linguagem rebuscada era padrão entre os autores acadêmicos, homens como Couto de Magalhães, calejados no lombo de burros, tinham a pena livre de atavios e aprumada como o passo das mulas com que varavam os sertões. Os floreios deixavam aos literatos que não arredavam pé da cidade grande com medo das feras, dos verdadeiros donos da terra a quem chamavam gentios e de dar o couro aos carapanãs. Ele tinha clara a preocupação em registrar as mudanças na vida e nos costumes do povo para que as gerações futuras soubessem mais sobre nosso país. Em Viagem ao Araguaia, ele diz: “Ah, leitor, quantas e quantas coisas, mesmo neste São Paulo, de onde escrevo esta, já vi mudar, desde o tempo em que era rapaz até hoje!”

Como Couto de Magalhães, outro presidente da província de Goiás em 1881, J. A. Leite Moraes, descreveu no livro Apontamentos de Viagem a aventura que foi deslocar-se de São Paulo a Goiás para a posse e algum tempo depois a sua volta a São Paulo. Sabiam todos aqui que naqueles tempos era mais rápido e com menos riscos sair de Goiás, a capital goiana, pelos rios Araguaia e Tocantins até Belém e depois em vapor da navegação de cabotagem até Santos ou Rio, para então subir a serra até São Paulo? Por mais disparatado que possa parecer hoje em dia, era assim que faziam. E pelo percurso que demorava meses iam registrando o que viam. Uma coisa é patente na literatura desses andarilhos: a devastação da flora e fauna brasileiras é tão antiga quanto a chegada do homem branco ao país que os índios chamavam Pindorama e hoje é o Brasil. Couto de Magalhães, J.A. Leite Moraes e tantos outros descrevem com detalhes a pesca e a caça. A última, principalmente, praticada o mais das vezes como exercício de tiro na abundante fauna do interior do Brasil. O comércio de couro de mamíferos e répteis foi também corriqueiro por aqui por muito tempo.

Outro que se aventurou nesses sertões e na literatura foi o médico sanitarista Júlio Paternostro em 1935. Em sua obra Viagem ao Tocantins (1945) deixou um trabalho digno de um antropólogo quando correu o rio visitando as populações ribeirinhas num levantamento internacional de amostras de sangue sobre a febre amarela. Descreve amiúde os costumes e os hábitos das populações do interior do Brasil em literatura escorreita. Um trabalho valioso que guarda informações que seriam perdidas se por ali ele não passasse com outro propósito que a sua verve literária soube exceder. 

Mais recentemente, 1991, Carmo Bernardes, escritor goiano nascido em Minas Gerais como Couto de Magalhães, funde ficção e realidade, história e fantasia, no livro Perpetinha – Um drama nos babaçuais. Descreve a conquista e o povoamento do então norte goiano, mais precisamente na Boa Vista (Tocantinópolis atual). É uma história que remexe a região desde as primeiras décadas do século XIX quando por lá chegaram os primeiros maranhenses pobres em busca de seu eldorado na vida. Com maestria deixa claro em sua escrita sertaneja os costumes daqueles sertões enquanto tece a trama, como nessa passagem: “O uso do lugar é dormir em rede. Ninguém dorme em cama. Alegam que o calor é demais. A rede é mais ventilada. O sertanejo é feito na rede. Nasce nela, nela é criado, e na mesma rede deita para curtir preguiça. Dorme de noite na rede e nela padece as doenças. Nela morre e nela é levado para a cova”.

São exemplos de alguns autores apenas, mas Brasil afora eles são centenas a deixar transparecer em suas histórias os muitos povos desse Brasil, suas crenças, seus hábitos e seus costumes, tudo isso como componente da trama que desenvolvem. São autores que merecem ser lidos e terem seu valor reconhecido.

Como o objeto de minha pesquisa foi o rio Tocantins ao norte do estado do Tocantins, as obras que citei têm como espaço geográfico essa região. Mas há autores vários que abordam todos os rincões do Brasil. Talvez com a curiosidade como motivação inicial o leitor desse artigo desperte e pesquise para entender a sua própria história. 

Aliás, hoje a pesquisa é muito facilitada pela internet. Eu mesmo vali-me desse meio para minhas aquisições. Os livros que adquiri sobre o tema, mais de 60 títulos, foram todos comprados em sebos a partir de pesquisas na internet, pois são de edições esgotadas. O preço é acessível, a entrega é garantida e rápida. O endereço de uma rede deles está acima disponível. O que esperam? Que a curiosidade lhes espicace a mente feito aguilhão de vaqueiro ou aguardam d’além-mar notícias alvissareiras de uma literatura postiça para nós?

Serguei Iessiênin - Poema


Outono


Égua rubra alisando as crinas:
O outono na calma dos zimbros.

Sobre a margem terrosa e áspera,
O tinido azul dos seus cascos.

Monge-vento, passo medido,
Pisa as folhagens do caminho.

E beija o Não-Visível - Cristo,
Chagas vermelhas entre arbustos.


Tradução de Haroldo de Campos
Imagem retirada da Internet: égua rubra

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